Resumo: Pretende-se abordar alguns aspectos relacionados a caso rumoroso, cuja sessão do Júri se deu, recentemente, em São Paulo, buscando identificar e estabelecer dados objetivos que possam revelar eventual quebra da higidez do devido processo penal e possíveis elementos relacionáveis ao Direito Penal do inimigo.
Palavras-chave: Júri. Garantias. Nulidades. Direito Penal do inimigo.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Situação do caso e delimitação da proposta; 3 Possíveis nulidades; 4 Identificação do Direito Penal do inimigo; 5 Conclusões; 6 Bibliografia.
1 INTRODUÇÃO
Em data recente foi submetido a julgamento processo em que se acusava Alexandre Nardoni e Ana Jatobá pela imputação do delito de homicídio qualificado em concurso com a figura de delito de fraude processual. O julgamento, quiçá o mais aguardado da última década no país, trouxe a tona a fragilidade das instituições encarregadas da administração da Justiça no país. Particularmente sensível, a aparente subserviência de alguns setores aos influxos da mídia, a comprometer, inclusive, a higidez do processo e julgamento. A proposta deste ensaio é, breve e superficialmente, destacar alguns pontos, do ponto de vista acadêmico, sobre possíveis nulidades suscitadas antes, durante e após a Sessão daquele Júri.
2 SITUAÇÃO DO CASO E DELIMITAÇÃO DA PROPOSTA
A acusação, lastreada, fundamentalmente, na prova pericial, pugnou pela condenação dos acusados, nas consequências jurídicas dos delitos que aos tais se imputava. O processo teve seu curso regular, ocorrendo a pronúncia, diante das considerações de que indiciava a perícia a referida imputação.
A Sessão de Julgamento foi designada, em conformidade com a normas da Casa, culminando pela exploração, por dias a fio, da exposição dos fatos em Plenário, com ampla cobertura de toda a midia, além de manifestações diárias popularescas defronte e ao redor do ambiente de julgamento.
Ao que se sabe, pouca ou quase nenhuma providência foi tomada no sentido de se tentar assegurar um mínimo de isenção de ânimo aos jurados. Ao menos uma testemunha de acusação, a genitora da vítima, teria declinado, antes de realizar seu depoimento em Plenário, a uma emissora de televisão nacional, por meio de mensagem eletrônica, o conteúdo de seu depoimento.
Pelo que se noticia, agora, um dos jurados declarou seu voto, dias após a realização da Sessão, a outra emissora de televisão, comentando, inclusive, sobre o ânimo dos jurados.
Enfim, a exploração midiática do caso, para a qual, smj, contribuíram, significativamente, o comportamento do Magistrado Presidente daquele Tribunal, bem como, principalmente, o Ilustre Órgão de Acusação, descortina o abuso; isto, porque, não se poderia, jamais, em um Estado democrático de Direito, cujo modelo processual penal é, inquestionavelmente, acusatório, permitir a nefasta influência dos mass midia sobre o Conselho de Sentença.
Ao identificar, a mais remota condição dessa influência, deveria o Juiz Presidente desconstitui-lo, sob pena de ferir de morte a Charta Brasileira, no mínimo. Entretanto, ao que parece ocorrer – ou ter ocorrido – a preocupação se prendia, basicamente, ao encerramento do caso a todo custo, sem que se aventasse, sequer, das possíveis garantias constitucionais (que não são dos acusados, apenas, mas, situam-se para a própria subsistência da higidez do Sistema).
3 POSSÍVEIS NULIDADES
Do ponto de vista científico, que aqui se procurará sustentar, repise-se, as prováveis críticas em nada se referem às pessoas envolvidas, mas, fundamentalmente, a determinados comportamentos identificados, publicamente, os quais teriam o condão de macular a higidez do processo e julgamento.
A instituição do Tribunal do Júri, como bem fez recordar ADEL EL TASSE, em artigo recentemente publicado[i], apresenta como origem exatamente a busca incessante de uma justiça imparcial. Fato é que, quando se permite, num modelo acusatório, que pessoas do povo, pares dos acusados, possam examinar o fato, se procura, com isso, afastar do tecnicismo puro o julgamento, de sorte que se possa confiar no bom senso geral coletivo, expresso nos votos dos jurados.
No caso ora examinado - e em qualquer outro -, a administração da Justiça tem o dever legal de assegurar que essas pessoas possam realizar seu nobilíssimo mister concretamente à margem de quaisquer influências, seja no sentido da condenação ou da absolvição.
Assim, o Conselho de Sentença deve ser guardado, protegido, alijado de qualquer possibilidade de manipulação em seu ânimo, sob pena de se destruir toda a razão de ser das votações e da própria Instituição do Júri, em si. Mais do que isso, o processo penal pode se tornar indevido, ilegítimo, porque se renunciaram às regras elementares que dão forma à sua legitimidade.
Os fatos que agora são tornados públicos, inclusive com declaração pública de voto por um dos jurados, declinando, inclusive, qual era a intenção média ou geral do Conselho de Sentença, estão a manchar o referido julgamento.
Além disso, a manifestação, pública de uma testemunha, no sentido de declinar a uma emissora de televisão, qual seria o conteúdo e a direção de seu depoimento em Plenário, que seria realizado no dia seguinte, também compromete a higidez do julgamento.
Por outro lado, tornou-se público a total inconveniência da realização daquela Sessão, isto porque, durante os dias em que a mesma transcorrera, uma multidão de pessoas se aglomerara defronte e ao redor do edifício, bradando palavras de ordem contra os acusados. Essa condição de precariedade da organização da Sessão, aliada à exploração pela mídia do fato, com vistas a estabelecer condições propícias para a pré-condenação dos acusados, dificilmente poderiam ser desconsideradas como fatores significativos para a mácula da higidez do julgamento.
De se inferir, portanto, a ocorrência de nulidades antes do julgamento, durante e após, o que, inevitavelmente, abalam a seriedade e legitimidade do mesmo. A Justiça Paulista mostrou-se subserviente dos mass midia, pois o julgamento mais se parecera com uma sessão circense em que os atores se limitaram a ignorar a mais simples condição de sua realizabilidade em conformidade com os ditames constitucionais.
E, pior, alguns dos atores demonstraram nítido comprazimento com a instalação dessa ordem das coisas: um Júri como espetáculo dantesco. Basta que se inspecione a condição do órgão acusatório, antes, durante e após o julgamento; haverá quem pleiteie a presença do referido em todas as missas das vítimas dos casos em que atuara, de ora em diante... Risível a exploração do caso, numa demonstração de um comportamento aparentemente oportunista e casuístico, a comprometer a sua condição de representante da sociedade, ao menos no caso citado. Sugere-se a sua suspeição.
Isso, contudo, é pouco, se se levar em consideração o comportamento de pelo menos um dos jurados, dias após o encerramento do caso, com a declaração pública de seu voto. Repise-se que o sigilo é das votações e não nas votações, como bem lembrara ADEL EL TASSE[ii].
Por tudo o que se noticia o devido processo penal restou ferido de morte ao final desse julgamento.
4 IDENTIFICAÇÃO DO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Observados os fatos apresentados, questiona-se se o caso em questão não teria servido, muito mais, à ideia de manifestação concreta de um Direito Penal do inimigo?! (No caso, inimigos seriam Nardoni e Jatobá, como exemplares indignos da espécie humana, a merecerem todo um tratamento jurídico-penal – e midiático – de execração pública)
Esse modelo de Direito Penal, cuja alcunha lhe dera GÜNTHER JAKOBS[iii], tem servido e sido presenciado, historicamente, para a solução de uma série de inconvenientes, como argumento de autoridade. Tratar determinados seres humanos como coisa e não como pessoas, segundo o referido autor, seria algo bastante funcional, porque esse Direito nada mais representaria do que a reação de guerra do Estado frente a determinados seres.
Como o núcleo duro desse modelo de subsistema penal reside na possibilidade de desconsideração da personalidade humana de determinados seres, o que justificaria a não preservação de determinados – ou de todos – direitos, face à própria condição dos tais seres, fato concreto é a adoção, pura e simples, de uma ação de guerra, porque, então, não necessitaria, mais, do Direito para o diálogo entre o Estado e tais delinquentes. Isso, porque, para JAKOBS, o que define a condição de pessoa não é a sua ontologia como membro da espécie humana; antes, a personalidade humana seria uma construção eminentemente normativa[iv].
É claro que essa construção jakobiana tem sido refutada à altura. GRACIA MARTÍN tem constantemente advertido que essa arquitetura sobre a identidade humana é irreal[v]. Negar-se a condição de pessoa a determinados seres humanos alegando, em suma, que para ostentar tal condição seria necessário um comprometimento concreto com os valores ético-sociais vigentes (normativos) contraria todo o processo de evolução humana e a própria natureza das coisas.
Essa premissa se mostra bastante evidente em LUIZ REGIS PRADO, que demonstra a artificialidade da “construção normativa de pessoa, já que todo indivíduo é portador de dignidade humana, não sendo esta última uma condição proveniente de um determinado estado do ser humano”[vi].
ZAFFARONI adverte, com acerto, que não se pode pretender reduzira um grupo de pessoas determinado tratamento jurídico-penal sem que, para esse desiderato, sejam alijadas todas as pessoas das garantias frente ao absolutismo estatal[vii].
Nessa perspectiva LUIZ REGIS PRADO tem demonstrado que a consagração do garantismo, isto é, de princípios garantistas serve à “instrumentalização do Direito e do Estado para garantir direitos e bens fundamentais ao indivíduo”[viii].
A partir dessas perspectivas, e, mergulhando na hipótese ora analisada, salvo melhor juízo, apenas formalmente é que o Júri do caso Nardoni poderia vislumbrar um modelo protecionista de garantias; materialmente, todo o Júri se apresenta eivado de nulidades, algumas delas subreptícias.
Logo, se não se pode reconhecer, de plano, a existência de um Direito Penal do inimigo em relação aos réus do caso, nada impede que se observe a aplicabilidade de modalidades desse “direito” ao caso concreto, tendo em vista a manipulação e distorções do próprio devido processo penal diante das pressões realizadas pela mídia e por seguimentos da sociedade organizada.
Ora, nesse sentido, apenas se se pudesse considerar a condição da adoção plena de um modelo de Direito Penal do inimigo para o Direito brasileiro é que se legitimariam as nulidades que brotam do caso ora examinado; parece, entretanto, ser absolutamente incompatível com o modelo constitucional de processo penal essa aceitação, o que demanda a sua rejeição: nenhum Direito Penal do inimigo pode conviver em harmonia no modelo constitucional-penal brasileiro.
5 CONCLUSÕES
Por fim, o objetivo desse breve ensaio é – brevemente – despertar a atenção de todos aqueles que se mostram preocupados com o avanço do Direito Penal do inimigo para a relevância de tal problemática, possibilitando-se a recusa de toda e qualquer manifestação dessa ordem de coisas, ainda que, formalmente, o Direito Penal e o Processo Penal tenham a aparência de legítimos.
Com efeito, um Estado que não apresenta limites e que – vez por outra – tenta solapar as liberdades públicas – inclusive por meio de bem intencionadas atitudes de suas autoridades, açuladas ou não pela mídia – não tardará a desbordar a desumanização e instrumentalização do Direito Penal, elegendo alguns determinados seres humanos como inimigos. A questão problemática é: quem elege esses inimigos? Como limitar o Estado de Polícia? Que compromissos ou relações de subserviência pode ter esse Estado com os mass midia, a tal ponto de se solapar o devido processo penal substancial?
Embora a análise à luz dos valores e delineamentos constitucionais demonstre a insustentabilidade de tais atos, temível é que – diante da insegurança cognitiva que acua as relações sociais – se encontrará um caldo de cultura bastante propício a receber ampla legitimação da sociedade, que – amedrontada pela criminalidade ou açulada pelos mass midia – entenderá que essa manifestação de um direito penal do inimigo – além de eficaz – é necessária, pois em virtude de seu maior grau de coercitividade, poder-se-á vincular eventual minimização dessa insegurança cognitiva exclusivamente à limitação de direitos e garantias individuais, manipulação conveniente do processo penal e outros mecanismos hábeis à conveniência estatal, lógica essa que em breve lapso temporal poderá irradiar-se por toda a atividade judiciária e político-criminal, que terá por escopo assegurar a paz e a segurança cognitiva, independentemente dos meios como essas serão promovidas.
Indubitável é que a manipulação da grande massa populacional foi – e continuará sendo o principal mecanismo de sustentação da pseudo-democracia, de forma que a operacionalidade dos mass midia pode, sim, trazer nefastas conseqüências para um Direito Penal de garantias. E, nesse sentido, deve-se frisar que a opinião pública não é – normalmente – a melhor instância para se colher a legitimidade dos atos, já que a mesma sociedade que hoje defende tais medidas, amanhã será a sua própria vítima, causando o desequilíbrio no sistema de controle social e acabando por perverter a lógica da contenção. A pergunta é: a que custo se pretende levar a termo essa perversão das garantias constitucionais, como parece ter ocorrido em relação ao Júri ora analisado?!
6 BIBLIOGRAFIA
GRACIA MARTÍN, Luis. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo. Trad. Luiz Regis Prado; Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: RT, 2007.
JAKOBS, Günther. Derecho penal del ciudadano y Derecho penal del inimigo. In: Jakobs; Cancio, Derecho penal del inimigo. Cuadernos Civitas. Madrid, 2003.
______. La idea de la normativización en la dogmática jurídico-penal. In: MORENO HERNÁNDEZ, Moisés (Coord.). Problemas capitales del moderno derecho penal a principios del siglo XXI. México D.F.: Cepolcrim, D.R. Editorial Ius Poenale, 2003.
PRADO, Luiz Regis. Garantismo jurídico-penal e Direito Penal do inimigo: uma palavra. Disponível em: www.regisprado.com/artigos/garantismo%20e%20direito%20penal%20do%20inimigo.doc Acesso em: 10-04-2010.
TASSE, Adel El. Júri Nardoni é nulo. Disponível em: www.conteudojuridico.com.br, Acesso em 01-04-2010.
ZAFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
[i] TASSE, Adel El. Júri Nardoni é nulo. Artigo capturado do site www.conteudojuridico.com.br, em 01/04/2010.
[ii] Idem, ibidem.
[iii] JAKOBS, Günther. Derecho Penal del ciudadano y Derecho Penal del enemigo. In: JAKOBS; CANCIO MELIÁ. Derecho Penal del enemigo. Cuadernos Civitas, Madrid, 2003, p. 38 e ss.
[iv] ______. La idea de la normativización em la dogmática jurídico-penal. In: MORENO HERNÁNDEZ, Moisés (Coord.). Problemas capitales del moderno derecho penal a principios del siglo XXI. Cepolcrim, D.R. Editorial Ius Poenale, México, 2003, p. 72.
[v] GRACIA MARTÍN, Luis. O horizonte do finalismo e o direito penal do inimigo. Trad. Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: RT, 2007, p. 137.
[vi] PRADO, Luiz Regis. Garantismo jurídico-penal e direito penal do inimigo: uma palavra. Disponível em: www.regisprado.com/artigos/garantismo%20e%20direito%20penal%20do%20inimigo.doc Acesso em: 10-04-2010.
[vii] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007, p. 191-192.
[viii] PRADO, Luiz Regis. Garantismo jurídico-penal e direito penal do inimigo: uma palavra. Disponível em: www.regisprado.com/artigos/garantismo%20e%20direito%20penal%20do%20inimigo.doc Acesso em: 10-04-2010.
Mestre em Direito (Tutela de Direitos Supraindividuais) pela UEM; <br>Professor Assistente da UFMS (DCS/CPTL) - Campus de Três Lagoas. <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, Cláudio Ribeiro. O devido processo penal não se harmoniza com o teatro dos vampiros: Breves considerações acerca de possíveis nulidades do Júri Nardoni/Jatobá Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 abr 2010, 01:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/566/o-devido-processo-penal-nao-se-harmoniza-com-o-teatro-dos-vampiros-breves-consideracoes-acerca-de-possiveis-nulidades-do-juri-nardoni-jatoba. Acesso em: 25 nov 2024.
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