1- INTRODUÇÃO
Quando o Supremo Tribunal Federal já havia decidido pela inconstitucionalidade do interrogatório por videoconferência, aduzindo infrações materiais ao devido processo legal (ampla defesa, direito de audiência pessoal etc.) e formais (ausência de previsão em lei federal), invalidando inclusive intentos legislativos como o do Estado de São Paulo (Lei Estadual 11.819/05), [1] abrigando assim as críticas formuladas pela doutrina a tal procedimento [2], eis que surge a Lei Federal 11.900/09, regulamentando o famigerado interrogatório “on line”.
No dizer de Thiago André Pierobom de Ávila, o Congresso Nacional aprovou a Lei 11.900/09 “em respeito” à decisão do STF, regulamentando “o interrogatório e depoimento por videoconferência em situações excepcionais”. [3]
É bem verdade que a Lei 11.900/09 põe cobro à questão de infração formal à ordem constitucional. Se o que se pretendia era a regulamentação por lei federal, tal condição está agora plenamente satisfeita.
No entanto, como bem observava Capez, ainda na época em que a Lei 11.900/09 era somente o “Projeto de Lei 679/07”, fica por decidir se o referido diploma satisfaz os requisitos materiais de constitucionalidade. [4] E, diga-se de passagem, não se trata apenas de resolver se é admissível o interrogatório por videoconferência em abstrato no cotejo com o devido processo constitucional. Depois disso ainda cumpre verificar se o legislador ordinário regulamentou a contento o referido procedimento, especialmente com atenção à proporcionalidade da medida.
Não se pretende neste trabalho reiterar as teses pró e contra o interrogatório “on line” sob o ângulo da constitucionalidade ou não do procedimento. Referida discussão já tem sido sobejamente explorada, com argumentos em ambos os sentidos, desenvolvidos de forma altamente competente. Assim sendo, nada mais que atrevimento inútil seria vir este autor a revisitar o tema, já que não poderia acrescentar nada de novo e muito menos de mais eficaz no convencimento por uma ou outra tese. Por isso, embora se conservem sérias dúvidas acerca da constitucionalidade material do interrogatório por videoconferência, mesmo após o advento da Lei 11.900/09, deixa-se a questão de lado neste trabalho, aguardando-se a futura manifestação, que certamente virá, do Supremo Tribunal Federal.
Objeto de estudo será então a questão da possibilidade de realização do interrogatório “on line” sob o argumento, previsto na lei, da resposta “a gravíssima questão de ordem pública”.
Inicialmente procurar-se-á demonstrar como a Lei 11.900/09 intenta operacionalizar um sistema razoável de excepcionalidade para a adoção do interrogatório por videoconferência. No seguimento, analisar-se-á a conveniência ou não do derradeiro critério de excepcionalidade apontado pelo legislador ordinário, consistente na referência à famigerada “questão de ordem pública”.
Ao final serão retomadas as principais ideias debatidas, apresentando-se as respectivas conclusões.
2-INTERROGATÓRIO POR VIDEOCONFERÊNCIA – EXCEPCIONALIDADE E PROPORCIONALIDADE: A QUESTÃO DA “ORDEM PÚBLICA”
Salta aos olhos que o legislador ordinário não esteve somente atento ao problema da constitucionalidade formal ao editar lei federal regulamentadora do interrogatório por videoconferência. Ao estabelecer claramente a excepcionalidade do interrogatório à distância atentou para a proporcionalidade da medida, não permitindo que se espraiasse de forma incontrolada no cotidiano forense.
Assim estabelece o artigo 185, § 2º., que o interrogatório por videoconferência somente terá lugar “excepcionalmente” e mediante “decisão fundamentada” do Juiz. E tal fundamentação também é regrada pela lei nos incisos I a IV do mesmo dispositivo.
Os três primeiros casos excepcionais arrolados pela lei não serão objeto de pesquisa neste artigo. Como já esclarecido, interessa o inciso IV, que aponta a possibilidade do interrogatório por videoconferência sob o fundamento de “responder a gravíssima questão de ordem pública”.
Esse dispositivo chama a atenção porque traz à tona a indagação de qual seria a razão que leva o legislador a cometer repetidamente as mesmas impropriedades já fartamente criticadas pela literatura jurídica. [5] Por que motivo misterioso vem o legislador meter de novo na lei uma expressão tão problemática, retirada de algum baú do fascismo autoritário, que já deveria estar esquecido em um sótão de tristes memórias, juntando teias de aranha nas trevas do tempo?
Afinal é de trivial conhecimento que o fundamento da “ordem pública” para imposição de limitações aos direitos individuais (v.g. na Prisão Preventiva) vem sofrendo há muito tempo duras críticas doutrinárias, sob o argumento de ser um critério muito elástico e indeterminado, não prestando uma segurança jurídica em sua definição.
Sobre o tema manifesta-se Fauzi Hassan Chouke:
“Outra forma inequívoca de manifestação autoritária do Código de Processo Penal é a utilização de uma expressão vaga e sem qualquer referencial semântico como ‘ordem pública’ para fundamentar a prisão preventiva, conceito este que fica extremamente ao sabor de interpretações ocasionais, e que a jurisprudência, ao longo de toda uma vida de código, ainda não conseguiu padronizar”. [6]
O encerramento do rol de casos excepcionais que ensejam o interrogatório à distância com a referência ao indefinido e aberto critério da “ordem pública”, equivale a fazer desmoronar todo o sistema de proporcionalidade erigido pelo próprio legislador ao longo dos outros três incisos do artigo 185, CPP. O inciso IV pode transformar a excepcionalidade em mera “aparência de excepcionalidade”, convertendo a exceção em regra. A plasticidade do conceito de “ordem pública” pode permitir a adequação de uma infinidade de situações na suposta excepcionalidade imposta pela lei, a qual se converte em mera “aparência” e faz ruir consigo a proporcionalidade. O inciso IV do artigo 185, CPP, é um elemento de autofagia da Lei 11.900/09, na medida em que solapa toda a edificação de proporcionalidade projetada pela própria lei.
Ao final e ao cabo, conclui-se que a Lei 11.900/09 intentou construir um “gigante” de proporcionalidade, forjado com pedras resistentes, mas findou dando-lhe “pés de barro” ao acrescentar-lhe no acabamento a chamada “questão de ordem pública”. Esses “pés de barro” podem ser a razão de uma queda fatal. Talvez ainda haja tempo de remove-los (o legislador ou o STF). É bom que se o faça, pois o pior desses pés não é serem de barro, mas sim cheirarem mal. [7]
3-CONCLUSÃO
No decorrer deste trabalho examinou - se a questão da excepcionalidade do interrogatório por videoconferência baseado no fundamento legal da resposta “a gravíssima questão de ordem pública”.
Passou-se ao largo da discussão sobre a constitucionalidade material do interrogatório à distância, ao menos numa perspectiva abstrata e geral. O estudo concentrou-se na formulação ou não da Lei 11.900/09 com assento em critérios legítimos de proporcionalidade, consubstanciados na edificação de um sistema que garanta a excepcionalidade da medida. Como já frisado, não se discutiu a questão que versa quanto a ser, mesmo que excepcionalmente adotado, inconstitucional o interrogatório “on line”.
Partindo, portanto, de uma admissão provisória, precária e meramente argumentativa, de possibilidade do interrogatório “on line”, mediante uma regulamentação legal (obviamente federal) pormenorizada e proporcional, passou-se a analisar criticamente o sistema erigido pela Lei 11.900/09, especialmente quanto ao critério da “ordem pública” como fundamento da medida excepcional do interrogatório por videoconferência.
Concluiu-se que, se o legislador ia caminhando para um sistema de proporcionalidade e excepcionalidade a princípio aceitável, nos moldes do artigo 185, I a III, CPP, tropeçou desastrosamente no inciso IV do mesmo dispositivo ao trazer à cena a famigerada “questão de ordem pública”, capaz de converter a exceção em regra e fulminar a proporcionalidade, face à sua plasticidade que abrigaria um sem número de hipóteses para a infração supostamente legitimada ao direito do réu de entrevistar-se pessoalmente com o seu julgador.
Ainda deixando de lado a discussão da inconstitucionalidade em geral do interrogatório por videoconferência e admitindo “ad argumentandum tantum” a possibilidade de sua regulamentação por lei federal de acordo com critérios de proporcionalidade, pode-se dizer que não seria o caso de considerar-se a Lei 11.900/09 inconstitucional “in totum”, mas certamente mereceria essa pecha o inciso IV do artigo 185, CPP, com sua nova redação.
Enfim, que esses “pés de barro” fedorentos devem ser extirpados é coisa certa. Fica para mais distantes e aprofundadas reflexões jurídicas, sanitárias e arquitetônicas o saber se mesmo sem esses “pés” pode sustentar-se e não exalar fedor a Lei 11.900/09.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Thiago André Pierobom de. Lei 11.900/2009: a videoconferência no processo penal brasileiro.Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 13.01.2009.
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A Lei Estadual n. 11.819, de 05.01.05 e o interrogatório por videoconferência – Primeiras impressões. Boletim IBCcrim. n. 148, mar., p. 2, 2005.
CAPEZ, Fernando. Interrogatório por videoconferência. Revista Jus Vigilantibus. Disponível em www.jusvi.com , acesso em 29.11.2008.
CHOUKE, Fauzi Hassan. Garantias Constitucionais na Investigação Criminal. São Paulo: RT, 1995.
SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
[1] V.g. STF, 2ª. Turma, HC 88.914/SP, rel. Min. Cezar Peluso, j. 14.08.2007, DJ 05.10.2007, p. 37. No mesmo sentido ainda STJ, HC 98.422, 6ª. Turma, rel. Desembargadora convocada Jane Silva.
[2] Cf. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A Lei Estadual n. 11.819, de 05.01.05 e o interrogatório por videoconferência – Primeiras impressões. Boletim IBCCrim. n. 148, mar., 2005, p. 2.
[3] Lei 11.900/2009: A videoconferência no Processo Penal brasileiro. Disponível em www.jusnavigandi.com.br , acesso em 13.01.2009, p. 3.
[4] CAPEZ, Fernando. Interrogatório por videoconferência. Revista Jus Vigilantibus. Disponível em www.jusvi.com , acesso em 29.11.2008.
[5] Aliás, dá também em que pensar o motivo pelo qual se editou a Lei 11.900/09, após já haver o STF considerado o interrogatório por videoconferência não só formal como materialmente inconstitucional. Mas, nesse caso ainda dêmos um crédito à polêmica da questão e ao eterno conflito entre as tecnologias e as tradições.
[6] Garantias constitucionais na investigação criminal. São Paulo: RT, 1995, p. 26.
[7] A imagem a tomo emprestada do grande escritor lusitano José Saramago, empregada por ele em outro contexto, mas extremamente adequada ao caso em estudo. Cf. SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 375.
Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós - graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós - graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado da Unisal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Videoconferência: reiterando o equívoco da ordem pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 mar 2009, 00:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/218/videoconferencia-reiterando-o-equivoco-da-ordem-publica. Acesso em: 23 nov 2024.
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