A subtração de um par de chinelos (de R$ 16 reais) vai monopolizar, em breve, a atenção dos onze ministros do STF, que têm milhares de questões de constitucionalidade pendentes. Decidirão qual é o custo (penal) para o pé descalço que subtrai um par de chinelos para subir de grau (na escala social) e se converter em um pé de chinelo.
No dia 5/8/14, a 1ª Turma mandou para o Pleno a discussão desse tema. Reputado muito relevante. No mundo todo, a esse luxo requintadíssimo pouquíssimas Cortes Supremas se dão (se é que exista alguma outra que faça a mesma coisa). Recentemente outros casos semelhantes foram julgados pelo STF: subtração de 12 camarões (SC), de um galo e uma galinha (MG), de 5 livros, de 2 peças de picanha (MG) etc.
Um homem, em MG, pelo par de chinelos (devolvido), foi condenado a um ano de prisão mais dez dias-multa. Três instâncias precedentes (1ºgrau, TJMG e STJ) fixaram o regime semiaberto para ele (porque já condenado antes por crime grave: outra subtração sem violência). O ministro Roberto Barroso suspendeu, por ora, a execução da pena (aplicando o princípio da insignificância).
O STF, até hoje, não se entendeu sobre a amplitude do referido princípio. Por força do personalismo de origem ibérica, cada ministro é uma Corte em miniatura. Não se entendem. Conflito entre eles é um conflito entre "Cortes". Para quem tem antecedentes, mesmo em crime sem violência, nega-se normalmente a aplicação da insignificância. Miséria para os miseráveis.
Mas se o fato é insignificante, não existe crime (exclusão da tipicidade material, disse o min. Celso de Mello). Como pode alguém, então, ser punido por um "crime" que não é crime? Da seguinte maneira: no julgamento da segunda imputação (que é um nada jurídico-penal) o réu é condenado novamente pelo fato anterior (pelo qual já fora condenado). Duas vezes, então?
Sim, é punido no segundo processo pelo antecedente que possui, ou seja, pelo que é (reincidente), não pelo que faz. Condenado duas vezes pelo mesmo crime (anterior). Direito penal de autor (muito comum no nazismo, cujo espírito ainda não foi enterrado).
A vida dos criminosos ou supostos criminosos pobres, nas Américas, nunca foi fácil. Na colônia o Brasil constituía um imenso campo de concentração (matou e queimou muito mais extermináveis que no nazismo). Os miseráveis eram considerados inferiores (doutrina racista de Spencer etc.). Como tais, uns degenerados naturais.
Os molestadores não violentos também eram tidos como selvagens, inimigos da civilização (Zaffaroni, El enemigo em el Derecho penal). Esse tratamento diferenciado contra os pobres (mesmo não violentos) continua. Nos tribunais, são vítimas do absolutismo estatal. Nas ruas, são trucidados pelo poder de polícia subterrâneo. Porque são homo sacers (extermináveis, impunemente).
E ainda se ensina nas faculdades de direito do Brasil o conto de fadas de que a lei penal é igualitária, que o direito penal se aplica a todos isonomicamente, que ele não distingue entre ricos e pobres, que a Justiça tem venda nos olhos para tratar todos sem distinção, que o juiz é neutro, que existe "igualdade de armas" nos processos, que todos os réus contam com "ampla" defesa, "contraditório real" etc. etc. Direito penal das fantasias.
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