A chamada interpretação progressiva ocorre quando um dispositivo de lei deve ser submetido a atualização por via interpretativa, sempre que há uma alteração nas circunstâncias sociais e esse dispositivo permite uma ampliação ou restrição de sentido.
Um exemplo prático dessa interpretação progressiva e ampla do dispositivo encontra-se na decisão do STJ no HC 51.531 – RO (2014/0232367-7), tendo como Relator o Ministro Nefi Cordeiro, equiparando mensagens de texto e conversas via whatsapp a comunicações telefônicas de qualquer natureza preconizadas pela Lei 9296/96 e exigentes de ordem judicial para acesso e transcrição, sob pena de ilicitude probatória.
Assim se manifesta o Ministro:
“Nas conversas mantidas pelo programa whatsapp, que é forma de comunicação escrita, imediata, entre interlocutores, tem-se efetiva interceptação inautorizada de comunicações. É situação similar às conversas mantidas por e-mail, onde para o acesso tem-se igualmente exigido a prévia ordem judicial. (...). Atualmente, o celular deixou de ser apenas um instrumento de conversação pela voz à longa distância, permitindo, diante do avanço tecnológico, o acesso de múltiplas funções, incluindo, no caso, a verificação da correspondência eletrônica, de mensagens e de outros aplicativos que possibilitam a comunicação por meio de troca de dados de forma similar à telefonia convencional”.
O “decisum” paradigmático em comento já gera frutos nos Tribunais Estaduais:
“Direito Processual Penal. Prova. Realização de interceptação de comunicação telefônica, informática ou telemática, ou quebra de segredo de justiça sem autorização judicial. Teoria dos frutos da árvore envenenada. 1. Declaro, de ofício, a nulidade das provas obtidas pelo aplicativo Watsapp por ausência de autorização judicial (Precedente STJ – RHC 51.531 – RO, 6ª. Turma) 2. Impõe-se a rescisão do julgado quando este for contrário à evidência dos autos, desclassificando-se para o artigo 28, da Lei de Drogas, com remessa da ação penal ao Juizado Criminal, prejudicado o exame das demais teses. 3. Ação revisional julgada parcialmente procedente” (TJGO – S. Crim – Rev. Crim. 428199 – 19.2015.8.09.0000 – rel. Lilia Monica de Castro Borges Escher – j. 21.09.2016 – public. 03.10.2016).
Seguindo o raciocínio pretoriano, Melo e Silva aduz:
“Nesses casos, o direito à privacidade não pode ser mitigado em razão do constante e crescente desenvolvimento tecnológico que transformou os celulares em verdadeiros microcomputadores, em que é possível enviar mensagens de texto, acessar a internet, verificar e enviar e – mails e, o mais utilizado ultimamente, enviar mensagens por meio de aplicativos utilizando a internet, que funcionam como verdadeiros e – mails vinculados a uma conta telefônica.
Daí por que a inquestionável disponibilização e o crescente uso desses artefatos tecnológicos da sociedade já demarcaram a mudança de paradigma no mundo do armazenamento e da comunicação de dados e informações. Por isso, essa atual realidade está a exigir nova perspectiva hermenêutica da legislação que disciplina a garantia da privacidade. E assim deve ser porque as garantias fundamentais dadas aos cidadãos, consagradas na Carta Magna de 1988, devem, em função desse novo quadro da tecnologia das comunicações, ser vistas com o olhar do século XXI, para frente, em uma visão prospectiva”.
O mesmo autor lembra importante marco para reforçar esse entendimento. Trata-se da Lei 12.965/14 que assim prevê em seu artigo 7º, incisos I a III:
“Art. 7º. O acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania, e ao usuário são assegurados os seguintes direitos:
I-inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
II-inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei;
III-inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas, armazenadas, salvo por ordem judicial”.
Observe-se que no caso do whatsapp e outros aplicativos similares, inclusive as comunicações “armazenadas” e não somente aquelas em “fluxo” são resguardadas por reserva de jurisdição, o que revela o acerto da doutrina do das decisões jurisprudenciais expostas. Essa reserva, portanto, emana tanto da Constituição Federal (artigo 5º., incisos X e XII) como da legislação ordinária específica (artigo 7º, I, II e III da Lei 12.965/14).
Tenha-se em mente que atualmente, por meio de um aparelho celular, é viável acessar o conteúdo de conversas e comunicações em geral, com potencial violador da intimidade ainda maior do que com o mero acesso a conversas telefônicas que são breves e não deixam registro escrito. O acesso a um celular pode dar conhecimento não somente de comunicações verbais e escritas, mas até mesmo de dados bancários, fotos, documentos, filmagens, mídias em geral. A situação chega a configurar, no dizer de Melo e Silva, uma verdadeira “interceptação previamente degravada” a que os órgãos investigativos têm acesso para simples leitura.
Citando o escólio de Knunik, pode-se dizer o “novo paradigma tecnológico” conduz a uma necessária “proteção ao direito probatório de terceira geração”. Nesse passo, “e – mails ou conversas instantâneas através da internet não podem ser consideradas ‘cartas abertas’ nas mãos da polícia”.
Por outra banda o mesmo STJ, no RHC 75.800, julgado pela sua 5ª. Turma, decidiu que se houver ordem de busca e apreensão do celular está implícita a verificação do conteúdo de quaisquer mensagens, ligações, textos, fotos, imagens etc. A ordem judicial de busca e apreensão, por consequência lógica, permitiria o acesso aos dados. Este foi o argumento do Ministro relator, Felix Fischer, ao afirmar que a ordem de busca “não possui irregularidades e permite a coleta de mensagens”. Outro argumento foi o de que a busca do celular seria inútil se não houvesse o direito de acesso aos dados, já que o aparelho em si, “desprovido de conteúdo”, não tem serventia “como prova criminal”.
Efetivamente razão assiste ao STJ, pois que a ordem de busca e apreensão de um celular somente pode ter por finalidade a pesquisa de seu conteúdo. Afora isso, seria um ato despido de sentido. Seria o mesmo que afirmar que a ordem de busca e apreensão de uma arma não tem implícita em si a autorização para a realização de exames periciais no armamento.
REFERÊNCIAS
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