Inserida em particular lógica, pela qual a Constituição Federal, a realidade e a essência das coisas devem se submeter aos estritos termos do direito positivo infraconstitucional, foi construída sustentação no sentido de que o recolhimento domiciliar noturno não deveria ser utilizado para fins de detração penal, ante a ausência de previsão legislativa específica, nesta matéria.
Em recente julgamento do tema, pela Quinta Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, foi, com precisão, superada essa particular ideia de negar a detração penal, quando a pessoa tem sua liberdade restringida, de forma cautelar, por determinação do Poder Judiciário, no âmbito de um processo criminal.
No julgamento paradigma referido, assim foi ementada a questão:
EXECUÇÃO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO HABEAS CORPUS. DETRAÇÃO DO PERÍODO DE CUMPRIMENTO DE MEDIDA CAUTELAR ALTERNATIVA À PRISÃO. RECOLHIMENTO DOMICILIAR NOTURNO. POSSIBILIDADE. MATÉRIA PACIFICADA NO ÂMBITO DA QUINTA TURMA DESTA CORTE. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO. 1. Preambularmente, impende registrar que o artigo 34, inciso XX, do RISTJ, atribui ao Relator a competência para “decidir o habeas corpus quando for inadmissível, prejudicado ou quando a decisão impugnada se conformar com tese fixada em julgamento de recurso repetitivo ou de repercussão geral, a entendimento firmado em incidente de assunção de competência, a súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, a jurisprudência dominante acerca do tema ou as confrontar”. 2. Consolidou-se nesta Superior Corte de Justiça entendimento no sentido de que a interposição do agravo regimental torna superada a alegação de afronta aos princípios do juiz natural e da colegialidade e torna prejudicados eventuais vícios relacionados ao julgamento monocrático, tendo em vista que, com o agravo, devolve-se ao órgão colegiado competente a apreciação do mérito da ação, do recurso ou do incidente, não se configurando qualquer prejuízo à parte. Precedentes. 3. Quanto ao aspecto meritório, consolidou-se na Quinta Turma deste Tribunal entendimento no sentido de que, a despeito da inexistência de previsão legal para a detração penal na hipótese de submissão do sentenciado a medidas cautelares diversas da prisão, o período de recolhimento domiciliar noturno, por comprometer o status libertatis, deve ser detraído da pena, em observância aos princípios da proporcionalidade e do non bis in idem. 4. Agravo regimental não provido. (AgRg nos EDcl no HC 626.870/DF, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 01/12/2020, DJe 07/12/2020)
Justamente os fundamentos destacados no julgamento paradigma merecem referência, quais sejam, a natureza intrínseca do recolhimento domiciliar noturno e os princípios de proporcionalidade e non bis in idem.
Há aparente vício na formação jurídica nacional, na qual é desenvolvido o pensamento de excessiva valoração dos conceitos normativos infraconstitucionais, a ponto mesmo de curvar a Constituição Federal, as estruturas dogmáticas e mesmo a essência das coisas ao gramaticalismo da legislação infraconstitucional, quando, em verdade, esta deve ser interpretada a partir daqueles conteúdos.
Nessa toada, não há o menor sentido em se afirmar que, pelo fato da lei não o prever, uma clara hipótese de limitação da liberdade, imposta pelo Estado no âmbito de um processo criminal não deve ter efeitos sobre o cálculo da pena privativa de liberdade a ser cumprida, em situação de condenação, pois, significaria negar a própria essência da liberdade, recriando a estrutura neokantina, pela qual a lei gera a própria realidade, o que foi bastante eficaz, por exemplo, durante o Estado nazista para permitir que a lei simplesmente estabelecesse quem seria considerado humano e quem não, ou mesmo, garante, na atualidade, a lógica de animalização dos palestinos, pelo Estado de Israel, para promover seu extermínio massivo.
Ademais, a vedação de bis in idem, bem como a obrigação de proporcionalidade que deve existir entre os níveis de submissão de uma pessoa às limitações determinadas pelo poder estatal e a conduta por si praticada, não dependem de previsão legislativa, pois são estruturas dogmáticas, contempladas ainda na esfera constitucional, de sorte que a negativa à detração no recolhimento domiciliar noturno é o mesmo que afirmar que, na medida em que a legislação infraconstitucional não disse expressamente que a Constituição Federal vale, ela não vale, o que é de um absurdo insustentável.
Por certo, ao ser estabelecida, no âmbito do processo criminal, cautelar de recolhimento domiciliar, ainda que noturno, há limitação da liberdade da pessoa, de sorte que eventual condenação à pena privativa de liberdade não pode ignorar que já ocorreu, no âmbito do processo, imposição estatal de restrição ao bem jurídico liberdade, pois, com isso haveria dúplice ataque ao mesmo bem jurídico, pelo mesmo fato, no mesmo processo.
Igualmente, é correto afirmar que, ao ignorar o recolhimento domiciliar noturno, a pena se torna desproporcional, pois, o sentenciado terá a perda da plena liberdade por tempo superior ao concretamente verificado pelo juiz sentenciante, como compatível com a conduta por ele praticada.
Indo um pouco além dos termos estritos da decisão da Quinta Turma do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, a qual contou com a Relatoria do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, há em seu conteúdo importante mensagem, a de que a legislação não pode negar a natureza das coisas, descaracterizar a essência de cada ser, algo essencial para a contenção de modelos autoritários de poder, ao deixar patente a existência de níveis de intervenção vedados para a legislação.
Não pode a lei, assim, por exemplo, categorizar os seres humanos, estabelecer cidadãos merecedores de proteção e outros a serem ignorados, enfim, não pode, porque está na lei, ser ignorada a essência, igualmente, não se curvando o conteúdo dogmático limitador do poder punitivo ao sabor de momento estampado na legislação infraconstitucional, máxime quando considerado ter a Carta Maior conteúdo expresso e implícito, além de valores axiológicos, os quais não podem ser ignorados sob pena de descaracterizar a própria estrutura existencial do Estado brasileiro.
Em definitivo, o precedente em comento, acaba, desde os fundamentos que o embasam, por ir além dos seus próprios termos, trazendo lúcido posicionamento de estruturação dos elementos de contenção do poder punitivo, no âmbito de uma república democrática.
Nesse sentido, a essência das coisas não é construída pela lei, mas serve de valor hermenêutico para ela, limitando-a; as estruturas dogmáticas contentoras do poder punitivo devem se impor, ainda que a legislação as ignore e, por fim, a Constituição Federal tem poder imperativo, no seu conteúdo expresso, mas também no implícito e nos seus valores axiológicos.
Efetivamente, há detração penal quando o condenado foi submetido ao recolhimento domiciliar noturno durante o processo, pois negá-la na hipótese seria rebaixar a realidade, as estruturas dogmático-penais e a Carta Constitucional, garantindo estruturação ao pensamento de que a lei pode tudo, até, em última análise, definir quem deve e quem não pode viver, desde que estabeleça quem é humano e quem deve ser animalizado, quem atende e quem não atende o são sentimento da sociedade.
Precisa estar logado para fazer comentários.