Na Bahia, Otávio Mangabeira, velho político, Governador do Estado no período compreendido entre os anos de 1947 a 1951, cunhou uma frase que atravessa décadas sendo repetida sempre que estamos diante de um absurdo em nosso Estado: “Pense num absurdo, na Bahia tem precedente.” Não é bem assim... Absurdos encontramos em todos os Estados da Federação, inclusive, no Distrito Federal, onde está a cúpula do Poder Judiciário brasileiro com suas decisões muitas vezes absurdamente distanciadas dos princípios constitucionais.
Pois bem.
Desta vez deparamo-nos com algo inusitado: um “Comunicado” (sabe-se lá que validade jurídica tem), subscrito pelo Desembargador Sylvio Baptista Neto, Presidente da 1ª. Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no qual determina (ou comunica?) “que, a partir da sessão prevista para o dia 23 de março de 2016, inclusive, só serão permitidas sustentações orais em Recursos em Sentidos Estrito e Apelações Criminais.”
O estranho Comunicado (que determina...) leva em consideração o disposto no art. 177, § 14º., do Regimento Interno daquela Corte, segundo o qual “será admitida a sustentação oral somente nas hipóteses expressamente previstas no Código de Processo Civil e no Código de Processo Penal.”
Qual, então, a lógica dos integrantes do órgão fracionário do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul? Como “o Código de Processo Penal prevê, em seus artigos 610 e parágrafo único e 613 (Artigo 610: Nos recursos em sentido estrito, com exceção de habeas corpus, e nas apelações interpostas..., § único (sic): Anunciado o julgamento pelo presidente, e apregoadas as partes, com a presença destas ou à sua revelia, o relator fará a exposição do feito e, em seguida, o presidente concederá, pelo prazo de 10 (dez) minutos, a palavra aos advogados ou às partes que a solicitarem..., (sic) e ao procurador-geral, quando o requerer, por igual prazo. Artigo 613: As apelações interpostas das sentenças proferidas em processos por crime a que a lei comine pena de reclusão, deverão ser processadas e julgadas pela forma estabelecida no artigo 610, com as seguintes modificações...), apenas a sustentação oral para as hipóteses de Recursos em Sentido Estrito e Apelação Criminal”, então assim será! Afinal de contas vestem togas e são os últimos bastiões da República. Podem dizer tudo (ou comunicar, determinando...). Aliás, assim tem sido na República, onde se prende Senador em flagrante inexistente e por crime afiançável; conduz-se coercitivamente indiciados e réus que têm o direito ao silêncio e o de não produzir provas contra si mesmo, prende-se preventivamente para forçar delações premiadas que, depois, serão vazadas para setores privilegiados da imprensa, interceptações telefônicas idem, inclusive da Chefe de Estado (ainda que depois sejam pedidas desculpas pelo transtorno causado...), etc.
Vê-se, às escâncaras, que o velho caudilho baiano não tinha lá suas razões inteiras. Absurdos também acontecem alhures. E em um Tribunal onde já brilhou a estrela de um Nereu José Giacomolli, nada obstante, um homem simples.
O Comunicado erra ao interpretar um texto dentro “daquele contexto”. Os artigos referidos são datados: 1º. de janeiro de 1942, quando entrou em vigor o Código de Processo Penal, cuja Exposição de Motivos é assinada pelo então Ministro da Justiça Francisco Campos, que se vivo hoje estivesse, certamente estava a engrossar as fileiras em favor do impeachment, pois era um “golpista de carteirinha”, tendo prestado seus serviços em 1937 e 1964.
Obviamente que estes dispositivos devem ser hoje interpretados sob a ótica da nova ordem constitucional, dos Pactos Internacionais e da respectiva normatividade. Não se compadece com uma interpretação digna de uma Corte de Justiça tal restrição. Evidentemente que este artigo tem aplicação quando se tratar de outros recursos, inclusive o Agravo em Execução, a Carta Testemunhável e a Correição Parcial. Por todos, veja-se o Mestre Tourinho Filho (2009, p. 397).
E o que dizer da impossibilidade da sustentação oral nos processos de Habeas Corpus? Ora, a exceção estabelecida no caput do art. 610 justificava-se em razão do que se continha no art. 611, revogado pela ditadura militar por meio do Decreto-lei nº. 552/1969 (tornando mais moroso o procedimento do Habeas Corpus e colocando o então manietado Ministério Público como “vigia” das decisões do Judiciário). Revogado expressamente o art. 611, “cumpria ao legislador alterar a redação do art. 610, ajustando-o ao novo texto legal. Não o tendo feito, a tarefa ficou reservada à doutrina e jurisprudência.” (TOURINHO, 2009, p. 397).
Portanto, por óbvio, que cabe a sustentação oral no procedimento do Habeas Corpus. Aliás, assim o seria, ainda que o Código de Processo Penal estabelecesse o contrário, pois uma tal disposição entraria em rota de colisão com o art. 5º., LIV, LV e LXVIII, da Constituição Federal: Princípio do Devido Processo Legal, com os seus consectários – ampla defesa e contraditório, e o Habeas Corpus como garantia ao direito à liberdade de locomoção.
Ademais, observa-se que ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs. 1.105-7 e 1.127-8 (DOU de 26 de maio de 2006), o Supremo Tribunal Federal, declarando a inconstitucionalidade do art. 7º., IX da Lei nº. 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), apenas afirmou, conforme consta da ementa, que “a sustentação oral pelo advogado, após o voto do relator, afronta o devido processo legal, além de poder causar tumulto processual, uma vez que o contraditório se estabelece entre as partes.” Portanto, segundo a Suprema Corte, inconstitucional não é “sustentar oralmente as razões de qualquer recurso ou processo, nas sessões de julgamento” (conforme constava do texto do inciso impugnado), mas fazê-lo “após o voto do relator” (aqui, faço um adendo: qual o sentido mesmo de uma sustentação oral antes do voto do relator, voto, aliás, já conhecido pelos demais integrantes do órgão – e, geralmente uníssonos? Claro que a disposição, longe de inconstitucional, privilegiava a ampla defesa, pois não se pode contra-argumentar sem os argumentos. Já que estamos falando de absurdos...).
A propósito, no julgamento do Habeas Corpus nº. 150.937-RJ, a 5ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, relator Ministro Felix Fischer, deixou-se consignado na ementa que “a frustração da sustentação oral viola as garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, posto que esta constitui ato essencial a defesa. (Precedentes do STF e do STJ).”
O Comunicado da Câmara Criminal do Tribunal do Rio Grande do Sul, ademais, viola o Princípio da Legalidade no Processo Penal que, segundo Hassemer, “deve se reportar à ética do Estado de Direito. Ela corresponde às ideias da separação dos poderes, à certeza legal, à igualdade, ao Estado de Direito. O princípio da legalidade, no processo penal, é um rebento das ideias, as quais, conforme a filosofia política do Iluminismo, são válidas para a relação entre direito penal e processual penal, em um Estado moderno.” (HASSEMER, 2007, p. 49).
O processo de Habeas Corpus e o respectivo procedimento não podem admitir tergiversações de qualquer natureza, muito menos interpretações contrárias à Constituição Federal. Suprimir o direito de sustentação oral da defesa em sede de Habeas Corpus (ou mesmo de qualquer recurso defensivo) é menoscabar um valor: a liberdade. E isso é intolerável em um Estado Democrático de Direito que “está designado para trilhar os interesses comuns assumidos por aqueles que vivem sob ele, e somente tais interesses comuns. Sob o ideal da não-dominação, isso significa que, na medida em que o Estado é democrático – um assunto, inevitavelmente de grau imperfeito – nessa medida ele não será arbitrário e não comprometerá a liberdade de seus membros. Suas leis coercivas, decretos e outras iniciativas condicionarão as escolhas do povo, como as limitações naturais o fazem, mas o Estado não comprometerá a liberdade do povo na forma de uma presença dominadora.” (PETTIT, 2007, p. 247). Muito menos por um estranho Comunicado.
REFERÊNCIAS:
1) HASSEMER, Winfried, Direito Penal Libertário, Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
2) PETTIT, Philip, Teoria da Liberdade, Belo Horizonte: Del Rey, 2007.
3) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, São Paulo, Saraiva, 2009, 12ª. Edição.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. O curioso comunicado da Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 abr 2016, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/2359/o-curioso-comunicado-da-camara-criminal-do-tribunal-de-justica-do-rio-grande-do-sul. Acesso em: 26 nov 2024.
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