Recente decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal deixou assente que, desde a ratificação, pelo Brasil, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 27, de 25-9-1992, e promulgada pelo Decreto n. 678, de 6-11-1992), não haveria mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, prevista no art. 5º, LXVII, mas apenas para a prisão civil decorrente de dívida de alimentos.
O entendimento firmado, desta forma, tem como pano de fundo a questão da validade da prisão civil do depositário infiel, expressamente proscrita pela Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual assegura que: “Ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar” (art. 7º, 7), mas que é expressamente acolhida pela Carta Magna, a qual prescreve que: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
O conflito entre tais diplomas legais conduziu ao questionamento da hierarquia assumida pelos tratados e convenções internacionais de proteção dos direitos humanos em nosso ordenamento jurídico, tendo por fundamento o art. 5º, § 2º, da CF.
Antes do advento da Emenda Constitucional n. 45/2004, a controvérsia acabou sendo submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, o qual havia cristalizado interpretação no sentido de que esses tratados teriam posição subalterna no ordenamento jurídico, de modo que não poderiam prevalecer sobre norma constitucional expressa, permanecendo a possibilidade de prisão do depositário infiel. Nesse sentido: “Prisão civil de depositário infiel (CF, art. 5º, LXVII): validade da que atinge devedor fiduciante, vencido em ação de depósito, que não entregou o bem objeto de alienação fiduciária em garantia: jurisprudência reafirmada pelo Plenário do STF — mesmo na vigência do Pacto de São José da Costa Rica (HC 72.131, 22-11-1995, e RE 206.482, 27-5-1998) — à qual se rende, com ressalva, o relator, convicto da sua inconformidade com a Constituição (STF, 1ª T., RE 345.345/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 25-2-2003, DJ 11 abr. 2003, p. 926).
Acabando com essa celeuma, a EC n. 45/2004, que acrescentou o § 3º ao art. 5º da CF, passou a prever expressamente que os tratados e convenções internacionais serão equivalentes às emendas constitucionais, somente se preenchidos dois requisitos: (a) tratem de matéria relativa a direitos humanos + (b) sejam aprovados pelo Congresso Nacional, em dois turnos, pelo quorum de três quintos dos votos dos respectivos membros (duas votações em cada Casa do Parlamento, com três quintos de quorum em cada votação). Obedecidos tais pressupostos, o tratado terá índole constitucional, podendo revogar norma constitucional anterior, desde que em benefício dos direitos humanos, e tornar-se imune a supressões ou reduções futuras, diante do que dispõe o art. 60, § 4º, IV, da CF (as normas que tratam de direitos individuais não podem ser suprimidas, nem reduzidas nem mesmo por emenda constitucional, tornado-se cláusulas pétreas).
Tal situação trouxe dúvidas quanto aos tratados e convenções internacionais promulgados antes da EC n. 45/2004, isto é, sobre a necessidade ou não de submetê-los ao quorum qualificado de aprovação, como condição para tornarem-se equivalentes às emendas constitucionais.
Ficaria, então, a questão: o Pacto de São José da Costa Rica, promulgado anteriormente à EC n. 45, para tornar-se equivalente às emendas constitucionais e proibir a prisão do depositário infiel, necessitaria ser aprovado pelo Congresso Nacional pelo quorum de três quintos dos votos dos respectivos membros?
Recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no HC 87585/TO, do qual é relator o Ministro Marco Aurélio, na data de 3.12.2008, decidiu que, com a introdução do Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia (art. 7º, 7), em nosso ordenamento jurídico, restaram derrogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel, prevista na Magna Carta. Segundo consta do Informativo 531 do STF, prevaleceu, no julgamento, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo Min. Gilmar Mendes no julgamento do RE 466343/SP. (HC 87585/TO, rel. Min. Marco Aurélio, 3.12.2008.) . Note-se que, no referido julgado, restaram vencidos, no ponto, os Ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, perfilhando o entendimento expendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O Min. Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento.
No RE 349703/RS (rel. orig. Min. Ilmar Galvão, rel. p/ o acórdão Min. Gilmar Mendes, 3.12.2008) e no RE 466343/SP (rel. Min. Cezar Peluso, 3.12.2008) a mesma orientação acima foi seguida. No entanto, vale mencionar que, no RE - 466343, o Min. Celso de Mello, embora tenha concluído pela inadmissibilidade da prisão civil do depositário infiel, defendeu a tese de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil teriam hierarquia constitucional e não status supralegal. Assim, consoante o Informativo 498 do STF: “No ponto, destacou a existência de três distintas situações relativas a esses tratados: 1) os tratados celebrados pelo Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da CF/88, revestir-se-iam de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos nessa condição pelo § 2º do art. 5º da CF; 2) os que vierem a ser celebrados por nosso País (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, deverão observar o iter procedimental do § 3º do art. 5º da CF; 3) aqueles celebrados pelo Brasil (ou aos quais nosso País aderiu) entre a promulgação da CF/88 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade. RE 466343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 12.3.2008. (RE-466343)”.
De qualquer modo, independentemente do status que assumiriam os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, no ordenamento jurídico brasileiro, é possível concluir, segundo a decisão exarada no HC 87585/TO, que o Pacto de São José da Costa Rica, subscrito pelo Brasil, torna inaplicável a legislação com ele conflitante, não havendo mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, sendo admitida apenas na hipótese de dívida alimentar.
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