Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar a decisão proferida pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relação à aplicação do princípio in dubio pro societate no que tange à definição do elemento subjetivo do crime. A controvérsia surgiu a partir de um caso pronúncia de um réu sob a acusação de homicídios consumados e tentativa com dolo eventual em acidente de trânsito.
Aplicação do princípio in dubio pro societate
O princípio in dubio pro societate, também conhecido como "na dúvida, a favor da sociedade", é uma regra interpretativa do Direito Penal que estabelece que, em caso de dúvida razoável sobre a materialidade do crime ou a autoria, deve-se favorecer a sociedade e submeter o réu ao tribunal do júri. Essa regra tem como objetivo garantir a efetividade da justiça e a proteção dos interesses da sociedade.
Ocorre que, tal preceito, segundo o julgado, não deve prevalecer quanto ao elemento subjetivo – ou seja, à definição sobre a conduta do réu ter sido dolosa ou culposa. De modo que o juiz togado deve dirimir o dolo e culpa.
Ao ratificar a sentença de pronúncia, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) afirmou que, na primeira fase do procedimento júri, eventual dúvida sobre o caráter doloso da conduta não deve favorecer o acusado, devendo prevalecer, nesse caso, a regra in dubio pro societate. No entendimento do tribunal, bastam a prova de materialidade e indícios suficientes de autoria – além de uma compreensão preliminar sobre a ocorrência de dolo eventual – para que o processo seja julgado pelo júri popular.
No entanto, o relator no STJ, desembargador convocado João Batista Moreira, discordou desse entendimento. Ele ressaltou que, mesmo que não se conclua pela aplicação do princípio in dubio pro reo na fase de pronúncia, é necessário considerar que o interesse maior da sociedade é a realização da justiça. Nesse sentido, o desembargador argumentou que a remessa ao tribunal do júri de uma questão relacionada à configuração, ou não, de dolo eventual, com tantas nuances fáticas e teóricas, não seria a melhor maneira de promover a justiça.
Disse ainda o Eminente Relator que "Entender que a conduta de embriagar-se implica, em todos os casos, assunção do risco e a aceitação (remota) da possibilidade do cometimento, em seguida, de atos criminosos seria levar a indevido extremo a teoria da actio libera in causa. À luz desse pressuposto, deve ser examinado, pois, se mesmo que reconhecida a presença de prova ou indícios de embriaguez, as demais circunstâncias fáticas autorizam concluir que o réu, no momento imediatamente anterior, assumiu o risco de produzir e assentiu no resultado criminoso", declarou.
Elemento subjetivo do crime e embriaguez
O elemento subjetivo do crime refere-se à intenção ou vontade do agente em praticar a conduta criminosa. No caso em análise, a controvérsia reside na definição se a conduta do réu foi dolosa ou culposa. O desembargador João Batista Moreira destacou que a embriaguez, por si só, não leva ao reconhecimento automático do dolo.
De acordo com o artigo 28, inciso II, do Código Penal, a embriaguez não exclui a imputabilidade penal, mas isso não significa que o dispositivo leve, necessariamente, ao reconhecimento do dolo. O desembargador ressaltou que é necessário examinar as demais circunstâncias fáticas do caso para concluir se o réu assumiu o risco de produção e assentiu no resultado do crime.
O relator apontou que algumas informações do processo precisariam ser levadas em conta, como o fato de que chovia na hora da colisão, o local – onde já houve acidentes semelhantes – era uma curva inclinada, a pista era autorizada para 40 km/h e o réu dirigia entre 43 e 48 km/h. Além disso, ele prestou socorro às vítimas e entrou em contato com a polícia, "o que denota, salvo a desarrazoada hipótese de imediato arrependimento, ausência de prévio consentimento com o resultado".
Na opinião de João Batista Moreira, o artigo 419 do Código de Processo Penal leva à conclusão de que não bastam as provas de crime contra a vida e os indícios de sua autoria para que o caso vá ao júri. "Do contrário, todos os crimes contra a vida, evidenciada a respectiva materialidade e autoria, independentemente da forma dolosa, deveriam ser remetidos ao tribunal popular, competindo a este e só a este, pois, a eventual desclassificação para a forma culposa", ponderou.
Para o relator, cabe ao juiz, em relação ao elemento subjetivo, "sopesar as provas e circunstâncias e decidir, fundamentadamente, quanto à hipótese de desclassificação para a forma culposa".
Considerações finais
Diante do exposto, a decisão da Quinta Turma do STJ vem se alinhando com o entendimento do Supremo Tribunal Federal (ARE 1.067.392/CE ), bem como com a recente decisão da Sexta Turma do STJ, na relatoria do Ministro Rogerio Schietti Cruz que ao julgar o REsp 2.091.647 – DF, afastou a aplicação do in dubio pro societate, exigindo-se para que o réu seja pronunciado ao júri popular, a existência da alta probabilidade de envolvimento do réu no crime (materialidade e autoria)
Portanto, a Quinta Turma foi além, decidiu que o princípio in dubio pro societate não deve prevalecer quanto ao elemento subjetivo do crime, ou seja, à definição sobre a conduta do réu ter sido dolosa ou culposa. A embriaguez, por si só, não leva ao reconhecimento automático do dolo, sendo necessário analisar as demais circunstâncias fáticas do caso.
Cabe ao juiz, em relação ao elemento subjetivo, sopesar as provas e conclusões e decidir, fundamentalmente, quanto às hipóteses de desclassificação para a forma culposa. Dessa forma, busca-se promover a justiça e garantir a correta aplicação do Direito Penal, levando em consideração os interesses da sociedade e a proteção dos direitos individuais do réu.
Referência
REsp 1991574 - SP
REsp 2.091.647 – DF
ARE 1.067.392/CE
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