Na sessão do último dia 02 de fevereiro, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº. 119816, o Ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que o Habeas Corpus não comporta o reexame dos elementos de convicção considerados pelo Magistrado sentenciante na avaliação das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal.
Segundo o relator, “o que está autorizado é apenas o controle da legalidade dos critérios utilizados, com a correção de eventuais arbitrariedades. No caso, entretanto, não se constata qualquer vício apto a justificar o redimensionamento da pena-base nesta via recursal.”
Esta decisão certamente representa mais um retrocesso na jurisprudência (defensiva) da Suprema Corte, em relação à garantia constitucional do Habeas Corpus. Mais uma...
Não é de hoje que a nossa Corte Constitucional vem menosprezando esta ação constitucional, ora dificultando o seu conhecimento (veja, por exemplo, os Enunciados 691 e 692, além do entendimento, hoje pacificado, da impossibilidade de substituição do Recurso Ordinário Constitucional pelo Habeas Corpus), ora não concedendo a ordem, quando patente a ilegalidade ou o abuso de poder, especialmente quando se trata de um caso penal com repercussão midiática, onde falta coragem para decidir conforme a Constituição Federal.
Tais decisões não somente destoam da Constituição Federal, como da própria essência do Habeas Corpus, cuja origem histórica mais remota pode ser encontrada no Direito Romano, com um dos conhecidos interditos (e foram dezenas...), o interdictum de homine libero exhibendo.
Richard D. Baker explicava este interdito pretorial como um "instrumento que providenciava a restauração temporária da liberdade física de uma pessoa mantida sob coação por uma parte privada, enquanto a justificação era julgada por um processo separado." O mundo ocidental então inspirou-se até que se chegou, em 1215, ao que hoje conhecemos.
Ora, no caso de erro grosseiro na aplicação de uma pena a ilegalidade é indiscutível, pois, certamente, houve mácula ao art. 59 ou art. 68 do Código Penal. Um ou outro dispositivo legal foi infringido e, por conseguinte, a ilegalidade ocorreu.
Por sua vez, o erro do Juiz sentenciante acarreta um prejuízo indiscutível para o condenado, refletindo imediata (ou potencialmente, pouco importa) no seu direito (garantido constitucionalmente pelo Habeas Corpus) de liberdade.
Logo, por que não caber o Habeas Corpus ou mesmo o Recurso Ordinário Constitucional? Porque o julgamento do Habeas Corpus "não comporta o reexame dos elementos de convicção considerados pelo Magistrado sentenciante na avaliação das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do Código Penal"?
Mas, onde há esta restrição no texto constitucional?
Muito corretamente escreve Aury Lopes Jr., afirmando que "não se pode confundir dilação probatória com análise da prova (pré-constituída). A sumarização da cognição impede que se pretenda produzir prova em sede de habeas corpus ou mesmo obter uma decisão que exija a mesma profundidade da cognição do processo de conhecimento (ou seja, aquela necessária para se alcançar a sentença de mérito)", sendo, portanto, "perfeitamente possível a análise da prova pré-constituída, independente da complexidade da questão. O fato de ser o processo complexo, constituído por vários volumes e milhares de páginas, não é obstáculo ao conhecimento do habeas corpus.”
Assim, por óbvio, que "a complexidade das teses jurídicas discutidas e a consequente análise de documentos ou provas já constituídas não são obstáculos para o habeas corpus", não podendo "se confundir sumariedade na cognição com superficialidade da discussão", pois, "de modo algum, significa que somente questões epidérmicas ou de superficialidade formal possam ser objeto do writ."
Há, outrossim, outro aspecto a ser pontuado.
Com efeito, o erro na aplicação da pena afronta a Constituição Federal, art. 5º., XLVI, dispositivo que trata da individualização da pena. Como ensina Luiz Luisi, “o processo de individualização da pena se desenvolve em três momentos complementares: o legislativo, o judicial, e o executório ou administrativo.” Explicitando este conceito, o mestre gaúcho ensina: “Tendo presente as nuanças da espécie concreta e uma variedade de fatores que são especificamente previstas pela lei penal, o juiz vai fixar qual das penas é aplicável, se previstas alternativamente, e acertar o seu quantitativo entre o máximo e o mínimo fixado para o tipo realizado.”
Também sobre este princípio, Luis Miguel Reyna Alfaro, afirma que “la individualización judicial de la pena a imponer, es uno de los más importantes aspectos que deben ser establecidos por los tribunales al momento de expedir sentencia. Sostienen por ello con absoluta razón ZAFFARONI/ ALAGIA/ SLOKAR que la individualización judicial de la pena debe servir para ´contener la irracionalidad del ejercicio del poder punitivo`. Este proceso de individualización judicial de la pena es ciertamente un proceso distinto y posterior al de determinación legal de la misma que es realizado por el legislador al momento de establecer normativamente la consecuencia jurídica. Esta distinción es importante porque nos permite marcar la diferencia –a la que recurriremos posteriormente- entre ´pena abstracta` y ´pena concreta`. La primera está relacionada a la pena determinada legalmente por el legislador en el proceso de criminalización primaria, mientras la segunda se refiere a la pena ya individualizada por el operador de justicia penal, dentro del proceso de criminalización secundaria. Adicionalmente, ésta distinción ´pena abstracta- pena concreta` sirve para comprender que el proceso de individualización judicial de la pena es un mecanismo secuencial que pasa, en primer lugar, por establecer cuál es la pena establecida por el legislador para, en segundo lugar y sobre esos márgenes, establecer la aplicable al caso concreto y la forma en que la misma será impuesta. Como se indicó anteriormente, el proceso de individualización judicial de la pena debe necesariamente encontrarse vinculado a los fines de la pena, lo que obliga a introducirnos al inacabable debate sobre el fin de la pena.”
Ora, se a individualização da pena não foi observada em uma sentença condenatória, ou seja "si por alguna razón un condenado por sentencia firme puede seriamente argumentar que a esa condena se llegó con violación de sus derechos constitucionales, firmemente creo que los tribunales no deberían cerrarle a aquél, como de un portazo, la vía del habeas corpus." (grifamos).
Portanto, é preciso que os nossos Juízes, Desembargadores e Ministros leiam Pontes de Miranda, quando afirma que, ao julgarem um Habeas Corpus, devem saber que estão diante da "pedra de toque das civilizações superiores, um dos poucos direitos, pretensões, ações e remédios com que se sobrepõem aos séculos passados, mal saídos da Idade Média e dos absolutismos dos reis, os séculos da civilização liberal-democrática, nos países em que ela logrou se firmar. Fazer respeitada a liberdade física é um dos meios de servir e sustentar essa civilização, a que todos os homens, de todos os recantos da Terra, se destinam, sem ser certo que todos a logrem. Os que não a lograrem desaparecerão."
NOTAS:
“La individualización judicial de la pena. Especial referencia al artículo 46 CP peruano”, encontrado no site www.eldial.com – 13 de junho de 2005.
CARRIÓ, Alejandro D., Garantías Constitucionales en el Proceso Penal, Buenos Aires: Hamurabi, 5ª. ed., 2007, p. 210.
História e Prática do Habeas Corpus, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1999, páginas. 332 e 333.
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