A Lei nº. 12.037/09, recentemente promulgada, passou a dispor sobre a identificação criminal do civilmente identificado. Como se sabe, o art. 6º. do Código de Processo Penal, no inciso VIII, determina que a autoridade policial deve ordenar a identificação do indiciado pelo processo datiloscópico, se possível, independentemente da identificação civil. Interpretando este dispositivo, à luz da Carta anterior, o Supremo Tribunal Federal entendia que “a identificação criminal não constituía constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já tivesse sido identificado civilmente.” (Enunciado 568, já superado: RHC 66881-RTJ 127/588).
Com a promulgação da Constituição de 1988, o seu art. 5º., LVIII, passou a estabelecer “que o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei.” Esta norma, “pretendeu resguardar o indivíduo civilmente identificado, preso em flagrante, indiciado ou mesmo denunciado, do constrangimento de se submeter às formalidades de identificação criminal - fotográfica e datiloscópica - consideradas por muitas vexatórias (até porque induz ao leigo, ao incauto, a idéia de autoria delitiva), principalmente quando documentadas pelos órgãos da imprensa.”[1]
Após a nova Carta, vieram, então, dois artigos pertinentes: o art. 5º. da Lei nº. 9.034/95 (“A identificação criminal de pessoas envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente da identificação civil”) e o art. 109 do Estatuto da Criança e do Adolescente (“O adolescente civilmente identificado não será submetido a identificação compulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada”).
Bem depois, foi promulgada a Lei nº. 10.054/00, regulamentando inteiramente o supracitado inciso do art. 5º., enumerando “de forma incisiva, os casos nos quais o civilmente identificado deve, necessariamente, sujeitar-se à identificação criminal, não constando, entre eles, a hipótese em que o acusado se envolve com a ação praticada por organizações criminosas. Com efeito, restou revogado o preceito contido no art. 5º da Lei nº 9.034/95, o qual exige que a identificação criminal de pessoas envolvidas com o crime organizado seja realizada independentemente da existência de identificação civil.[2]
Pois bem.
Agora temos uma nova lei que, expressamente, revogou a Lei nº. 10.054/2000; repetindo o dispositivo constitucional, o seu art. 1º estabelece que o “civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nos casos previstos nesta Lei.”
No art. 3º., dispõe que, nada obstante o indiciado ou acusado possuir um documento de identificação civil, poderá (não deverá) ser também identificado criminalmente se o respectivo documento apresentar rasura ou tiver indício de falsificação ou for insuficiente para identificar cabalmente o indiciado; ou se ele portar documentos de identidade distintos, com informações conflitantes entre si; ou se constar de registros policiais o uso de outros nomes ou diferentes qualificações; ou o estado de conservação ou a distância temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a completa identificação dos caracteres essenciais[3]. Nada impede que a identificação criminal seja feita após o início da ação penal.
Tais hipóteses estão em perfeita harmonia com a Constituição Federal, sob o ponto de vista do princípio da razoabilidade. Como afirma Luiz Flávio Gomes, “se existe dúvida fundada (séria) sobre a identificação civil do sujeito, nada mais ponderado que proceder à sua identificação criminal”. Importante alertar, porém, que “não existe poder discricionário da autoridade de identificar ou não (aliás, raciocinar-se assim, pode-se chegar a atos arbitrários). Seu ato é vinculado: cabe-lhe examinar os pressupostos fáticos da situação e agir dentro da lei, conferindo sempre ao interessado o prazo de 48 horas para a comprovação de sua identificação civil, a não ser que seja patente, por exemplo, a inexistência de qualquer identificação.[4]
Exatamente por isso, entendemos que, nestes casos, a identificação criminal só deverá ser feita se o indiciado ou acusado não comprovar, em quarenta e oito horas, sua identificação civil (como permitia o art. 3º., VI da Lei nº. 10.054/00), pois “é notório que muitas pessoas não costumam portar o documento original de identificação civil, mas apenas cópias reprográficas do mesmo. Outras sequer trazem consigo o documento de identificação civil. Diante de tais situações, o legislador conferiu ao indivíduo um prazo de 48 horas, para comprovar sua identificação civil. Somente após o transcurso do prazo, sem que tenha havido a comprovação, é que será possível a identificação criminal. (...) Desnecessário ressaltar, que as restrições aos direitos e garantias constitucionais devem ser interpretadas de forma restritiva. Não se pode concluir, pois, que o legislador tenha dado à autoridade policial uma faculdade ou poder discricionário. Nem se argumente que, em tal caso, sem a apresentação do documento, não houve a identificação civil, que é o pressuposto da regra constitucional para que se não realize a identificação criminal. O legislador ordinário ampliou a garantia constitucional, o que é perfeitamente possível. A regulamentação legal do dispositivo constitucional prevê, como regra geral, que a identificação criminal fica vedada, tanto quando o indivíduo imediatamente apresente sua identificação civil, quanto nos casos em que se comprometa a comprová-la no prazo legal. (...) Da mesma forma, também não presume que o portador de documento de identidade antigo ou em mau estado de conservação o tenha falsificado. Trata-se, apenas de juízo de conveniência do legislador, perfeitamente compatível com o critério de razoabilidade que se deve exigir de toda lei.” [5] (grifo nosso).
Esta interpretação coaduna-se também com o princípio da proporcionalidade que, “surgió en el Derecho de policía para pasar a impregnar posteriormente todo el Derecho público, ha de observarse también en el Derecho Penal.”[6] Note-se que a Constituição Federal, razoável e proporcionalmente, estabelece medidas mais gravosas para autores dos chamados crimes hediondos, a tortura, o tráfico ilícito de drogas, o terrorismo, o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; ao passo que permite medidas despenalizadoras quando se trata de infração penal de menor potencial ofensivo (cfr. arts. 5º., XLII, XLII e XLIV e 98, I, ambos da Constituição Federal).
Na lição de Humberto Ávila, a proporcionalidade “aplica-se nos casos em que exista uma relação de causalidade entre um meio e um fim concretamente perceptível. A exigência de realização de vários fins, todos constitucionalmente legitimados, implica a adoção de medidas adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito.” Para ele, “um meio é proporcional quando o valor da promoção do fim não for proporcional ao desvalor da restrição dos direitos fundamentais. Para analisá-lo é preciso comparar o grau de intensidade da promoção do fim com o grau de intensidade da restrição dos direitos fundamentais. O meio será desproporcional se a importância do fim não justificar a intensidade da restrição dos direitos fundamentais.”[7]
Já para Mariângela Gama de Magalhães Gomes, este princípio “constitui importante limite à atividade do legislador penal (e também do seu intérprete), posto que estabelece até que ponto é legítima a intervenção do Estado na liberdade individual dos cidadãos.”[8]
Assim, explica Pedraz Penalva, que “a proporcionalidade é, pois, algo mais que um critério, regra ou elemento técnico de juízo, utilizável para afirmar conseqüências jurídicas: constitui um princípio inerente ao Estado de Direito com plena e necessária operatividade, enquanto sua devida utilização se apresenta como uma das garantias básicas que devem ser observadas em todo caso em que possam ser lesionados direitos e liberdades fundamentais.”[9]
Outrossim, poderá ser exigida a identificação criminal se esta providência “for essencial às investigações policiais, segundo despacho (leia-se: decisão) da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da defesa.” Também nesta hipótese valem as advertências feitas acima quanto à observância dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. E mais: deverá ser uma decisão excepcionalmente prolatada, não como regra. Tampouco será um mero despacho como está escrito na lei; e, como toda decisão judicial, exige-se a devida fundamentação, comprovando-se de plano o fumus commissi delicti (pressuposto) e o periculum in mora (requisitos: necessidade). Atente-se, com Luiz Flávio Gomes, que “o princípio da proporcionalidade tem base constitucional (é extraído da conjugação de várias normas: arts. 1º., III, 3º., I, 5º., caput, II, XXXV, LIV, etc.) e complementa o princípio da legalidade.”[10]
Em qualquer caso, “quando houver necessidade de identificação criminal, a autoridade encarregada tomará as providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado” (art. 4º.), como, por exemplo, a sua exposição na mídia, tão comum nos dias atuais.
De toda maneira, ainda que consideradas insuficientes para identificar o indiciado, as cópias dos documentos apresentados deverão ser juntadas aos autos do inquérito, ou outra forma de investigação, como o Termo Circunstanciado (art. 3º., parágrafo único).
Para efeitos da lei, a identificação civil poderá ser atestada pelas carteiras de identidade, de trabalho e profissional, pelo passaporte e pelas carteiras de identificação funcional (exemplos: art. 13 da Lei nº. 8.906/94 e art. 42 da Lei nº. 8.625/93), além de qualquer outro documento público que permita a identificação do indiciado[11], inclusive os documentos de identificação militares (art. 2º.).
Observamos que a lei distingue como gênero a identificação criminal e, como espécies a identificação datiloscópica e fotográfica, ao estabelecer que ambas “serão juntadas aos autos da comunicação da prisão em flagrante, ou do inquérito policial ou outra forma de investigação[12]” (art. 5º.). Aqui, “fica claro, portanto, que a identificação criminal não é sinônima de identificação datiloscópica. Esta é apenas uma das formas de identificação criminal. De se destacar que, embora o art. 6º, inc. VIII, do CPP, refira-se apenas à identificação pelo processo datiloscópico, a jurisprudência vinha interpretando o dispositivo como sendo uma previsão que abrangia a identificação criminal em sua acepção mais ampla, incluindo a identificação fotográfica, considerada inclusive como elemento útil para a instrução criminal.”[13] A propósito, a identificação criminal, modernamente, pode ser feita por meio da íris, que é a membrana pigmentada dos olhos, inclusive, menos suscetível a erros que o reconhecimento por voz ou impressão digital[14], bem como pelo DNA, respeitando-se, sempre e evidentemente o princípio de não auto incriminação.
Por fim, em perfeita consonância com o princípio da presunção de inocência e com o parágrafo único do art. 20 do Código de Processo Penal, veda-se “mencionar a identificação criminal do indiciado em atestados de antecedentes ou em informações não destinadas ao juízo criminal, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.” (art. 6º.). A inobservância deste mandamento pode ser remediado pela utilização do habeas corpus, pois, como se sabe, esta garantia constitucional deve ser também conhecida e concedida sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Logo, se a medida foi abusiva (não necessária), cabível a utilização do habeas corpus que visa a tutelar a liberdade física, a liberdade de locomoção do homem: ius manendi, ambulandi, eundi ultro citroque. Como já ensinava Pontes de Miranda, em obra clássica sobre a matéria, é uma açãocontra quem viola ou ameaça violar a liberdade de ir, ficar e vir.”[15] (Grifo nosso). Para Celso Ribeiro Bastos “o habeas corpus é inegavelmente a mais destacada entre as medidas destinadas a garantir a liberdade pessoal. Protege esta no que ela tem de preliminar ao exercício de todos os demais direitos e liberdades. Defende-a na sua manifestação física, isto é, no direito de o indivíduo não poder sofrer constrição na sua liberdade de se locomover em razão de violência ou coação ilegal.”[16]desde a Reforma Constitucional de 1926 que o habeas corpus, no Brasil, é ação destinada à tutela da liberdade de locomoção, ao direito de ir, vir e ficar. preponderantemente mandamental dirigida “ Aliás,
Por fim, caso a peça acusatória não seja oferecida, ou seja inadmitida ou, ainda, o réu seja absolvido, faculta-se ao indiciado ou ao réu, “após o arquivamento definitivo do inquérito, ou trânsito em julgado da sentença, requerer a retirada da identificação fotográfica do inquérito ou processo, desde que apresente provas de sua identificação civil.” (art. 7º.).
[1] Marcolini, Rogério, Boletim do IBCCrim, São Paulo, v.8, n.99, p. 13-14, fev. 2001.
[2] RHC 12965 / DF – Relator: Ministro Félix Fischer. Órgão Julgador: T5 - Data do Julgamento: 07/10/2003. Data da Publicação/Fonte: DJ 10.11.2003 p. 197.
[3] Segundo consta da obra de Mário Sérgio Sobrinho, na Espanha “a fotografia para identificação de pessoas detidas deverá ser repetida, obrigatoriamente, a cada cinco anos ou em períodos mais curtos, se o indivíduo for muito jovem ou variar muito a sua fisionomia, como mudanças do cabelo ou da barba (corte drástico ou crescimento excessivo), exibição de cicatrizes ou uso de óculos. Em Portugal, há disposição que regula o prazo de cinco anos para a validade do bilhete de identidade, documento semelhante à cédula de identidade utilizada no Brasil, o qual deverá ser substituído pelo portador, a cada dez anos, depois de completados quarenta anos.” (A Identificação Criminal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 175).
[4] Revista Consulex – Ano V – nº. 99, Fevereiro de 2001.
[5] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A nova regulamentação da identificação criminal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.8, n.100, p. 9-10, mar. 2001.
[6] Nicolas Gonzalez-Cuellar Serrano, “Proporcionalidad y Derechos Fundamentales en el Proceso Penal”, Madri: Editorial Colex, 1990, p. 29.
[7] Teoria dos Princípios, São Paulo: Malheiros, 4ª. ed., 2004, p. 131.
[8] O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 59.
[9] Apud Mariângela Gama de Magalhães Gomes, “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal”, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 60.
[10] Penas e Medidas Alternativas à Prisão, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 66.
[11] O art. 1º. da Lei nº. 6.206/75 estabelece ser “válida em todo o Território Nacional como prova de identidade, para qualquer efeito, a carteira emitida pelos órgãos criados por lei federal, controladores do exercício profissional.”
[12] Como o Termo Circunstanciado previsto no art. 69 da Lei nº. 9.099/95.
[13] Badaró, Gustavo Henrique, Boletim do IBCCrim, São Paulo, v.8, n.100, p. 9-10, mar. 2001.
[14] Revista Época On Line – 28 de abril de 2003.
[15] História e Prática do Habeas Corpus, Vol. I, Campinas: Bookseller, 1999, p. 39.
[16] Comentários à Constituição do Brasil, Vol. II, São Paulo: Saraiva, 1989, p. 312.
Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia. Professor de Direito Processual Penal da UNIFACS. Pós-graduado, lato sensu, pela Universidade de Salamanca/Espanha (Direito Processual Penal). Especialista em Processo pela UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Rômulo de Andrade. A nova lei de identificação criminal Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 out 2009, 08:39. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/402/a-nova-lei-de-identificacao-criminal. Acesso em: 24 nov 2024.
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