A sociedade brasileira experimenta particular momento em que rivalizam-se posicionamentos técnicos com estruturas puramente retóricas. A pandemia ocasionada pelo vírus COVID-19 deixou manifesta a dicotomia, ao estabelecer o debate coletivo sobre quem deve ser ouvido na questão para definir as ações públicas, médicos, cientistas ou pessoas sem conhecimento técnico simplesmente por terem uma opinião pessoal, ainda que sequer saibam o que o vírus ou como se combate a ele.
Há de se observar, porém, que a dicotonia, ciência/opinião não surge com a pandemia, sendo realidade há muito vivida no mundo do direito, em que a opinião popular sobre temas técnicos como trânsito em julgado, execução provisória da pena, requisitos para prisões cautelares, entre outros, tem se imposto ao pensamento técnico manifestado por pessoas que estudam com profundidade e, por vezes, por toda vida, tais institutos, suas origens, razões e importância no Estado contemporâneo.
É possível que a dicotômia, ciência/opinião, seja uma das manifestações do pensamento da era da pós-verdade, na qual a realidade, as provas, os elementos racionais são afastados, em prol da imposição de opiniões pessoais e íntimas convicções, ainda que falsas e produtoras de catástrofe social e corrosão das bases republicanas e democráticas, pois, em sua lógica, o fundamental é prevalecer o ponto de vista pessoal, ainda que ele seja o oposto dos fatos e da verdade, em resumo, “não precisa ter provas se tem convicção.”
Nesse sentido, as manifestações de revolta coletiva contra o recente não comparecimento do Senador Flávio Bolsonaro em uma acareação, em uma investigação na qual suas condutas são investigadas demonstra muito bem o distanciamento do científico para o retórico, isso porque, é das mais básicas noções de processo penal democrático que o investigado não é obrigado a colaborar com a investigação, tendo o direito de não prestar qualquer auxílio.
Independente dos diferentes tons político-ideológicos que possam as pessoas assumir, há um profundo mal estar para os que acreditam no Estado de Direito, quando se verifica grande parte dos meios de comunicação de massa e das manifestações sociais serem no sentido de questionar por que o Senador Flávio Bolsonaro faltou à acareação? Qual explicação dá para não ter comparecido? Chegando as raias do absurdo de questionar-se se pode ele responder por crime de desobediência.
Em verdade, dentro do mínimo racíocinio lógico essas fontes deveriam estar questionando, se autoridade responsável pela investigação não sabe que acareação é ato entre testemunhas, da qual não participa invetigado ou acusado? Por que tentou obrigar um investigado a participar de uma acariação abrindo mão do seu direito de não colaborar e de ficar em silêncio? Sabe que ningém pode ser compelido a produzir prova em uma investigação realizada contra si?
É perceptível a inversão lógica que é estabelecida no Estado Brasileiro, qual seja, a voz técnica/científica importa, deve ser respeitada, quando ela corresponde à íntima convicção dos meios de controle da formação da opinião pública e do coletivo das redes sociais, quando não, facilmente ignorada e catalogada como favor indevido, desrespeito à vontada social, enfim qualquer argumentação retórica de fácil apreensão e impossível demonstração, o que faz ao final que não haja dicotomia, o que existe é um mundo em que a vontade individual de quem tem controle sobre estruturas de poder se impõe, apenas que para fazê-lo, por vezes se diz científica, conforme simples conveniência.
É importante que fica claro, quem deve esclarecimento é quem tenta impor ao investigado a renúncia aos predicados inerentes ao seu direito defesa, como não ser acareado; não ao investigado que simplesmente exercita um direito, neste caso, em sua proclamação mais ampla, previsto inclusive nas convenções internacionais de direitos humano, das quais o Brasil é signatário.
O sistema jurídico, em especial nos momentos em que atua com função de conter o poder punitivo, como o direito penal, o processual penal o administrativo disciplinar, não podem ser interpretados conforme o desejo individual de quem controla a estrutura investigativa no momento, mas, sempre, devem atuar com as características que dignificam o atual estágio civilizatório da humanidade, independente do investigado ser “popular ou impopular” ou do interesse midiático existente.
Assim sendo, é muito grave, em uma república democrática, que agentes públicos ameacem um investigado de enquadrá-lo em crime de desobediência ou o exponham à exacração pública porque exerceu o direito de silêncio em sua manifetação mais ampla, recusando-se à participar de acareação que, aliás, na disciplina dos artigos 400, 411e 473 do Código de Processo Penal é um ato exclusivamente entre testemunha, dele não participando o acusado.
Quem define se um investigado deve ou não falar é sua defesa técnica e qualquer decisão por ela tomada é sempre legítima, afinal ao considerar ser advocacia essencial para a administração da Justiça, com garantia, em todos os processos, de ampla defesa e estabelecimento de um estado constitucional de inocência, em favor de todas as pessoas, a Constituição Federal deixa patente ser regular o exercício da resistência ao poder punitivo, habilitando esta resistência como essencial à própria concepção de Estado de Direito.
Juridicamente deveria ser assim, o resto... o resto é meme.
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