Existem algumas derrotas que os advogados sofrem ante matérias controvertidas em direito.
O julgador posiciona-se n’um ou n’outro sentido, conforme suas convicções jurídicas pessoais. Nada a reclamar. Cabe ao advogado esgotar os recursos cabíveis envidando o melhor de seus esforços. A advocacia é uma profissão de meio e não de fim, mesmo porque quem decide em definitivo é o juiz.
Mas, existem algumas decisões em que o advogado não pode se conformar, porque prolatada a sentença extra petita para ajustar a decisão ao seu desejo de negar o direito e face da Fazenda Pública opressora.
Cito um exemplo para melhor entendimento.
Impetramos um mandado de segurança contra ato do Diretor de Rendas Mobiliárias da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, porque o Inspetor Fiscal lotado nessa unidade havia desenquadrado a sociedade uniprofissional – SUP – com efeito retroativo por ter encontrado na sociedade sócios de especialidades diferentes, porém, pertencentes ao mesmo ramo científico, ou seja, engenheiros de especialidades diferentes.
O auto de desenquadramento não apontou qualquer outro motivo a não ser a violação da uniprofissionalidade que, no entender do fisco só poderia abrigar, no caso, engenheiros da mesma especialidade no quadro social.
Em face da torrencial jurisprudência em sentido contrário, foi impetrado o mandado de segurança para invalidação desse auto de desenquadramento lastreado em prova preconstituída.
Qual não foi a surpresa do impetrante ante a decisão de primeira instância denegando a ordem por ausência de direito líquido e certo, discorrendo sobre a radical alteração da sistemática da SUP que teria ocorrido com o advento da Lei Complementar nº 116/03 a impor, no caso sub judice, o pagamento do ISS por faturamento mensal.
Certamente o ínclito magistrado não deve ter lido o texto da LC nº 116/03, que manteve na íntegra o art. 9º do Decreto-lei nº 406/68, que regula a prestação de serviço de natureza pessoal, individualmente ou por sociedade de profissionais liberais. Não se atentou para o pedido formulado no writ. Nada do que decidiu foi objeto do pedido inaugural incorrendo, de plano, na nulidade de sentença.
Embargos declaratórios interpostos foram sumariamente rejeitados mediante o uso de acórdão chapão: quando o juiz encontra um fundamento para rejeição do pedido não está obrigado a examinar os demais, como se tratasse de instância única.
Feita a apelação com preliminar de nulidade da sentença sobreveio uma surpresa maior.
A E. Câmara de Direito Público adentrou no exame do contrato social do Impetrante e chegou à conclusão de que ante as cláusulas contratuais (retirada pró-labore, distribuição de lucros na proporção do capital de cada sócio e não dissolução da sociedade em caso de falecimento de um dos sócios), a sociedade ostentava natureza empresarial, sendo que o Impetrante não conseguiu fazer a prova em sentido de enquadrar-se na SUP referida no art. 9º do Decreto-lei nº 406/68. Parece inacreditável, mas foi o que aconteceu.
Interposto embargos declaratórios, porque a impetração foi contra ato de desenquadramento motivado unicamente pela existência de sócios de especialidades diferentes, foram eles rejeitados nos termos do já citado acórdão chapão. E como que puxando a orelha do Impetrante consignou o óbvio e ululante: “no mandado de segurança não cabe dilação probatória”, exceto para denegar a ordem, eu diria!.
O tribunal, no caso, claramente industrializou os fatos. O motivo do desenquadramento era apenas e tão somente por figurar no contrato social sócios de especialidades diferentes, tese rejeitada por todos os tribunais do País. Até o tribunal de Uganda sabe disso! Daí o direito líquido e certo corporificado no auto de desenquadramento juntado na inicial. Não tinha que adentrar no exame do mérito para, por meio de acurado exame do contrato social, concluir pela caracterização de sociedade empresária. Ninguém estava discutindo isso, nem a Prefeitura!
Era caso de concessão do mandamus para anular o auto de desenquadramento, ressalvada a faculdade de Prefeitura, se quiser, voltar a proceder ao desenquadramento por outro motivo, vedada a invocação da motivação que ensejou a impetração do writ..
O Recurso Especial foi denegado na origem porque decidido no plano fático, ensejando o agravo do Impetrante. Hoje, está na moda o deslocamento de discussões de direito para o plano fático, com o visível propósito de barrar o ingresso nas instâncias extraordinárias.
O Ministro Relator, em decisão monocrática, teceu longas considerações em torno da matéria citando jurisprudência favorável da Corte Especial no enquadramento das sociedades de profissionais liberais no regime de SUP ou Pluriprofissional na prestação de serviço intelectual de natureza para, ao depois, aplicar a Súmula 7 que impede a rediscussão de matéria fático-probatória negando provimento ao agravo.
Não se sabe por que cargas d’água estender o voto se estava predisposto a denegar o agravo com base em jurisprudência defensiva.
Era preferível que tivesse negado provimento ab initio por ter o acórdão recorrido decidido no plano fático, sem longas considerações em torno da tese de que fazem jus ao regime especial de tributação as sociedades uni ou pluriprofissionais que desenvolvem serviços intelectuais em caráter pessoal.
O STJ é useiro e vezeiro em invocar erroneamente a Súmula 7 para deixar de examinar o mérito do pedido. Em nenhum momento a Súmula 7 veda o conhecimento de matéria fática, mesmo porque a norma jurídica para incidir precisa de seu suporte fático. Ela não incide no ar, nem no abstrato. O que a Súmula veda é a rediscussão de matéria fática controvertida. No caso, não havia essa controvérsia. O auto de desenquadramento dizia com lapidar e solar clareza que o desenquadramento estava apoiado na existência de engenheiros de especialidades diferentes. Onde a controvérsia de matéria fática? A questão de o Impetrante se caracterizar como uma sociedade empresária à vista das suas cláusulas contratuais não estava sendo discutido no mandamus, nem na residência do monstro de sete barbas da Mesopotâmia.
Em outra passagem tomei conhecimento de um voto de um dos insignes ministros do STJ que me causou vertigem. Apreciando recurso especial interposto contra acórdão que manteve a decisão proferido nos embargos à execução fiscal dizia: Noto que a certidão de dívida ativa que instrui a inicial não contém os requisitos exigidos pelo § 5º, do art. 2º da Lei nº 6.830/80 padecendo do vício de nulidade. Contudo, deixo de pronunciar a nulidade porque a Súmula 7 impede ingressar no exame do conjunto fático-probatório. Fique atônito! Muito provavelmente o ínclito ministro deve ter deixado cair o processo. Ao apanhá-lo, sem querer, abriu na página em que estava a aludida CDA que foi lida, talvez, por curiosidade. É a única explicação plausível!
Isso é frustrante e causa desconforto e desânimo para quem vem exercendo a profissão de advogado com zelo ao longo de 54 anos ininterruptos, sendo 20 anos na advocacia pública. Três instâncias judiciárias, que custam os olhos da carne para a sociedade em geral, não conseguiram identificar o singelo pedido formulado na inicial do mandado de segurança!
Deixa a ideia de que os tribunais não são confiáveis. Inventar fatos que não estão nos autos para decidir a favor da Fazenda era o que faltava. É a industrialização dos fatos de que falamos no início. Assim, não há como ganhar a demanda por mais justa que ela seja.
Os tribunais precisam colocar na cabeça que a Fazenda quando discute questão tributária em juízo não está defendo interesse público, mas interesse privado do Poder Público que é coisa diversa. A Fazenda deve ser vista pela Justiça em posição de igualdade com o particular. Ela não está acima, nem abaixo do particular.
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