Terminado o casamento ou a união estável entre os cônjuges, não é raro de se ver a propositura, geralmente pelo cônjuge varão, de Ação Negatória de Paternidade na Vara de Família contra o filho concebido pela via da adoção na Vara da Infância e da Juventude.
Entre os argumentos mais costumeiros lançados pelo cônjuge varão, autor da Ação Negatória de Paternidade na Vara de Família, pode-se listar os seguintes: que a adoção deu-se por pena da criança que não possuía registro civil de filiação paterna, que a condição de pai foi assumida para beneficiar o menor junto a um plano de saúde ou obtenção de desconto na mensalidade escolar e, ainda, que a ação de adoção fora ajuizada com base na desconfiança do próprio autor de ser o pai biológico do adotado.
Bom ressaltar que essas Ações Negatórias de Paternidade, na maioria esmagadora dos casos, são propostas quase uma Década ou mais depois da sentença de adoção. Ou seja, na memória e no espírito da criança o autor dessa ação é e sempre foi o seu pai. É na figura do seu pai adotivo que o menor experimentou e venceu todas as suas sensações e experiências de vida, aonde encontrou refúgio, compreensão e amor.
Acontece que, sabiamente, o direito material impõe uma muralha intransponível a aquele pai, assim declarado pela via judicial da adoção, que deseje revogá-la, seja lá qual for o motivo. Senão vejamos o que dispõe o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA:
“Art. 39. (...)
§1º A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei”.
Ora, o ECA é categórico: a adoção é medida irrevogável. Em todo o conteúdo desse Diploma não há nenhuma ressalva ou condicionante ao mencionado comando legal. Assim, uma vez operado o trânsito em julgado da Ação de Adoção, seu maior adorno substancial será a sua irrevogabilidade.
Naturalmente, como toda e qualquer sentença de conteúdo constitutivo, esse veredicto poderá ser anulado pela via única da Ação Rescisória, dentro do prazo decadencial de dois anos. O Art. 485 do Código de Processo Civil é amplamente genérico, não excepcionando nenhuma sentença judicial quanto à possiblidade de sua discussão pela via rescisória, nem mesmo a de adoção. A Ação Anulatória do Art. 486, por sua vez, é incabível, pois a sentença que reconhece a adoção não é meramente homologatória, mas, como dito, possui natureza constitutiva.
Destarte, a propositura de Ação Negatória de Paternidade contra o filho concebido pela via da adoção na Vara de Família padece de dois vícios insuperáveis.
Primeiro, falece competência à Vara de Família para promover a rescisão e rediscussão das sentenças transitadas em julgado na Vara da Infância e da Juventude. A Ação Rescisória só poderá ser apreciada pelo Tribunal, não podendo ser ajuizada em órgãos de primeira instância, tenha ou não sido interposto recurso de apelação.
Segundo, a Ação Negatória de Paternidade não é o instrumento adequado para veicular pretensão de enfrentamento à sentença de adoção. Seja porque não é sucedâneo de Ação Rescisória, único remédio processual admissível ao caso, seja porque a manifestação de vontade depositada nos Autos da Ação de Adoção é coberta pela cláusula da irrevogabilidade após o trânsito em julgado. Não sendo, assim, a via processual adequada, o Autor será carecedor de ação por falta de interesse de agir.
Registre-se que a propositura de Ação Rescisória, mesmo a Ação Negatória de Paternidade se fosse admitida, com fundamento em vício de vontade para se anular Ação de Adoção, certamente estaria fadada ao insucesso. Pois é elemento intrínseco e fundamental do acolhimento da Ação de Adoção a manifestação de vontade de seu Autor, sua concordância expressa e inequívoca em ser pai.
Nas palavras de Flávio Tartuce:
“Pela máxima venire contra factum proprium non potest, determinada pessoa não pode exercer um direito próprio contrariando um comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o dever de lealdade, decorrentes da boa-fé objetiva” (Teoria Geral dos Contratos e Contratos em Espécie: Editora GEN/Método).
Não é demais salientar que o arrependimento da adoção por qualquer razão pessoal do Autor, a estratégia do cônjuge varão para sair vencedor na partilha de bens ou para deixar de ser devedor de pensão alimentícia na Vara de Família não se constituem em elementos para a propositura de Ação Rescisória, muito menos se constituem em vícios da vontade.
Concluo trazendo o seguinte precedente do Colendo Superior Tribunal de Justiça:
“RECURSO ESPECIAL - AÇÃO ANULATÓRIA DE ADOÇÃO - AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO DOS ARTS. 42, § 5º, DO ECA - ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE, E 145, INCISO II, DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 - INCIDÊNCIA, NO PONTO, DO ENUNCIADO N. 211 DA SÚMULA/STJ - NÃO-IMPUGNAÇÃO, NAS RAZÕES DE RECURSO ESPECIAL, DE FUNDAMENTO AUTÔNOMO DO V. ACÓRDÃO RECORRIDO - APLICAÇÃO DO ENUNCIADO N. 283 DA SÚMULA/STF - SENTENÇA QUE DECIDE PROCESSO DE ADOÇÃO - NATUREZA JURÍDICA - PROVIMENTO JUDICIAL CONSTITUTIVO - SUJEIÇÃO À COISA JULGADA MATERIAL E AO PRAZO DECADENCIAL DA AÇÃO RESCISÓRIA - AÇÃO ANULATÓRIA DE ATOS JURÍDICOS - NÃO-CABIMENTO, NA ESPÉCIE - RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.
I - Os arts. 42, § 5º, do ECA, e 145, inciso II, do Código Civil de 1916, não foram objeto de debate, ao menos implícito, do v. acórdão recorrido, incidindo, na espécie, o Enunciado n. 211 da Súmula/STJ;
II - O recurso especial, em nenhum momento, impugna o fundamento autônomo da coisa julgada, utilizado pelo v. acórdão recorrido como razão de decidir, o que atrai o óbice do Enunciado n. 283 da Súmula/STF;
III - A sentença que decide o processo de adoção possui natureza jurídica de provimento judicial constitutivo, fazendo coisa julgada material, não sendo a ação anulatória de atos jurídicos em geral, prevista no art. 486 do Código de Processo Civil, meio apto à sua desconstituição, sendo esta obtida somente pela via da ação rescisória, sujeita a prazo decadencial, nos termos do art. 485 e incisos do Código de Processo Civil;
IV - Recurso especial improvido.
(REsp 1112265/CE, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/05/2010, DJe 02/06/2010)”.
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