O Supremo Tribunal Federal protagonizou decisão emblemática e histórica determinando a prisão do condenado em segundo grau, o que pode ser representativo de uma mudança de postura contra a escalada dos crimes blindados pelo poder político e financeiro que sentenciam o Estado como perpetrador de impunidades seletivas.
O “garantismo constitucional” da presunção de inocência vem de muito tempo sendo utilizado com crassos equívocos, quando o “direito dos costumes” açambarcado na jurisprudência e entre a maioria da doutrina passou a pregar sem razão de direito a premissa da culpa ou dolo submetido ao preceito da coisa julgada. O relator do habeas corpus 126292, ministro Teori Zavascki, entendeu que a manutenção da sentença penal pela segunda instância encerra a análise de fatos e provas confirmam a culpa do condenado, e, por isso, a execução da pena fica autorizada.
É inequívoco que o Supremo Tribunal Federal alterou sua jurisprudência, seu entendimento até então que baseava-se no julgamento de um HC 84.078 de 2009 mo voto do ministro Eros Grau, quando condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado, mas ressalvava a possibilidade da decretação da prisão preventiva.
O princípio da Presunção de Inocência possui uma leitura que deve ser clara e precisa, sem que se coloquem jabutis e árvores. Em uma primeira formulação, o réu ser presumido inocente significa, por um lado, que o ônus de provar a veracidade dos fatos que lhe são imputados é da parte autora na ação penal (em regra, o Ministério Público) e, por outro lado, que se permanecer no espírito do juiz alguma dúvida, após a apreciação das provas produzidas, deve a querela ser decidida a favor do réu. Também da incidência no encarceramento ante tempus - legítimo se presentes motivos concretos justificadores devida e fundamentadamente demonstrados pelo magistrado na decisão interlocutória -, em que o princípio da presunção da inocência (innocentia praesumitur ante condemnationem; CRFB´88, art. 5.º, LVII) veda qualquer antecipação de juízo condenatório ou mesmo de culpabilidade.
De fato o que mais interessa à questão no atinente as convenções internacionais: Declaração Universal dos Direitos Humanos (1), artigo XI: "Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."; Pacto de São José da Costa Rica (2), artigo 8.º, n.º 2, in verbis: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se comprove legalmente a sua culpa." Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de Nova Iorque (3), artigo 14, n.º 2, ipsis litteris: "Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa."
Em nenhum momento dá-se ao réu a garantia de 3 ou 4 instâncias, de trânsito em julgado para que se inicie a execução da penas, mas sim de um duplo grau, com a reanálise via recurso para um tribunal superior ao ao 1º juízo proferido, e assenta-se, a culpa só pode se dar a partir da análise das provas, o que se faz exaustivamente até o final da instância ordinária, que se dá com a decisão do órgão colegiado de 2º grau.
Nossa Constituição assim posiciona-se:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; (presunção de não culpabilidade)
(...).
De tudo que se tem sobre a temática da presunção de inocência em nenhum momento se encontra óbice para que a prisão seja realizada e o processo sincrético encontre a sua efetividade. Realizada a prisão em 2º grau esta sustentou-se a partir de dois juízos exaurientes, um primário e monocrático e outro recursal de inconformismo e colegiado. Neste instante tem-se o fim das instâncias ordinárias, quando fatos e provas já foram demonstrados e valorados, quando já se possui um juízo monocrático e colegiado exaurientes. É no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, demais disso, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado, quando os recursos de natureza extraordinária não seriam desdobramento do duplo grau de jurisdição, uma vez que não são recursos de ampla devolutiva, pois não servem ao debate da matéria fática probatória.
Nesse contexto, se a restrição da liberdade é possível mesmo na fase de investigação criminal, onde o juízo de culpabilidade sobre o investigado ainda está em formação, muito mais justificável seria a decretação de sua prisão após uma decisão condenatória em segundo grau, onde, conforme exposto, já se teria exaurido a possibilidade de exame de fatos e provas e, inclusive, já estaria delimitada a responsabilidade criminal do acusado. Vale lembrar ainda que os recursos especial e extraordinário não tem efeito suspensivo, por isso não pode impedir o início da execução da pena.
Em interpretação nossa, à medida que juízos exaurientes se vão proferindo sobre o mesmo caso, a presunção de não culpabilidade do acusado vai-se entorpecendo, desfalecendo-se. Após duas condenações, uma em juízo monocrático e outra em juízo colegiado com amplo espectro fático-probatório difícil falar em presunção de inocência, quando faticamente nos denota mais aproximado falar em "presunção de culpa" - entre aspas! Por nosso sistema assoberbado de possibilidades recursais e quase que impeditivo de que o processo penal cumpra o seu desiderato com uma resposta final e pacificadora em especial aos crimes de grande repercussão e de réus privilegiados, a instância extraordinária ainda resta como possibilidade arrefecida de uma absolvição final, e portanto, a presunção de não culpabilidade prevista no inciso LVII da Constituição da 1988 ainda respira, mas já certamente por aparelhos.
Não há razão para se defender que uma “execução provisória da pena” com fundamento em um juízo colegiado condenatório não se revele uma possibilidade garantidora de uma potencial maior efetividade na jurisdição Estatal, pois vejamos:
O jornalista Pimenta Neves (63), então diretor de redação do jornal O Estado de São Paulo, matou sua namorada Sandra Gomide (32) em agosto de 2000. Após ter sido condenado no Tribunal do Júri e no TJ-SP, conseguiu reter a decisão final nos tribunais superiores por anos. Só foi julgado em definitivo no STF em maio de 2011, quando iniciou o cumprimento de sua sentença.
O empresário e ex-Senador (DF) Luiz Estevão foi acusado de desvio de recursos no valor de R$ 2 bilhões, na construção do TRT de São Paulo, cuja licitação ocorreu em 1992 (Caso Lalau). Somente em 9 de dezembro de 2015 ele foi condenado em definitivo pelo STF a cumprir pena de 26 anos de reclusão. Segundo notícia no site do Correio Braziliense, a defesa de Luiz Estevão apresentou 21 recursos e 11 Habeas Corpus. A demora foi-lhe vantajosa, pois levou à prescrição das penas relativas aos crimes de formação de quadrilha e de uso de documento falso.
Na área ambiental, o empresário Luiz Ruppenthal foi acusado dos crimes de poluição e outros pela morte de 86 toneladas de peixes, fatos ocorridos em outubro de 2006. Foi julgado no TJ-RS em abril de 2009. A sentença não pôde ser executada, pois foi interposto recurso ao STJ. Neste tribunal, só em abril de 2015 a sua situação foi definida pela 6ª Turma (Emb. Declaração no Ag. Regimental no Agravo 1.383.285 RS), quando se reconheceu a prescrição dos crimes dos artigos 68 e 69 da Lei 9.605/98, mantendo-se a condenação apenas pelo de poluição (artigo 54). Não houve recurso ao STF mas, caso houvesse, muito provavelmente este último delito também prescreveria.
A decisão mais atual do STF estabelece uma situação de isonomia, de não privilégios odiosos de fins censitários. A espera do trânsito em julgado para poder iniciar a execução da pena era degradantemente ineficiente, injusta e desigual, quando réus menos abastados, que representam a imensa maioria da sociedade, representado por advogados com “menor potencial de convencimento”, nem sequer recorrem ao STJ e ao STF, ou quando recorrem, ou por imperícia ou ausência de “grife” tem os seus pedidos negados, quando para os seus clientes a execução da pena acaba por definitiva e imediata.
Vale lembrar para os que insistirem pela leitura que se tornou tradição no direito pátrio que a “presunção de inocência” não se fez letra morta com a decisão que se comenta, apenas foi melhor adequada aos termos de uma exigível duração razoável do processo, nos lindes do art. LXXVIII da Constituição Federal, quando o réu que recorra as instancia extraordinárias não lhe poderá ainda ser imposto o juízo de definitivamente culpado graças as nossas defenestráveis possibilidades infindas recursais, mas indelevelmente sua presunção de inocência ou de não culpabilidade está em processo de asfixiamento tendente a morte, e por isso, para se garantir a aplicação das penas em tempo razoável, no objetivo de não mais privilegiar os que usufruem em desvio de seus poderes, os donos das grandes fortunas e/ou os de influências junto aos poderes constituídos, com o fito de se atenuar a regra que distingue os crimes de colarinho branco blindados pela pecha da impunidade.
Findamos rememorando que a atuação do STF e STJ não é igual à dos outros tribunais – sua função aqui é guardar o ordenamento jurídico e não a situação individual das partes. A parte poderá ser beneficiada por essa guarda, mas a mera alegação de que as decisões anteriores lhe foram “injustas” não servem para fundamentar esses recursos, não servindo ao propósito de meros revisores de matérias de fato.
Retirando o privilégio fático que determinados acusados ostentam por suas influências e poderes que a esmagadora parcela da população não goza, far-se-á uma justiça indubitavelmente mais isonômica (princípio da Isonomia), mais célere (princípio da Razoável Duração do Processo) e por isso com maior propensão para que se efetive com justiça (princípio da Efetividade da Jurisdição). Certo é, corroborando nossa tese, que os tribunais extraordinários saem do campo dos fatos e provas e adentram definitivamente ao campo da política, quando o direito em muitas oportunidades acaba morto, enterrado e vilipendiado pelas razões que o poder político escambia quase sempre por razões que nem a boa moral nem o melhor direito referendariam.
O STF deve cada vez mais cuidar das questões constitucionais e de verdadeira repercussão, assim como o STJ deve olhar para as questões federais que também apresentem repercussão, não havendo mais cabimento, de lege ferenda, perceber as instâncias extraordinárias como graus recursais travestidas de refugio protelatório com o fulcro de agasalhar a impunidade dos mais abastados (economicamente e/ou pelo poder) conferindo apenas às grandes corporações a possibilidade do prolongamento da execução das penas de seus representados para que respondam por suas mazelas. Há ainda muito para mudar, mas este foi um pequeno passo para se frear as deletérias influências dos poderes nas decisões judiciais criminais. E basta de hipocrisia, pois o direito deve acompanhar as nossas reais necessidades sem apequenar-se diante das pressões do capital e de interpretações que por consequência degradam todo um sistema.
Deve sim o STF posicionar-se em definitivo sobre a questão pacificando-a, quem sabe quando provocado em controle concentrado e/ou por meio de súmula vinculante para que se alcance maior grau de segurança jurídica.
A justiça não é o locus apropriado para o debate de teses, mas o lugar para nos seios da realidade buscar a pacificação social, e neste presente sabendo conjugar, ponderar o direito à liberdade e o dever de efetividade dos processos ou o direito da sociedade a obtenção de uma prestação jurisdicional isonômica, sem privilégios odiosos e em tempo.
Advogado. Professor constitucionalista, consultor jurídico, palestrante, parecerista, colunista do jornal Brasil 247 e de diversas revistas e portais jurídicos. Pós graduado em Direito Público, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e com MBA em Direito e Processo do Trabalho pela FGV.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARMENTO, Leonardo. STF em decisão histórica! Em busca da efetividade do processo criminal e da isonomia - nossas considerações Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 mar 2016, 04:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2326/stf-em-decisao-historica-em-busca-da-efetividade-do-processo-criminal-e-da-isonomia-nossas-consideracoes. Acesso em: 26 nov 2024.
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