Resumo: Pretende-se abordar a adequada interpretação do disposto no art. 212 do Código de Processo Penal, alterado pela Lei n.º 11.690/2008, tendo como parâmetros a ordem Constitucional vigente e os resquícios do sistema processual penal anterior, lastreado no CPP - Decreto-Lei n.º 3.931/1941.
Palavras-chave: Processo Penal. Sistema Acusatório. Produção de Provas.
SUMÁRIO: 1. Introdução 2. As recentes reformas do Código de Processo Penal 3. A produção da prova oral de acordo com o art. 212 do Código de Processo Penal 4. Conclusões 5. Notas 6. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
A promulgação da Constituição Federal, em 10 de outubro de 1988, inaugurou uma nova ordem jurídica no Brasil. Um breve passar d’olhos no seu artigo quinto revela a influência, sem precedentes, dos princípios lastreados no respeito ao ser humano em toda sua plenitude1. No campo processual penal os avanços saltam à vista. O devido processo legal foi expressamente previsto como garantia individual fundamental no inciso LIV, do art. 5º.
Mas, não foi só isso, se a presença de cláusula consagradora do due process of law, por si só, justifica a existência, mesmo que de forma implícita, de uma série de garantias a ela atreladas2, o legislador constituinte não se omitiu na previsão expressa de outras regras processuais, no próprio artigo 5.º e fora dele, a saber: a presunção de inocência, o contraditório e a ampla defesa, a imparcialidade do juiz, o juiz natural, publicidade do processo, exigência de motivação das decisões judiciais entre outros.
Com amparo nesta nova Ordem Constitucional – e, além dos dispositivos já citados, a previsão da titularidade privativa da ação penal pública conferida ao Ministério Público, art. 129, I, CF - convencionou-se afirmar que entre nós vige o sistema processual do tipo acusatório3. Poucos são os que contestam tal afirmativa, mencionando apenas algumas ressalvas4. Não se contesta, entretanto, que a marca do Sistema Acusatório é a separação das funções de acusar, defender e julgar. Funções que deverão, inafastavelmente, estar em mãos de pessoas distintas, os diversos atores do processo.
O presente trabalho se propõe a analisar, de forma breve e sucinta, o real significado da nova redação do art. 212 do CPP, alterado pela Lei n. 11.690, de 9 de junho de 2008, considerando sua íntima relação com o denominado Processo Acusatório.
2. AS RECENTES REFORMAS DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
A vigência Constituição Federal de 1988 não afastou, de imediato e por completo, o sistema processual penal anterior. Naturalmente, deu início ao processo de interação do Texto Constitucional com a legislação ordinária em vigor. Os estudos acerca dos preceitos constitucionais concernentes ao processo penal tornaram-se fartos. Grandes obras foram delineadas com base na idéia do novel Processo Penal Constitucional5.
Ainda assim, considerável parcela da doutrina e jurisprudência iniciou uma verdadeira cruzada a fim de justificar, com raciocínios nem sempre inteligíveis, as evidentes incursões inquisitivas previstas no código vigente que, obviamente, o afastam do modelo acusatório6.
As recentes reformas reabriram antigas feridas. Reavivando as discussões acerca do alcance dos preceitos constitucionais. As Leis n. 10.792, de 01 de dezembro de 2003, 11.689 e 11.690, ambas de 9 de junho de 2008, e 11.719, de 20 de junho de 2008, alteraram, sensivelmente, o sistema objetivando, declaradamente7, a sua adequação à Constituição Federal e, com isso, dar vida ao garantismo que permeia os preceitos constitucionais, sem, contudo, perder de vista o objetivo de tornar mais célere e efetiva a prestação jurisdicional no campo penal.
A busca da celeridade na prestação jurisdicional atingiu o apogeu com a introdução do inciso LXXVIII, no art. 5.º, da CF, pela Emenda n. 45/2004. Assim, tem-se que “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação” foram elevados ao patamar de garantia fundamental do ser humano.
Entretanto, conforme mencionado acima, continua-se a notar esforço hercúleo, de boa parte da comunidade jurídica, para manter o processo penal no mesmo patamar pré-Constituição Federal de 1988.
4. A PRODUÇÃO DA PROVA ORAL DE ACORDO COM O ART. 212, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Recentemente, a nova redação do art. 212 do código, estabelecida pela Lei n. 11.690/2008, tem provocado intenso debate e chamado a atenção. A substituição do sistema presidencialista de inquirição – sistema no qual as partes formulam perguntas ao juiz que as reformula às testemunhas, daí a expressão reperguntas do juiz – pelo sistema da inquirição direta, também denominado cross examination – sistema de origem norte-americana, que determina caber à parte a produção da prova e, portanto, a condução do inquirição – reacendeu a questão papel do juiz na produção da prova no processo penal.
Ressalte-se, por oportuno, que o PLS n. 156/2009 - Projeto de Lei que pretende a reforma total do Código de Processo Penal – mantém a mesma redação do art. 212, no art. 177, que trata da prova testemunhal, acrescentando o parágrafo segundo, com seguinte redação: “se das respostas dadas ao juiz resultarem novos fatos ou circunstâncias, às partes será facultado fazer reperguntas, limitadas àquelas matérias”.
Com efeito: o artigo citado é claro ao estabelecer que “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida”. No mais, o parágrafo único estabelece que “sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição”.
A redação do dispositivo evidencia a intenção dos idealizadores do projeto de reforma de substituir o vetusto sistema presidencialista pela inquirição direta e colocar o juiz na condição de fiscalizador da atividade das partes.
A clareza do dispositivo, entrementes, não foi o bastante para pacificar a sua interpretação. Autores de escol afirmam que o dispositivo não apresenta mudança significativa no procedimento de tomada do depoimento de testemunhas. Neste sentido, NUCCI argumenta, após elogiar a alteração legal, que: “foi alterado, apenas, o sistema de inquirição feito pelas partes. Nada mais. O juiz como presidente da instrução e destinatário da prova, continua a abrir o depoimento, formulando, como sempre fez, as suas perguntas às testemunhas de acusação, de defesa ou do juízo. Somente após esgotar o seu esclarecimento, passa a palavra às partes para que, diretamente, reperguntem”8.
Felizmente, o entendimento acima não foi adotado pelo Ministro Jorge Mussi, do STJ, ao decidir sobre a questão no Habeas Corpus nº 121.216 – DF, publicado com a seguinte ementa:
“HABEAS CORPUS. NULIDADE. RECLAMAÇÃO AJUIZADA NO TRIBUNAL IMPETRADO. JULGAMENTO IMPROCEDENTE. RECURSO INTERPOSTO EM RAZÃO DO RITO ADOTADO EM AUDIÊNCIA DE INSTRUÇÃO E JULGAMENTO. INVERSÃO NA ORDEM DE FORMULAÇÃO DAS PERGUNTAS. EXEGESE DO ART. 212 DO CPP, COM A REDAÇÃO DADA PELA LEI 11.690/2008. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO.”
Extremamente significativo, o acórdão menciona, expressamente, a modificação do sistema de inquirição como evidência da adoção do sistema acusatório, declarando a nulidade do ato praticado em desconformidade com o mandamento legal. Não se trata, deixe-se consignado, de posicionamento isolado já que no julgamento do Habeas Corpus nº 137.091, desta feita, da lavra do Ministro Arnaldo Esteves Lima, confirmou-se a ideia. Vale a transcrição:
“A abolição do sistema presidencial, com a adoção do método acusatório, permite que a produção da prova oral seja realizada de maneira mais eficaz, diante da possibilidade do efetivo exame direto e cruzado do contexto das declarações colhidas, bem delineando as atividades de acusar, defender e julgar, razão pela qual é evidente o prejuízo quando o ato não é procedido da respectiva forma.”
De grande valor a menção à ofensa ao devido processo legal a ser reconhecida em caso de desobediência da ordem estabelecida para a produção da prova no processo penal. Coaduna-se com a ideia de que o devido processo legal configura regra genérica a ser interpretada como garantidora do reconhecimento de outras regras, mesmo que implícitas. A orientação no sentido de que os princípios devam ser vistos como formadores da unidade sistêmica do ordenamento é primordial.
Espera-se que as decisões do STJ, acima expostas, se cristalizem como entendimento jurisprudencial e ajudem a colocar fim ao dissenso relativo à interpretação das novas disposições do art. 212 do código.
Porém, sem falsas ilusões, sabe-se que a candente discussão em torno da real compreensão do denominado sistema acusatório e suas consequências no processo penal está muito afastada de um final.
E, por isso mesmo, demanda enorme esforço dos estudiosos. Esforço este, voltado ao aperfeiçoamento do sistema processual penal, baseado “na busca de um sistema acusatório mais apurado, a reservar ao Ministério Público o direito de acusar e de delimitar o âmbito da acusação, negando-se ao juiz atuação de ofício”9.
4. CONCLUSÕES
A Constituição Federal de 1988 idealizou o sistema acusatório para reitor do processo penal brasileiro. Para alcançar o objetivo estabeleceu uma base principiológica que informa a transição do sistema então vigente, marcadamente inquisitivo - baseado no Decreto-Lei n. 3.689/1941 - para o sistema acusatório, que resultasse num genuíno processo de partes. Processo este, no qual, a exemplo do que vociferou o STJ nas decisões aqui retratadas, se reconheça adequadamente a separação das tarefas de acusar, defender e julgar. E, reconheça-se, sem pestanejar, o evidente prejuízo do descumprimento das normas atinentes a esta separação de funções.
Não se pode, após mais de vinte anos de vigência da Constituição Federal, conviver com interpretações fracionadas dos princípios constitucionais. O respeito ao due process of law impõe obediência a todos os outros princípios, explícitos ou implícitos, de forma a garantir a plena fruição dos direitos e garantias individuais. Entende-se que a questão somente será, adequadamente, tratada a partir do momento em que houver um ajuste de objetivos. Assim, o princípio acusatório deve ser o norte de toda e qualquer interpretação da lei processual penal. A mera literalidade ou o apego a ultrapassadas fórmulas processuais devem ser deixados, finalmente, de lado.
O temor pelo novo ou mesmo a zona de conforto proporcionada pelo status quo não podem impedir o avanço da ciência processual, justificando interpretações forçadas do texto legal. A reforma do ordenamento infraconstitucional baseado na busca de sua conformidade com a Norma Maior deve ser o objetivo incessante do legislador impulsionado, conforme deve ser, pelos estudiosos e operadores do Direito.
Com o escopo definitivo de por fim às discussões inócuas é preciso estabelecer qual é o Processo Penal que se deseja para o Brasil. Se é este que aí está, rejeitando, o quanto é possível, os preceitos estabelecidos pela Constituição Federal, ou, se é um Processo Penal que se alie a todas as aspirações expressas no Texto Constitucional.
Defende-se, explicitamente, a adoção dos preceitos constitucionais, em toda sua plenitude. Entende-se que, somente assim, será possível experimentar o sonho da efetividade máxima da dignidade do ser humano, baseado no reconhecimento do Estado Democrático de Direito, conforme determina a Constituição Federal, já em seu preâmbulo.
5. BIBLIOGRAFIA
AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2009.
CHOUKR, Fauzi Hassan. Processo penal à luz da constituição: temas escolhidos. Bauru: Edipro, 1999.
CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. 2ª ed. São Paulo: RT, 2000.
MACHADO, Antonio Alberto. Curso de Processo Penal. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2010.
MOUGENOT BONFIM, Edílson. Curso de processo penal. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5ª ed. São Paulo: RT, 2008.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2ª ed. São Paulo: RT, 2004.
5. NOTAS
1. Entre nós, as Constituições, desde o Império, contemplaram normas de garantia individual, sendo nesse aspecto pródiga a Constituição atual, que, em seu art. 5.º, apresenta extenso rol de regras destinadas a assegurar os direitos individuais e coletivos. A Constituição atual manteve preceitos das anteriores Constituições. Acrescentou outros. Formam todos um conjunto de garantias que informam todo o sistema brasileiro. FERNANDES, Antonio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: RT, 2000, p. 12-13.
2. Outro passo importante vem sendo dado para alargar o universo das garantias do devido processo. Consiste na introdução, nas Constituições, além das garantias explícitas, de regra genérica que assegure a todos a garantia do devido processo, uma “garantia inominada” que, por construções doutrinárias e jurisprudenciais, servirá para que se considere constitucional determinada garantia não expressa. Idem, p. 45.
3. Neste sentido: CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 26ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 64-65; MACHADO, Antonio Alberto. Curso de processo penal. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 35; MOUGENOT BONFIM, Edílson. Curso de processo penal. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 52; e AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. São Paulo: Editora Método, 2009, p. 7.
4. O sistema adotado no Brasil, embora não oficialmente é o misto. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5ª ed. São Paulo: RT, 2008, p. 117. Princípio da iniciativa das partes. Segundo esse princípio, cabe à parte provocar a prestação jurisdicional.[...]Contudo o Código lhe permite conceder habeas corpus de ofício (e o habeas corpus é uma ação penal popular). Permite-lhe decretar, de ofício, a prisão preventiva (e a prisão preventiva é uma ação cautelar...), o que demonstra que o nosso Processo Penal, embora acusatório, não o é genuinamente,[...]. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de processo penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 66.
5. Sem a intenção de apresentar rol exaustivo. Mas, simplesmente, para ilustrar a afirmação deve-se citar, além do já mencionado Processo Penal Constitucional, de Antonio Scarance Fernandes, as obras Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro, de Rogério Lauria Tucci e Processo penal à luz da constituição: temas escolhidos, de Fauzi Hassan Choukr.
6. Demonstração cristalina dessa atitude ampara, ainda hoje, o entendimento de boa parte da doutrina e jurisprudência, inclusive dos Tribunais Superiores, no sentido de que o recebimento da denúncia ou queixa dispensa a fundamentação. Desconsiderando, assim, o preceituado no inciso IX, do artigo 93 da CF. MOUGENOT BONFIM enfatiza: “A decisão de recebimento da denúncia não necessita de fundamentação exauriente, pois não é ato decisório, mas de mera admissibilidade da acusação. Além disso, o recebimento indica, ainda que implicitamente, que houve exame das provas anexadas à denúncia. Por outro lado, caso haja motivação no recebimento, corre-se o risco de haver prejulgamento dos fatos.” E, continuando, menciona na sequência, que o STJ e o STF já decidiram que o recebimento da denúncia dispensa a motivação. (Curso de processo penal. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 482.). Registre-se, por fim, que o Projeto de Lei nº. 4207/2001, previa a reformulação do art. 396 do CPP, que passaria a conter a obrigatoriedade de motivação da decisão de recebimento da denúncia. Entretanto, o Projeto, que foi alvo de emendas, resultou na promulgação da Lei 11.719/2008, que não prevê a necessidade de motivação da decisão. Previsão desnecessária, diga-se, ante o texto Constitucional.
7. Desde o advento da constituição Federal de 1988 a doutrina processual postula a conformação do Código de Processo Penal com os princípios, normas e regras constitucionais[...]Da exposição de motivos do Projeto de Lei n.º 4204/2001 que originou a promulgação da Lei 10792/2003.
8. Aut. cit., op. cit. p. 474-475.
9. FERNANDES, Antonio Scarance. Op. cit., p. 22.
Mestre em Direito (Tutela Jurisdicional no Estado Democrático de Direito) pela UNITOLEDO/SP; Professor da UFMS - Campus de Três Lagoas. Site pessoal: http://www.tellesotaviano.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: OTAVIANO, Luiz Renato Telles. Qual é o processo penal que desejamos para o Brasil? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2010, 01:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/569/qual-e-o-processo-penal-que-desejamos-para-o-brasil. Acesso em: 25 nov 2024.
Por: Adel El Tasse
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Por: RICARDO NOGUEIRA VIANA
Por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Precisa estar logado para fazer comentários.