Entrevista publicada no jornal “Carta Forense”, edição n. 69, fevereiro de 2009, p. 34/35
Interrogatório por videoconferência
Carta Forense - Embora o Brasil seja signatário da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, a qual prevê o uso da videoconferência, a matéria ainda não se encontrava disciplinada em nosso país por lei federal. A que se deve tal demora?
Fernando Capez - Realmente, houve uma verdadeira resistência ao disciplinamento da videoconferência, o que, inclusive, levou o Poder Judiciário de alguns Estados a utilizar esse recurso tecnológico, sem lei federal dispondo sobre a matéria, provocando inúmeros questionamentos no âmbito dos Tribunais Superiores. Na realidade, o forte, mas não verdadeiro, argumento de que o sistema de videoconferência mutilaria direitos e garantias individuais do acusado, acarretando ofensa aos princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, serviu como um grande obstáculo a aceitação imediata desse instrumento, e, portanto, a sua pronta regulamentação. No entanto, o progresso tecnológico é um fato do qual o Poder Judiciário não pode se “divorciar”. Vejam, por exemplo, a Lei n. 11.419/2006, que dispôs sobre a informatização do processo judicial, passando a admitir o uso de meio eletrônico na tramitação dos processos judiciais, comunicação de atos e transmissão de peças processuais. Na mesma esteira, o art. 217 do Código de Processo Penal, com a redação determinada pela Lei n. 11.690/2008, previu a possibilidade da oitiva de testemunha por intermédio da videoconferência. Não há mais, portanto, como fechar os olhos para esse novo panorama que se descortina. O Poder Judiciário deve se adaptar às novas formas de tecnologia, até como meio de aprimoramento de seus procedimentos, sob pena de caminhar na contramão da realidade.
CF - Alguns Estados, como São Paulo, procuraram editar lei sobre a matéria, porém esbarraram na competência privativa da União para legislar sobre direito processual. Na sua opinião, o funcionamento do Poder Judiciário dos Estados poderia ser aprimorado com a ampliação das competências estaduais para legislar?
FC - Com efeito. Com o intuito de disciplinar o emprego desse recurso tecnológico no Estado de São Paulo, foi editada a Lei n. 11.819/2005, a qual previu o uso de aparelho de videoconferência nos procedimentos judiciais destinados ao interrogatório e à audiência de presos. Referida Lei, no entanto, acabou sendo objeto de questionamento na Suprema Corte, cujo Plenário, por maioria, declarou, incidenter tantum, a sua inconstitucionalidade formal. Concluiu-se que a mencionada norma teria invadido a competência privativa da União para legislar sobre direito processual. A Min. Ellen Gracie, relatora, em voto vencido, não vislumbrou vício formal, por entender que o Estado de São Paulo não teria legislado sobre processo, e sim sobre procedimento. Tal situação bem demonstrou como os Estados se encontram engessados para legislar sobre matérias que afetam diretamente a operacionalização do seu Poder Judiciário, isto é o seu dia a dia, contribuindo para a morosidade dos processos e a falta de efetividade da justiça. Sem dúvida, a ampliação constitucional das competências estaduais para disciplinar determinadas matérias ajudaria em muito a celeridade da justiça, até porque cada Estado da Federação tem as suas dificuldades peculiares e, muitas vezes, um Estado, como São Paulo, por exemplo, dada a sua dimensão e complexidade de seus problemas, necessita de forma mais rápida de uma específica solução legislativa do que, por exemplo, o Estado do Acre. Tal situação acaba por gerar, efetivamente, o distanciamento entre o direito e os fatos sociais, por conta de uma distribuição constitucional de competências não consentânea com a realidade dos Estados. Devemos redescobrir o direito e a sua relação com essa realidade circundante; atualmente, não cabe mais a figura erudita do legislador que, do interior de seu gabinete cria uma estrutura normativa não consentânea com o mundo real.
CF - Qual sua opinião acerca da constitucionalidade da nova norma?
FC - Creio que a norma, sob o ponto de vista formal e material, é constitucional. Primeiramente, o vício de ordem formal acabou sendo plenamente remediado com a edição de lei federal sobre o tema, afastando a disciplina estadual da matéria. Em segundo lugar, no aspecto material, a lei também logrou assegurar amplamente os direitos e garantias constitucionais do acusado, pois tomou todas as cautelas para que os mesmos não sejam violados. Assim, terá o réu direito à entrevista prévia e reservada com o seu defensor; haverá um defensor no presídio e um advogado na sala da audiência do fórum, os quais poderão se comunicar por intermédio de um canal telefônico reservado; da mesma forma o preso poderá se comunicar pelo canal com o advogado presente no fórum. Isso assume especial dimensão porque é possível que o advogado realize reperguntas ao réu. Além do que, assegura-se sala reservada no estabelecimento prisional para a realização do ato, a qual será fiscalizada pelo Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil, pelos corregedores e pelo juiz da causa, de forma a garantir a lisura do procedimento, bem como a publicidade do ato. Portanto, na essência, nada mudou, já que, o réu poderá se valer de todos os seus direitos constitucionalmente assegurados. Isso por si só afasta os argumentos contrários à videoconferência no sentido de que o mesmo reduziria garantia da autodefesa, pois, não proporcionaria ao acusado a serenidade e segurança necessárias para delatar seus comparsas; e de que não haveria a garantia de proteção do acusado contra toda forma de coação ou tortura física ou psicológica.
CF - O senhor acredita que o interrogatório on line agrediria o direito de o acusado estar perante o juiz, isto é, o de sua presença real no interrogatório?
FC - Dentre os argumentos propugnados contrários ao interrogatório on line, afirma-se que esse recurso tecnológico agrediria o direito de o acusado estar perante o juiz, isto é, o de sua presença real no interrogatório, pois estatui o art. 185, caput, do CPP que o acusado comparecerá perante a autoridade judiciária. No mesmo sentido, prescreve a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), no sentido de que toda pessoa detida deve ser conduzida à presença de um juiz. Ora, a expressão “presença da autoridade” merece uma interpretação consentânea com a evolução tecnológica que se vem processando nos últimos tempos. Quando tais diplomas foram editados, respectivamente, nos idos de 1941 e 1969, sequer se cogitava da existência do sistema de videoconferência. Além do que, o avanço da tecnologia é tamanho, que não haverá prejuízo aos presos, dada a qualidade do som e da imagem do sistema de videoconferência, trazendo ao juiz os mesmos subsídios, que a presença física proporcionaria, para a formação de sua convicção; e, o mais importante, as garantias individuais deles serão resguardadas por membros do Ministério Público, da Magistratura, pela Ordem dos Advogados do Brasil e demais pessoas envolvidas nessa operação.
CF - Quais as conseqüências benéficas do interrogatório por videoconferência?
FC - Muito embora haja inúmeras teses defensivas contrárias ao sistema de videoconferência, deve-se pontuar que o mesmo constitui um avanço incomparável na prática forense. Milhões de reais mensais com despesas de transporte dos réus presos são gastos, além da necessidade de um contingente significativo de policiais militares para a realização da escolta. Sem falar no risco que sofrem os policiais militares e a população em geral com o perigo de fuga dos presos no trajeto até o fórum ou retorno ao presídio, principalmente, pelo fato de os primeiros serem “alvos” de tentativas de resgates de presos por organizações criminosas. Nesse contexto, a utilização da videoconferência trará economias significativas para os cofres públicos, além de disponibilizar o policial militar para a realização da segurança pública, o qual não perderá mais tempo com escoltas. Há mais um ponto positivo: a utilização da videoconferência imprimirá uma maior agilidade ao processo penal, em consonância com o princípio da celeridade processual, expressamente acolhido pelo Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos) e a própria Magna Carta, em seu art. 5º, inciso LXXVIII.
CF - Há muitos argumentos de natureza política criminal favoráveis à utilização da videoconferência. Os direitos e garantias dos réus devem sofrer flexibilização diante de argumentos de tal ordem?
FC - Na verdade, não há flexibilização dos direitos e garantias individuais, mas mera adaptação de um ato processual, o interrogatório, a um novo procedimento, o qual atende aos novos postulados da sociedade, do Poder Judiciário. O Direito não pode caminhar na contramão da realidade. É um erro apartar os argumentos de política criminal do Direito, pois ambos transitam juntos. Há uma unidade que não pode ser quebrada, sob pena de o codificador, o legislador edificarem leis apartadas do mundo real, falsamente universais, inadaptadas à realidade. Quando você afirma que o réu tem direito de estar perante um juiz, o ideal é que isso ocorra no plano concreto, “cara a cara” com o juiz, mas o Direito não se encontra apenas no plano do ideal, forjado na mente humana, sob ele há um pano de fundo concreto, que exige soluções concretas, viáveis. Estar perante o juiz, dadas as condições da realidade, pode, uma vez garantidos os direitos dos acusados, como o fez a Lei, significar ser interrogado pelo sistema de videoconferência, sem que isso implique no aniquilamento desses direitos. Desse modo, é necessária uma conciliação entre aquilo que idealizamos ser o justo, que é o dever ser, e aquilo que a realidade nos clama, que são os fatos, o ser. O homem não pode perder o contato com a realidade, não pode criar regras distantes de sua realidade histórico-cultural, sob pena de apenas transitar no mundo ideal, cujas regras serão estáticas e universalmente falsas.
CF - É possível afirmar que o próprio preso se beneficie com o interrogatório por videoconferência?
FC - É interessante notar que, aqueles que são contrários ao sistema da videoconferência, por entendê-lo inconstitucional, já que, violaria os princípios constitucionais do devido processo legal e da ampla defesa, se esquecem de outro princípio de maior magnitude: o da dignidade da pessoa humana. Ora, é sabido que, no dia da escolta, através do conhecido “bonde”, via de regra, os presos são separados desde cedo, independente do horário do interrogatório, passando por um longo período de espera nos fóruns, acompanhada, muitas vezes, de sede e fome. Lembro-me, por diversas vezes, ter visto presos algemados, um ao lado do outro, olhando para a parede, na espera de serem chamados para o interrogatório. Ora, será, então, que o interrogatório por videoconferência não seria benéfico também para o réu?
CF - Em que situações esse recurso tecnológico o senhor acredita que deva ser empregado?
FC - Primeiramente, é preciso esclarecer que o interrogatório por videoconferência é a exceção. O juiz, de ofício ou a requerimento das partes, em decisão fundamentada, poderá determinar a sua realização, mas desde que para atender a uma das finalidades expressamente previstas em lei. São situações, portanto, excepcionais, devendo a motivação da decisão estar a elas vinculadas. Uma delas consiste em prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa. Ora, é sabido que, comumente, organizações criminosas operam o resgate de presos, que as integram, quando são deslocados até o fórum, de forma que a Lei procurou evitar tais situações. Também poderá se usada essa tecnologia quando houver fundada suspeita de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento. Mais uma vez exige a Lei indícios fundados de que o réu possa fugir, não sendo qualquer risco de fuga apto a justificar tal medida, pois, do contrário, sempre será autorizado o interrogatório por videoconferência, já que, o perigo de fuga é inerente ao ato de deslocamento do preso e essa não é a intenção da Lei. Também, dentre outras situações, se admitirá o interrogatório on line quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal; para impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima. Interessante notar que a Lei n. 11.900/09 não se limitou a autorizar o emprego desse recurso tecnológico apenas no ato do interrogatório, pois abarcou todos os atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, e inquirição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido.
CF - A nova Lei logrou compatibilizar o interrogatório com a nova sistemática do Código de Processo Penal?
FC - Sem dúvida. Com o advento das Leis n. 11.689/2008 e 11.719/2008, que instituíram a audiência única de instrução e julgamento, em que se concentram todos os atos instrutórios, o interrogatório, via de regra, passou a ser realizado após os mesmos, autorizando, assim, a Lei n. 11.900/09, que o preso acompanhe, pelo mesmo sistema tecnológico, a realização dessa audiência única. Isto porque a presença do réu da qual decorre o contato imediato com as provas produzidas em audiência passou a ser de suma importância para o exercício do direito a autodefesa. Tal previsão legal, portanto, é consentânea com o próprio espírito da lei que reforçou a natureza do interrogatório como meio de defesa. Importante notar que o a 2ª Turma do STF, no HC 86634/RJ, deferiu, de ofício, habeas corpus para assegurar a paciente, que se encontra preso, o direito de presença em todos os atos de instrução a serem realizados no âmbito do processo-crime contra ele instaurado, sob pena de nulidade absoluta daqueles aos quais se negar o comparecimento pessoal. A videoconferência, no caso, possibilita essa participação na audiência, sem o transtorno do transporte do preso até o fórum. Além disso, o sistema da videoconferência vai ao encontro do princípio da identidade física do juiz, expressamente acolhido pela recente reforma processual penal e que constitui verdadeiro corolário do princípio da oralidade, do qual decorre outro subprincípio, como o da imediatidade do juiz com as partes e com as provas. Finalmente, o princípio da celeridade processual, pórtico fundamental no qual se estribaram as modificações processuais penais, encontrou um reforço com a aprovação da Lei n. 11.900/2009, que prima pela agilidade processual.
CF - O interrogatório como o senhor havia dito, foi inserido dentro de uma audiência única, de acordo com a recente reforma processual penal. Em que situações o sistema de videoconferência poderá ser utilizado em relação ao interrogatório como ato isolado?
FC - Primeiramente, é preciso esclarecer que a regra continua a ser o interrogatório do réu preso, no estabelecimento em que estiver recolhido, na presença física do juiz, conforme preceitua o art. 185, §1º, ou no próprio fórum, muito embora essa regra, na prática, tenha sofrido influências das Leis n. 11.689/2008 e 719/2008, na medida em que, o interrogatório, como ato processual isolado, deixou de ser a regra, passando a ser realizado dentro de uma audiência única após toda a instrução probatória, inviabilizando, assim, a sua realização no estabelecimento carcerário, exigindo, inclusive o art. 399, §1º, do CPP, que o acusado preso seja requisitado para o seu interrogatório. Haverá, no entanto, situações em que o interrogatório constituirá ato isolado como, por exemplo, na hipótese de o juiz realizar novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes; ou nos procedimentos especiais, como nos processos de competência originária dos tribunais, em que há previsão no sentido de que recebida a denúncia ou a queixa, o relator designará dia e hora para o interrogatório; também na hipótese em que o acusado, citado pessoalmente ou por hora certa, torna-se revel. Nesse caso, poderá o juiz, uma vez comparecendo o acusado, proceder ao seu interrogatório, de acordo com a regra do art. 185 do CPP. O art. 384, §2º, prevê a possibilidade, no caso de mutatio libelli, de o juiz proceder a novo interrogatório. Da mesma forma, será possível um novo interrogatório após a audiência única, quando for concedido prazo para a apresentação de memoriais por força da complexidade do caso ou número de acusados ou quando ordenada diligência considerada imprescindível. Em todas essas situações, o sistema de videoconferência poderá ser utilizado em face do interrogatório como ato processual isolado.
Promotor de Justiça e Deputado Estadual. Presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela USP e doutor pela PUC/SP. Professor da Escola Superior do Ministério Público e de Cursos Preparatórios para Carreiras Jurídicas. Presidente do Instituto de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Bandeirante (UNIBAN). Autor de diversas obras jurídicas. Coordenador das Coleções Estudos Direcionados e Pockets Jurídicos da Editora Saraiva. Site: www.fernandocapez.com.br
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAPEZ, Fernando. Interrogatório por videoconferência Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 mar 2009, 00:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/227/interrogatorio-por-videoconferencia. Acesso em: 23 nov 2024.
Por: Adel El Tasse
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: RICARDO NOGUEIRA VIANA
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Precisa estar logado para fazer comentários.