O juízo, antes de se manifestar pelo recebimento ou não da denúncia, provoca o Ministério Público para aditar a acusação incluindo, por exemplo, uma causa de aumento da pena. Tal manobra é juridicamente aceitável?
No nosso sistema processual, o Estado-acusador manifesta a pretensão ao Estado-juiz. São funções claramente distintas. A ação penal pública é privativa daquele a quem se atribui acusar não cabendo colaboração de quem possui o múnus decisório. Assim, o juízo, no sistema acusatório constitucional, não pode manifestar-se sobre a denúncia aconselhando expansão. O juiz não deve intervir na pretensão inicial do Ministério Público, salvo para coibir abusos. Daí o significado do adágio ne procedat iudex ex officio. É exigência que o juízo mantenha-se equidistante das partes a fim de preserva-se imparcial.
A imparcialidade é princípio medular do processo. Quando o julgador prevê acusação mais dilatada e, pior, arvora-se em promovê-la, existe um explícito “pré-juízo”. O fato de o juiz aconselhar o órgão acusador a incluir na denúncia causa de aumento de pena, por exemplo, antes do recebimento viola a garantia da imparcialidade tanto em seu aspecto objetivo quanto subjetivo, além de macular a separação de funções. O juiz deve se afastar de qualquer atividade acusatória sob pena de se inclinar subjetivamente à condenação gerando nulidade.
Exceção alegada ao incremento acusatório pelo juízo seria através dos institutos da emendatio libelli ou mutatio libelli (artigos 383 e 384, CPP) o que, em analogia, permitiria a manobra criticada. Mas, não é bem assim. A redação desses artigos não estabelece em qual momento processual seria adequado para a mutação. Bem se vê, entretanto, situarem-se no Título destinado à sentença sendo de todo congruente seu processamento somente após a instrução em comezinha interpretação sistemática. O emprego dos institutos em momento alternativo romperia o due process of law pela absoluta imprevisibilidade. Há ainda teimosia sistêmica de exclusividade na iniciativa acusatória à cargo do órgão acusador, inclusive quando da mutatio libelli. Certo é que a aplicação dos institutos ex officio, em sede de recebimento e de forma unilateral, é verdadeira trama teratológica.
A atividade típica das partes não pode se confundir com a atividade judicante em nenhum momento dentro do sistema acusatório constitucional. Se o juízo, no recebimento, emite valor sobre a tipificação para ampliá-la age inquisitivamente e fulmina a imparcialidade e o devido processo legal de maneira intransponível.
“Além disso, a garantia da imparcialidade encontra condições de possibilidade de eficácia no sistema acusatório, mas, para tanto, é necessário que o juiz se abstenha de ampliar (...) a pretensão acusatória.” JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2016, p. 898.
Colecionamos os seguintes julgados dos Egrégios TRF3 e TRF1: Sentença. Mutatio libelli. Ocorrência antes do término da instrução. Inadmissibilidade, mesmo que a mudança do delito seja para declarar a prescrição. Violação ao princípio do devido processo legal. – “Fere o princípio do devido processo legal a ocorrência de mutatio libelli antes do término da instrução, pois, ainda que efetuada a mudança do delito para declarar a prescrição, não pode se sobrepor a tal princípio constitucional. (TRF 3ª. R – 1ª. T – Rel. Sinval Antunes – RT 742/733). Momento inadequado para aplicar a emendatio libelli. “Dar ao fato definição jurídica diversa da que constar da queixa ou da denúncia, o juiz só poderá fazê-lo na fase do art. 383 do CPP, ou seja, quando da sentença, até porque a errônea qualificação legal do crime poderá ser corrigida, a qualquer tempo, pelo Ministério Público, até a prolação da sentença. (...)” (TRF 1ª. R – 4ª. T – Rel. Eustáquio Silveira – DJU 12031998, p. 124)
“A iniciativa do aditamento deve ser inteiramente do Ministério Público, não cabendo ao juiz (como costumavam fazer, a partir de uma míope leitura do antigo artigo 384) “invocar” o acusador para que aditasse. À luz do sistema acusatório constitucional, não cabe ao juiz invocar a atuação do MP, sob pena de completa subversão da lógica processual regida pela inércia do juiz. O juiz é quem sempre deve ser invocado a atuar, jamais ter ele uma postura ativa de pedir para o promotor acusar e ele poder julgar... Isso conduz a uma quebra do sistema acusatório e, dependendo da situação, fulmina com a imparcialidade do julgador, diante do “pré-juízo”. Logo, a iniciativa do aditamento deve ser do próprio Ministério Público.” (LOPES JÚNIOR, Aury. Op. Cit., p. 231, 232). Para “realizar qualquer modificação é imprescindível observar-se os princípios da inércia (e sua vinculação ao sistema acusatório) (...)”(JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal, São Paulo: Saraiva, 2016, p. 898). “Se fosse admitida tal hipótese, tratar-se-ia de um indevido prejulgamento, tornando parcial o juízo, além do que a titularidade da ação penal é exclusivamente do Ministério Público ou do ofendido, conforme o caso.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 4ª. Ed., São Paulo: RT, 2008, p. 212).
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