Recente Acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, em julgamento de caso concreto, anulou e considerou inconstitucional a pena de Cassação de Aposentadoria aplicada a um Delegado de Polícia, apesar de prevista no Estatuto Disciplinar daquele Estado.
O tema, polêmico e de relativa complexidade, tem sido abordado em manifestações doutrinárias ao longo de todo o território nacional e vale a pena seja analisado em face da situação mineira, que ainda contém legislação que permite aplicação dessa sanção extrema.
1. Previsão Legal
A nova Lei Orgânica da Polícia Civil de Minas Gerais (Lei Complementar nº 129/2013) revogou a anterior Lei nº 5.406/69, mas deixou vigente a sua parte que contém o Regime Disciplinar, onde está prevista, entre as penas aplicáveis, a Cassação de Aposentadoria, no seu artigo 154, VI e 160, I. No plano federal, a Lei 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, também prevê, no inciso IV do artigo 127 e no seu artigo 134, sanção de idêntica natureza. Registre-se, por oportuno, que em Minas Gerais, essa medida disciplinar tem sido imposta com regularidade e assustadora constância pelo Governo do Estado, por proposição do nosso respeitável Órgão Corregedor. Ela consiste na supressão completa e definitiva da remuneração auferida pelo servidor policial, quando tenha praticado, em atividade, conduta passível de punição com demissão do serviço público.
2. Aposentadoria e Previdência
Até o advento da Emenda Constitucional de n.º 03/93, a aposentadoria dos servidores públicos era totalmente financiada por recursos oriundos exclusivamente do Estado, sem qualquer participação do beneficiário. Entrementes, a Emenda Constitucional de n.º 20/98, alterou a natureza da aposentadoria dos servidores públicos, que passou a ter obrigatoriamente caráter contributivo, ou seja, o montante dos seus proventos ficou a depender do quantitativo e periodicidade de sua participação financeira. Dessa maneira, a aposentadoria se transformou em um seguro, um direito de caráter retributivo em face do binômio custeio/benefício, do servidor que cumpriu com suas obrigações e encargos previdenciários.
As mudanças realizadas no texto constitucional afastaram a possibilidade de a aposentadoria possuir natureza de prêmio concedido ao servidor, porque se transformou em benefício decorrente de um pagamento previamente realizado por ele.
Dessa maneira, devolveu-se à aposentadoria a essênciade beneficio previdenciário, que exige a contribuição direta do servidor no custeio de suas ações,como condição necessária para a qualificação dessedireito.
Desnecessário frisar que a Previdência tem como objetivo a proteção dos eventos previstos no art. 201 da Constituição Federal, como doença grave, invalidez, morte, idade avançada, reclusão, proteção à maternidade, desemprego involuntário, encargos familiares e acidente do trabalho. A Previdência Social estabelece uma relação entre o pagamento de contribuições e riscos predeterminados, com previsão financeira para sua cobertura.
Deflui-se, assim, a interpretação que a previdência se trata de um seguro sui generis, mediante regramentos constitucionais e legais, que pressupõe filiação obrigatória e o pagamento de contribuições para o gozo do benefício.
Deve-se registrar, por fim, que a Previdência Social, segundo pacífico e generalizado entendimento doutrinário, integra os chamados direitos humanos de segunda dimensão, posto que ligados às prestações que o Estado deve ao universo de indivíduos que o compõem.
3. Segurança Jurídica e Direitos Fundamentais
a) Direito Adquirido/Ato Jurídico Perfeito
O artigo 5º inciso XXXVI, da Constituição da República, alberga a garantia de segurança na estabilidade das relações jurídicas, na qual estão inseridos o direito adquirido e o ato jurídico perfeito.
Direito Adquirido é ampla e facilmente entendido como aquele que já se incorporou ao patrimônio individual, mediante exaurimento de prazo, termo ou implementação de condições.
O mesmo se diga para as relações contratuais que se qualificam como ato jurídico perfeito, protegidas, em sua integridade, inclusive quanto aos efeitos futuros, pela norma de salvaguarda constante do dispositivo constitucional referido.
Assim, é imperioso concluir que, preenchidos os seus requisitos e concedida a aposentadoria pelo ente estatal, tem-se, no caso, caracterizados o ato jurídico perfeito e, consequentemente, o direito adquirido por parte do servidor, protegidos pela cláusula constitucional que tutela a intangibilidade das situações jurídicas definitivas e consolidadas.
b) Dignidade da Pessoa
Indiscutível que os proventos da Aposentadoria possuem caráter alimentar e que a sua supressão relega o servidor à condição de absoluta indigência, já que privado dos recursos indispensáveis à sua subsistência, exatamente em etapa de sua vida em que não reúne mais plenas condições de trabalho. A Aposentadoria é o meio de assegurar o bem-estar dos indivíduos e garantir-lhes a sobrevivência na velhice, na doença ou em outras situações que lhe retirem ou reduzam a sua capacidade laboral, possuindo, sem dúvida, natureza da mais basilar garantia de alimentação.
A proteção constitucional da Dignidade da Pessoa, em acepção exageradamente perfunctória, assegura, pois, ao servidor um patamar de direitos onde se inclui o do provimento alimentar próprio, da sua família e de seus eventuais dependentes.
Relacionada com o mesmo preceito constitucional está, ainda, a proibição de penas perpétuas, aquelas que devem ser cumpridas até a morte do apenado, como se afigura, sem qualquer esforço, a medida punitiva da Cassação de Aposentadoria.
4. Vinculo com o Estado
Já se entendeu, até a década de 1990, que a cassação de aposentadoria é penalidade assemelhada à demissão, por acarretar a exclusão do infrator do quadro dos inativos e, consequentemente, a cessação do pagamento de seus proventos.
A pena de cassação de aposentadoria, nos contornos em que é colocada hoje, toma por base os conceitos jurídicos existentes onde não mais se admite que a relação jurídica Estado-servidor seja perpétua.
O vínculo do servidor com o Estado Administração somente se mantém enquanto o primeiro estiver em atividade, passando a estabelecer liame com o Estado Previdência, a partir do seu ingresso no quadro de inativos.
Por isso, sob o enfoque previdenciário, não mais prevalece a perpetuidade da relação jurídico-estatutária entre o servidor e o Estado, mas sim o regime contributivo, que afasta qualquer possibilidade de interferência do Estado sobre o servidor após a sua inatividade, sob o pretexto de responsabilização por falta cometida durante o exercício das atividades laborativas.
O ordenamento constitucional modificado dividiu a relação jurídica Estado-servidor em estatutária − no que tange à maioria de seus direitos, deveres e vantagens − e de seguro sui generis, quando se refere às regras relativas aos benefícios previdenciários.
Essa alteração conceitual implica na distinção do conteúdo das normas editadas sob a égide do regime anterior e impede a manutenção da penalidade de cassação de aposentadoria, por absoluta incompatibilidade com a nova natureza constitucional das aposentadorias e por não mais subsistir vínculo do servidor aposentado com o Estado Administração.
Fica fácil concluir que no atual sistema contributivo de Regime Próprio, o inativo não é um servidor público, cujo cargo não mais ocupa, não se podendo mais romper um vínculo funcional que se tornou inexistente, por meio da cassação de aposentadoria, como punição por mau serviço prestado.
5. Não Cassação da Aposentadoria não incrementa a Impunidade
É preciso estar ciente de que a possível abolição da pena de Cassação de Aposentadoria não deve alimentar a impunidade no meio da Administração Pública, considerando-se que tem sido aplicada em face de situações de desvios graves de comportamento.
Não se pode deixar de registrar que a medida extrema que se execra neste trabalho é imposta após conclusão do devido Processo Administrativo, onde são observadas todas as garantias constitucionais e procedimentais. Acontece que esses processos costumam consumir, pela sua própria complexidade, por acúmulo de serviço nas Corregedorias, ou mesmo por omissão e morosidade das Comissões Processantes, um tempo exageradamente longo, de vários anos de trâmite, o que possibilita que o Acusado, premido pela situação desfavorável, busque a Aposentadoria como refúgio contra o Jus Puniendi Estatal.
Contudo, o quadro acima descrito é perfeitamente reversível, primeiro, com o estabelecimento de prioridade no andamento desses feitos e, segundo, colocando em prática as normas administrativas vigentes em algumas Unidades da Federação, como é o caso mineiro, de impedimento de concessão da aposentadoria ao servidor que estiver respondendo processo por desvio grave de conduta, com probabilidade de apenação com sua exclusão do serviço público.
Dessa maneira, fica tudo resolvido a contento, posto que, se condenado à demissão, como merecido, o servidor, mesmo assim, permanecerá com seus direitos relativos ao tempo de serviço prestado, que poderá cumular com o de outra e futura atividade na área privada, podendo vir a se aposentar pelo regime geral de previdência, como permite o ordenamento jurídico pátrio.
6. Doutrina e Jurisprudência
Há um número quase infinito de autores que discorrem atualmente sobre o tema, a maioria concluindo pela total inconstitucionalidade da pena administrativa de Cassação de Aposentadoria, o que pode ser percebido por uma mera consulta ao assunto nos bancos de informações especializadas da Internet.
Além do acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que serviu de provocação ao presente estudo, existe também um sem número de decisões dos tribunais de todas as Unidades da Federação, inclusive no Supremo Tribunal Federal. Contudo, curiosamente, o STF ainda não reconheceu tal inconstitucionalidade, conforme se depreende dos julgados contidos no AI-ED 504188. RMS 24.557, MS n. 23.299 eMS-AgR 23219, que se baseiam em entendimento do seguinte teor:
EMENTA: - MANDADO DE SEGURANÇA. DEMISSAO. PROCURADOR AUTARQUICO. 2. ALEGAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DOS INCISOS III E IV DO ART. 127, DA LEI N. 8112/1990, AO ESTABELECEREM ENTRE AS PENALIDADES DISCIPLINARES A DEMISSAO E A CASSAÇÃO DE APOSENTADORIA OU DISPONIBILIDADE. SUA IMPROCEDENCIA. A RUPTURA DO VINCULO FUNCIONAL E PREVISTA NO ART. 41, PAR. 1. DA CONSTITUIÇÃO. HOUVE, NO CASO, PROCESSO ADMINISTRATIVO, ONDE ASSEGURADA AO IMPETRANTE AMPLA DEFESA. A DEMISSAO DECRETOU-SE POR VALER-SE O IMPETRANTE DO CARGO, EM DETRIMENTO DA DIGNIDADE DA FUNÇÃO PÚBLICA E DESIDIA. LEI N. 8.112/1990, ART. 117, INCISOS IX E XI. 3. NÃO CABE, EM MANDADO DE SEGURANÇA, PENETRAR NA INTIMIDADE DAS PROVAS E FATOS DE QUE RESULTOU O PROCESSO DISCIPLINAR. 4. NÃO PODE PROSPERAR, AQUI, CONTRA A DEMISSAO, A ALEGAÇÃO DE POSSUIR O SERVIDOR MAIS DE TRINTA E SETE ANOS DE SERVIÇO PÚBLICO. A DEMISSAO, NO CASO, DECORRE DA APURAÇÃO DE ILICITO DISCIPLINAR PERPETRADO PELO FUNCIONÁRIO PÚBLICO, NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES. NÃO E, EM CONSEQUENCIA, INVOCAVEL O FATO DE JA POSSUIR TEMPO DE SERVIÇO PÚBLICO SUFICIENTE A APOSENTADORIA. A LEI PREVE, INCLUSIVE, A PENA DE CASSAÇÃO DA APOSENTADORIA, APLICAVEL AO SERVIDOR JA INATIVO, SE RESULTAR APURADO QUE PRATICOU ILICITO DISCIPLINAR GRAVE, EM ATIVIDADE. 5. AUTONOMIA DAS INSTANCIAS DISCIPLINAR E PENAL. 6. MANDADO DE SEGURANÇA INDEFERIDO.
Importante consignar que o referido julgamento aconteceu em setembro de 1994, antes das alterações constitucionais acontecidas em 1998 e 2003, quando a aposentadoria ainda possuía um caráter premial e por essa razão não atacou efetivamente a mudança da natureza do benefício, bem como, no caso, não se discutiu o ato jurídico perfeito e direito adquirido, mas a sua possibilidade in thesis, por possuir o Impetrante, à época, tempo suficiente para passar à inatividade.
Não é descabido consignar, por oportuno, que preenchidos os requisitos aquisitivos do benefício em um sistema contributivo, a aposentadoria não pode ser cassada por motivo relacionado a atos de serviço como a desídia, mas somente por vício no preenchimento dos pressupostos de aposentação, como a fraude na contagem do tempo de serviço. Da mesma maneira, no regime da previdência privada, se um empregado preencher os pressupostos para aposentadoria, tem direito a ela e a má qualidade de seu trabalho na empresa não pode ser motivo para desconstituição do ato previdenciário.
7. Ação Judicial
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) é o instrumento processual que tem por finalidade obter declaração de que uma lei ou parte dela é inconstitucional, ou seja, que contraria a Constituição Federal, através do chamado controle concentrado de constitucionalidade. É a contestação direta da própria norma em tese.
Somente as seguintes pessoas/entidades podem propor a ação, de conformidade com a Lei nº 9868/99:
a) Presidente da República;
b) Mesa do Senado Federal;
c) Mesa da Câmara dos Deputados;
d) Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
e) Governador de Estado ou do Distrito Federal;
f) Procurador-Geral da República;
g) Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
h) Partido político com representação no Congresso Nacional;
i) Confederação sindical ou entidade de classe no âmbito nacional.
8. Conclusão
Em face de todo o exposto, diante da flagrante ilegalidade da pena de Cassação de Aposentadoria, por ferir, de forma explícita, várias garantias constitucionais, somos por concluir que o único caminho para a reversão desse status legis em Minas passa pela Advocacia Geral do Estado, que poderá propor, em nome do Governador, a necessária Ação de Inconstitucionalidade ou, como alternativa, providência idêntica da Associação dos Delegados da Polícia Civil de Minas, com o Auxílio da Federação Nacional dos Delegados de Polícia, entidade representativa de classe com a necessária legitimidade legal.
Enfim, são essas as breves considerações que se podem oferecer como contribuição ao estudo e posicionamento sobre o assunto.
Delegado de Polícia (apos). Mestre em Administração Pública/FJP - Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal - Professor do Centro Universitário Metodista de Minas - Assessor Jurídico da Polícia Civil. Auditor do TJD/MG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, João. Cassação de aposentadoria e inconstitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2014, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/1975/cassacao-de-aposentadoria-e-inconstitucionalidade. Acesso em: 21 nov 2024.
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