A linguagem tem o poder de direcionar o pensamento humano e atua decisivamente na criação da realidade. A utilização equivocada e abrangente da palavra “polícia” fez surgir grave confusão na definição das instituições que atuam em áreas distintas, quais sejam na ordem pública e no sistema de justiça criminal. Importa percorrermos o passado e identificar no tempo a origem da anomalia.
O início do processo de civilização organizada registrado na Grécia antiga deu origem às palavras polis e civitas, das quais posteriormente derivaram o termo “polícia”. Tanto polis como civitas serviram para denominar “cidade”, tendo, a primeira, a conotação de organização estatal enquanto a segunda seria uma variação daquela, com sentido político, para abranger os cidadãos romanos e suas prerrogativas como tais.
A palavra polícia sofreu transformações semânticas e, mais tarde, passou a denominar o Estado de tudo o que era organizado, limpo, em ordem, confortável e belo. Surge daí a noção de “poder de polícia”, para conferir ao órgão da autoridade central a função de manter a cidade organizada, limpa e em ordem. Assim foi que em todo o mundo o termo polícia ficou definitivamente consagrado para definir o órgão estatal encarregado de salvaguardar a ordem pública, restringindo e condicionando direitos.
Entretanto, a histórica concentração do poder pela qual o mandatário absoluto reunia as funções de julgar e de organizar a força pública, cumulando às milícias a tarefa de patrulhar e fazer averiguações sobre eventuais transgressões e conspirações, deu causa a uma confusão de sentidos em relação à palavra polícia, ampliando indevidamente a abrangência de tal termo.
Nessa conformidade, a Inquisição medieval utilizou o mesmo corpo de inquisidores para as atividades de vigilância e coleta de informações. Assim também, o monarca utilizava o mesmo grupamento de guardas para a contenção de desordens e coleta de informações sobre atividades tidas como marginais.
É fora de dúvida também que a concentração das funções de magistratura e de comando de exércitos praticada pelos pretores romanos contribuiu para a confusão até hoje refletida nos ordenamentos jurídicos de todo o mundo, na medida em que aquela organização política serviu de modelo para as civilizações vindouras.
Essa histórica reunião de funções em um só corpo funcional fez surgir a ideia equivocada e desastrosa segundo a qual o termo polícia abrangeria as funções de manutenção da ordem e as de coleta de elementos de informação que fizessem conhecer o autor de supostas infrações aos códigos de conduta. Esse desvio de linguagem é tão relevante e poderoso que, em razão dele, até hoje perdura em escala global a confusão que faz com que órgãos públicos com funções totalmente distintas sejam equivocadamente aglutinados conceitualmente numa só denominação de atividade estatal – policiamento. O legislador constitucional pátrio caiu na armadilha semântica e prova disso é o texto do art. 144 da Constituição Federal, em que, sob o capítulo intitulado “Da Segurança Pública”, foram dispostos órgãos com funções totalmente distintas, paradoxalmente reunidos sob a mesma denominação polícia e sob o mesmo enfoque de preservação da ordem pública.
Ora, é uma impropriedade gritante estabelecer que a preservação da ordem pública se confunde nas funções de policiamento e investigação, eis que a ideia de manutenção da ordem pública tem natureza completamente distinta da que se refere ao exercício da atividade apuratória preliminar coadjuvante. A apuração preliminar coadjuvante está para o equilíbrio de tensão entre o jus puniendi e o jus libertatis, concentrando-se na reunião de provas da imputação (cargo) ou da não imputação (descargo). Nesse contexto, a investigação criminal é atividade de coadjuvação judiciária na realização da justiça diante do caso concreto e não de policiamento.
Nem se diga que colocar a investigação no plano coadjuvante da jurisdição penal diminui-lhe a importância, mas, ao contrário, assoma-lhe o valor situando-a junto daquela que é a maior e mais nobre expressão da soberania do Estado Democrático. O órgão de investigação não está sendo colocado aqui em condição de inferioridade e tampouco de subordinação em relação ao órgão judiciário ou ministerial, e sim em posição de cooperação mútua na intencionalidade final comum de realização de justiça. A interpretação precipitada do termo “coadjuvação” ora utilizado poderia induzir o leitor incauto a pensar que estamos colocando o órgão de investigação em um papel secundário, de mero auxiliar. A coadjuvação aqui é recíproca, e vale para todos os atores envolvidos, no exato sentido da palavra. Remetemos o leitor ao significado do termo “coadjuvar”: auxiliar-se, ajudar-se mutuamente.
A coadjuvação enfocada é via de mão dupla em que as diversas engrenagens do sistema de justiça criminal interagem numa relação de necessidades recíprocas, com independência e sem subordinação. Essa abordagem é realçada quando constatamos que o presidente da investigação atua com autonomia e desenvoltura, sem relação de hierarquia diante do juiz ou de qualquer outro ator de quaisquer dos poderes, havendo uma recíproca influenciação na necessária interação entre delegado de polícia, juiz, defesa técnica e Ministério Público, mas sempre com o fim precípuo de cognição.
A complexa atividade desenvolvida pela hoje denominada polícia judiciária não está para a segurança pública e sim para a eficácia prática do processo penal. Tanto assim que os destinatários diretos do inquérito policial são o Ministério Público, a defesa técnica do indigitado autor do ilícito e o juiz, enquanto os destinatários imediatos da atividade policial, na pretendida manutenção da ordem pública, são os cidadãos de um determinado grupamento social postos sob a vigilância da polícia ostensiva ou dos órgãos de fiscalização.
O que decide a natureza de um órgão é o seu plano de atuação e seus fins, e a polícia judiciária age precipuamente numa relação de necessidade com a atuação do poder jurisdicional, na aplicação da lei ao caso concreto, tendo como escopo a realização da justiça penal.
Sob outro enfoque, embora as atividades do órgão de investigação não materializem atividade jurisdicional, ao coletar indícios de autoria e prova da materialidade delitiva, a polícia judiciária apresenta a imprescindível justa causa para instauração da ação penal. A deflagração de uma ação penal configura verdadeira violência estatal que constrange o cidadão, colocando-o na incômoda condição de réu e, tanto por isso, não se permite no Brasil a instauração da instância penal sem que haja um coeficiente mínimo de viabilidade (verossimilitude/probabilidade) para o desiderato, sob pena de trancamento da ação por meio do habeas corpus (art. 648, I, do Código de Processo Penal). Portanto, a atividade estatal investigativa está necessária e diretamente conectada ao exercício da jurisdição penal e não se confunde nem de longe com os poderes administrativos que têm por escopo a restrição ou condicionamento de direitos a bem da ordem pública. Esta concepção é reafirmada quando se constata que o substrato da investigação, muitas vezes constituído de provas irrepetíveis (exame de corpo de delito e busca e apreensão, por exemplo), é apto a embasar eventual condenação ou absolvição, uma vez submetido o conjunto de tudo que foi carreado pelo inquérito, em juízo, ao contraditório e à ampla defesa.
Ousamos defender, portanto, que a atividade investigatória não pode ser confundida com a função de polícia, mas deve ser reconhecida como atividade estatal de coadjuvação judiciária e instrumental necessária de jurisdição penal.
A partir de tal compreensão, deve ser rechaçada a percepção segundo a qual a atividade investigatória tem como único destinatário o titular do jus persequendi e visa tão somente a subsidiar a acusação para a propositura da ação penal. É que, no processo penal, o Ministério Público e o querelante figuram na condição de partes, impondo-se serem mantidos em pé de igualdade com a defesa técnica, devendo a investigação criminal estar disposta imparcialmente para subsidiar tanto o processo como, se for o caso, o não processo. Ao contrário, ao defendermos que a investigação é instrumento ao alvedrio exclusivo da acusação, ferida de morte estará a isonomia processual com consequências funestas para o direito de liberdade e o status dignitatis de todos os cidadãos.
A investigação busca a verdade real e não pode ser confundida como ferramenta disposta ao arbítrio de um carrasco que anseia a todo custo uma condenação. Com muito mais razão, não podemos confundir a atividade investigatória com a atividade policial, uma vez demonstrada a impropriedade da concepção abrangente do termo “polícia”, até hoje equivocadamente adotada não só no Brasil, mas em diversos países.
O Poder Executivo deve ser responsável pela gestão do policiamento, mas não pode ter sob seu comando direto o órgão investigatório, já que este deve atuar norteado pela justa aplicação do direito material, coadjuvando para garantir o eficaz funcionamento da justiça criminal, ainda que em prejuízo dos interesses inconfessáveis de agentes públicos mal-intencionados. Por via de conclusão, a partir de uma nova reflexão sobre a questão proposta, a atividade investigatória deve ser objeto de profunda remodelação legal para que seja reconhecida como emanação do poder político estatal soberano, imunizando-a das ingerências do Poder Executivo e conferindo ao órgão investigativo garantias que lhe assegurem imparcialidade e independência na necessária coadjuvação com o Poder Judiciário, Ministério Público e defesa técnica.
Dispõe o Código de Processo Penal em seu art. 4º que: “A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria”, sendo o inquérito policial a base preparatória da ação penal e com competência para elaborá-lo deferida ao órgão de polícia judiciária – o delegado de polícia. A regra, porém, não exclui outras autoridades administrativas quando, por lei, lhes seja cometida a mesma função. Como bem assinala Tornaghi (1989, p. 29), se, por exemplo, uma lei atribuir às autoridades alfandegárias o poder de investigar contrabandos ou descaminho, elas poderão realizar inquéritos. Se outra lei cometer aos serviços de fiscalização do exercício da medicina a função de investigar os crimes contra a saúde pública, elas terão também esse poder.
A Constituição Federal, de em 5 de outubro de 1988, estabelece em seu art. 144, § 4º, que: “às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares”. Sendo assim, o inquérito policial deverá ser sempre presidido por delegado de polícia de carreira.
Parcela considerável da doutrina tem defendido a direção da investigação pelo Ministério Público, argumentando que o inquérito policial é voltado exclusivamente para a formação da opinio delicti por parte do órgão da acusação. Outros defendem a instituição do juizado de instrução, sustentando que a outorga da atividade investigatória a um magistrado instrutor daria maior qualidade ao material probatório, propiciaria o exercício imparcial da investigação e elidiria o cometimento de abusos. As duas posições, amparadas por discursos vagos e inconsistentes, deparam-se com uma realidade inarredável: a fragilidade humana que precipita a maioria dos homens à prepotência.
Como pressupor uma parte ilogicamente imparcial, se o Ministério Público é o contraditor natural do imputado? Por outro lado, como atenderemos aos requisitos do sistema acusatório a partir do improvável enquadramento orgânico de juízes em uma atividade inquisitiva que não corresponde ao estrito sentido de jurisdição?
Werner Goldschmidt, em 1950, em seu exílio no Uruguai, afirmou se tratar de uma “ingenuidade” do legislador acreditar na possível imparcialidade das partes, afirmando que a exigência de imparcialidade da parte acusadora cai no mesmo erro psicológico que desacreditou o processo inquisitivo (1935, p. 29).
É do consagrado mestre Aury Lopes Júnior (2003, p. 92) a seguinte lição: [...] se no plano do dever ser o promotor poderia ser uma parte imparcial, no plano do ser isso é impossível. Como ser humano, é facilmente suscetível de sofrer a paixão pelo poder, pela investigação e, principalmente, pela posição acusadora no processo penal. A argumentação teórica não é suficiente para explicar esse fenômeno, porque a alma do ser humano é frágil, muito mais frágil que supõe a construção técnica artificial.
O juizado de instrução passa por grave crise nos países em que foi adotado e em todos eles se pensa na reformulação do sistema, eis que apresentou-se como entrave à plena consolidação do sistema acusatório, pois a sua adoção deu conotação inquisitiva ao judiciário, além de resultar numa lentidão maior ainda da administração da justiça.
De tudo se conclui que o sistema adotado atualmente no Brasil, uma vez guindado ao patamar instrumental garantista que o revisite a partir de hodiernos e mais acertados paradigmas e conceitos (coadjuvação judiciária, filtro contra acusações infundadas, direção supra partes para torná-lo elemento de cargo e descargo, garantia de autenticidade das provas e do funcionamento eficaz da justiça), tende a ser reconhecido como modelo de sistema de instrução preparatória para todos os países onde se pretende a consolidação do Estado Democrático de Direito.
A investigação criminal é atividade sensível desenvolvida pelo Estado porque toca nos direitos fundamentais do cidadão (liberdade, intimidade etc.), não podendo ser exercitada senão nos exatos limites da lei. Muito por isso, entre os órgãos estatais a polícia judiciária sem dúvida é um dos mais fiscalizados: sobre ela recai o controle externo do Ministério Público e o controle interno das corregedorias, além da permanente e necessária análise judicial prévia de eventuais medidas constritivas. Ademais, as ações da polícia judiciária estão sob constante supervisão das secretarias de segurança pública nos estados e do Ministério da Justiça na esfera federal, sem contar a atuação das ouvidorias, da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Nacional de Justiça, dos conselhos comunitários, ONGs etc.
Aqueles que defendem a atribuição investigativa a outros órgãos públicos desprezam a Constituição Federal e fazem pouco do alto custo pago por muitos para que o Brasil exsurgisse das trevas do arbítrio para consolidar-se como nação livre em que o povo pudesse contar, senão com a sonhada justiça social, ao menos com um mínimo necessário de segurança jurídica.
Muitos dos nossos heróis que ousaram sonhar com a transformação da ditadura em democracia, certamente se horrorizariam diante das defesas públicas acaloradas em favor da investigação pelas polícias ostensivas e pelo Ministério Público. Por certo, muito mais pungente ainda é a dor de assistir a covardia (dissimulada por falsos discursos de vanguarda em suposta defesa do interesse público) de quem, ao contrário de honrar a toga heroica de guardião da legalidade e da justiça, ratifica a usurpação por meio da concessão de ordens judiciais de busca e apreensão, interceptação telefônica e até prisão, a órgãos sem atribuição legal para investigar.
Delegado de Polícia da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Mestrando em Direito do Programa do Mestrado em Direito da Universidade Nove de Julho de São Paulo - Área de Concentração: Justiça, Empresa e Sustentabilidade; Linha de Pesquisa: Justiça e Paradigma de Eficiência. Especialista em Segurança Pública pela Universidade Federal do Estado do Espírito Santo - UFES. Graduado em Direito pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru. Atualmente integra o grupo de pesquisa do Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na linha de pesquisa Ensino de Língua e Literatura (dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3742920810657747). Professor visitante do Centro de Pós-graduação da Universidade Nove de Julho de São Paulo. Trabalhou como professor de graduação em instituições de ensino superior e em cursos preparatórios para concursos da área jurídica. Atuou como professor em cursos de formação e aperfeiçoamento na Academia da Polícia Civil do Estado do Espírito Santo. Desempenhou a função de tutor de ensino à distância na Academia Nacional de Polícia do Ministério da Justiça. Tem experiência na área do Direito e da Educação, com ênfase em Direito Constitucional, Direito Penal e Direito Processual Penal. Autor do livro MANUAL DE POLÍCIA JUDICIÁRIA - DOUTRINA E PRÁTICA, SÃO PAULO: EDIPRO, 2014.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIOS, Christian Robert dos. O sujeito ativo da investigação criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 out 2015, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2222/o-sujeito-ativo-da-investigacao-criminal. Acesso em: 26 nov 2024.
Por: Adel El Tasse
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: RICARDO NOGUEIRA VIANA
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Precisa estar logado para fazer comentários.