Foi recebida pela Justiça Federal a denúncia do Ministério Público (grupo "Justiça de Transição") oferecida contra agentes do regime militar envolvidos na morte do ex-deputado Rubens Paiva, ocorrida entre os dias 20 e 22 de janeiro de 1971. O parlamentar foi preso durante a ditadura e morreu após ser barbaramente torturado no DOI-Codi do Rio. O coronel reformado Riscala Corbaje, que comandou o DOI de 1970 a 1972, disse que torturou mais de 500 presos (O Globo 25/5/14, p. 10). No pau de arara, ele disse, "o cara urra de dor". O corpo de Paiva nunca foi entregue à família. Cinco militares foram processados por homicídio e ocultação de cadáver: o general reformado José Antonio Nogueira Belham, os coronéis reformados Rubens Paim Sampaio e Raymundo Ronaldo Campos e os ex-sargentos Jurandyr Ochsendorfe Souza e Jacy Ochsendorf e Souza. O juiz não seguiu a decisão do STF, de 2010, que declarou válida e constitucional a lei de anistia brasileira de 1979. Ao contrário, seguiu a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que decidiu também em 2010 (no caso Araguaia) que o Brasil deveria apurar e processar os agentes públicos envolvidos nos crimes contra a humanidade, praticados durante a ditadura.
Os crimes que lesam a humanidade, como vem enfatizando a Corte Interamericana, não prescrevem (por força do jus cogens, ou seja, do direito cogente internacional). Em virtude do art. 5º, § 2º, da CF, os direitos reconhecidos na Constituição brasileira não afastam outros previstos em tratados internacionais. O Brasil é livre para assinar (ou não) tratados internacionais. Quando o faz, para não perder sua reputação internacional, não só abre mão de parte da sua soberania, como deve cumpri-los (pacta sunt servanda = os pactos devem ser cumpridos). O Brasil, de outro lado, podia ou não aderir ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Fez isso em 1998. Agora tem que cumprir suas decisões, sob pena de validar as palavras de Bolívar (citado por Huntington) que, num momento de desencanto, disse: "[Na América Latina] os tratados são papéis, as constituições não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a vida um tormento. A única coisa que se pode fazer na América é emigrar".
Sublinhou ainda a Corte, no caso Araguaia, que o STF deixou de fazer o controle de convencionalidade da lei de anistia, que conflita com os tratados internacionais. Omissão crassa! Toda lei está sujeita a dois controles: de constitucionalidade e de convencionalidade. O próprio Supremo, diga-se de passagem, afirmou que os tratados de direitos humanos possuem valor jurídico superior às leis (RE 466.343-SP). Norma superior prepondera sobre a inferior. Mais ainda: havendo conflito entre uma lei interna e um tratado de direitos humanos, deve sempre preponderar o texto mais benéfico para os direitos e as liberdades (este é o princípio pro homine). No caso, é preciso respeitar os direitos das vítimas. A última palavra em matéria de direitos humanos, como se vê, é da Corte Interamericana, que sempre aplica a decisão mais favorável às liberdades. Argentina, Uruguai, Chile e tantos outros países seguem essa diretiva do sistema interamericano.
De uma vez por todas, a Corte deixou claro que toda violação a um direito humano não amparada no direito interno pode ser levada ao conhecimento da Comissão Interamericana, que está sediada em Washington (EUA). Já não se trata de um "domestic affair" (esse assunto não é só um problema interno). Agora vigora o princípio do "International Concern" (violação de direito humano interessa também à Justiça Internacional). Contra a decisão do juiz que recebeu a denúncia cabe recurso. Pode ser que o Tribunal cancela o recebimento da denúncia. Mas nesse caso se o Brasil não cumprir a decisão da Corte não só irá se comportar como país de terceiro mundo como estará sujeito a várias sanções (podendo inclusive, in extremis, ser excluído da OEA). No dia 21/5/14 nosso país foi acusado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que é o Tribunal máximo de proteção dos direitos humanos na América, de descumprir sua sentença de 2010. O Tribunal ouviu as partes e vai se pronunciar em três meses.
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