No Estado de Direito os direitos, as garantias e as liberdades públicas do indivíduo só podem ser restringidos com base na lei e de forma rigorosamente proporcional e equilibrada. A interceptação (escuta) telefônica consiste numa dessas limitações ao direito à intimidade, à liberdade de expressão de pensamento etc. Constitui um meio de prova importante (o Estado necessita, às vezes, desse meio de prova para a comprovação de atos ilícitos), mas para que essa prova seja constitucionalmente válida requer não só uma legislação sensata como uma operação prática absolutamente ajustada a essa ordem jurídica.
A regulamentação jurídica da escuta telefônica, destarte, deve ser a mais clara, estrita e inequívoca possível. De outro lado, a observância impecável dessa disciplina jurídica, na prática, é a conseqüência natural que se espera de todo operador jurídico. Qualquer desvio do texto constitucional ou legal conduz à invalidade da prova obtida, ou seja, cuida-se de prova ilícita, que deve ser desentranhada (porque inadmissível).
A flexibilização infundada em relação à interceptação (escuta) telefônica, nesse contexto, conduz ao incremento do chamado Direito processual do inimigo.
Os juízes e as Cortes constitucionais devem estar permanentemente preocupados com o equilíbrio do jogo democrático que encerra as relações entre o indivíduo e o Estado. A restrição de qualquer direito, particularmente um de natureza fundamental, exige a intervenção do legislador (interpositio legislatoris), para se saber quais são os limites dessa intervenção. O Estado Democrático de Direito obriga a aplicação do Direito Penal e Processual Penal dentro de certos limites, que se associam ao respeito dos princípios da dignidade da pessoa humana, legalidade, igualdade e liberdade. A lei é o limite e dá segurança. Ao lado da Constituição e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, é ela que forma a base do Estado Constitucional e Democrático de Direito.
Os doutrinadores do iluminismo (Hobbes, Montesquieu, Beccaria e tantos outros), há mais de dois séculos, lutaram tanto pela legalidade contra as atrocidades do ancien regime e conseguiram, com razoável sucesso, codificar a legalidade, tendo como eixo a razão jurídica. Logo, neste terceiro milênio, não é o caso de se privilegiar as famosas “razões de Estado”, que é o caminho mais curto para a constituição do Leviatã (Estado diabólico).
A legitimação democrática do judiciário, de outro lado, não é direta, senão formal, racional. Quem tem que atender os reclamos populares, e mesmo assim dentro dos limites constitucionais, são os políticos, que contam com legitimação democrática direta. O Juiz, principalmente o da Corte Constitucional, está vinculado ao Direito, à Constituição, aos Tratados Internacionais e à cultura dos direitos fundamentais.
Com base no que acaba de afirmado é que a Corte Suprema argentina, no dia 24.02.09, por unanimidade, declarou a inconstitucionalidade da chamada “ley espía” (de 2003), que obrigava as empresas não só a captar todas as comunicações telefônicas ou por internet senão também a guardá-las por dez anos. Todas essas intervenções, de outro lado, eram controladas pela Direção Geral de Observações Judiciais, que é dependente da Secretaria de Inteligência (Side), o que implicava que o Governo argentino podia ter acesso a qualquer tipo de comunicação privada telefônica ou eletrônica.
Essa lei, disse da Corte Suprema, contraria os direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição argentina. A lei restringe o importante direito à intimidade sem distinguir nem precisar as oportunidades nem as situações em que especificamente devem acontecer as interceptações. É inadmissível, de outra parte, que todas elas estejam sob a disponibilidade do Governo. Nenhuma incursão na vida privada ou íntima das pessoas pode ficar à mercê do poder político. Os órgãos de inteligência do país, quando necessitam de uma informação, para o efeito de se apurar um delito, deve fazer a devida solicitação ao poder judiciário.
A partir da importante decisão da Corte Suprema, todas as interceptações (escutas) telefônicas na Argentina, que só podem ser admitidas para fim penal, dependem de ordem judicial, que deve analisar cada pedido concretamente, fundamentando sua necessidade.
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