Introdução
A lei 8.009/90, conhecida como “Lei da Impenhorabilidade do bem de família”, no intuito de resguardar a dignidade da pessoa humana, tornou impenhorável o único imóvel residencial da família, bem como os bens que o guarnecem, excetuando-se, somente os veículos de transporte e os bens de natureza supérflua e suntuosa. Com o presente artigo, busca-se analisar a extensão desta impenhorabilidade, face os parâmetros da imprescindibilidade, suntuosidade e hipossuficiência. Ademais, busca-se evidenciar o verdadeiro objetivo da lei – proteção da família, sem que o rigorismo impossibilite a cobrança de dívidas das classes média e baixa.
O bem de família e a lei 8.009/90
O “bem de família”, que teve origem nos Estados Unidos (homestead) há muito era protegido e resguardado pelas legislações.
Sílvio de Salvo Venosa (2001, p. 283), conceitua-o como “uma porção de bens que a lei resguarda com os característicos de inalienabilidade e impenhorabilidade, em benefício da constituição e permanência de uma moradia para o corpo familiar”.
E Álvaro Villaça Azevedo (2002, p. 93), complementa que "é o meio de garantir um asilo à família, tornando-se o imóvel onde a mesma se instala domicílio impenhorável e inalienável, enquanto forem vivos os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade".
Ao tutelar o bem de família, o ordenamento jurídico visa garantir as “condições mínimas” de sobrevivência adequada e digna.
A lei 8.009/90 estabeleceu a proteção tanto do imóvel residencial do casal ou da entidade familiar, como dos bens que a guarnecem, excetuando somente aqueles considerados suntuosos e supérfluos. In verbis:
“Art. 1º O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta lei. Parágrafo único. A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados”.
Ampliou-se o conceito de “bem de família”, com reflexos fundamentais no processo executório.
A impenhorabilidade dos bens que guarnecem a residência. A ausência de um critério objetivo na legislação. O estabelecimento da imprescindibilidade diante dos parâmetros valorativos do caráter supérfluo e suntuosidade
O presente estudo não pretende analisar questões atinentes ao imóvel da família. Intenta-se, em verdade, discutir a extensão da impenhorabilidade dos bens que guarnecem a respectiva residência, partindo-se dos propósitos sociais da lei, bem como visando a coibição do calote e da fraude nos processos executivos.
Desde a edição da lei, a doutrina e a jurisprudência têm buscado esclarecer quais bens do devedor seriam impenhoráveis, face a ausência de um critério objetivo.
O próprio Sílvio de Salvo Venosa (2001) duvida da sinceridade dos propósitos sociais da norma, que não distingue entre os bens de uma moradia humilde e os bens que guarnecem um palacete ostentativo.
Não se pode olvidar da dificuldade de se estabelecer o que indispensável e imprescindível em uma residência familiar. Como bem ensina Marco Aurélio Leite da Silva (2002), na análise da legislação, devem ser relevados os elementos valorativos do caráter supérfluo e da suntuosidade.
Enquanto supérfluo tem o sentido de desnecessário e demasiado, suntuoso pode ser definido como luxuoso, aparatoso e imprescindível, por outro lado, é aquilo que não pode ser dispensado, necessário, fundamental.
O Superior Tribunal de Justiça não tem demonstrado um critério rígido em seus julgamentos - ao mesmo tempo em que já considerou impenhoráveis aparelhos televisores (RESP 198370 – MG – Julgamento em 16 de novembro de 2000) e microondas (RESP 299392 – RS – Quinta Turma – Julgamento em 20 de março de 2001), também já admitiu como válida a penhora de bens que guarnecem a residência da executada quando prescindíveis ao convívio familiar e à dignidade de seus membros (STJ, RESP 248503 – SP – Quinta Turma – Julgamento em 16 de maio de 2000).
Daniela Parra Pedroso Yoshikawa (2009), traz à baila que o padrão médio de vida familiar deve ser levado em consideração quando da análise da (im) penhorabilidade de um determinado bem da residência. Cita o entendimento da 2ª Turma Recursal Cível dos Juizados Especiais do Rio Grande do Sul que, para ser penhorado, o bem deve se enquadrar na definição de adorno suntuoso, supérfluo ou que ultrapasse as necessidades comuns correspondentes ao médio padrão de vida.
Em que pesem as louváveis opiniões em contrário, não nos parece razoável admitir que aparelho televisor, microondas, freezer, aparelho de DVD, aparelho de som, computadores, impressoras, secadoras de roupa ou aparelhos de ar-condicionado sejam impenhoráveis. Como bem ponderou o desembargador Irineu Pedrotti, em sede da Apelação nº 946.293-0/4 (Tribunal de Justiça de São Paulo – 34ª Turma – Seção de Direito Privad0 – julgamento em 20 de agosto de 2008), “a teologia social da lei é de proteger o devedor e a sua família da penúria a que a execução total dos bens levaria, o que aqui não acontece”.
As altas taxas de inadimplência e o descontrole financeiro de parte da população não podem ser protegidos indiscriminadamente pelo “bem de família”. Muitas pessoas, inclusive, fazem débitos objetivando não pagá-los, pois se entendem “protegidos e seguros” pela norma.
Assim, a impenhorabilidade dos bens que guarnecem a residência do casal ou da entidade familiar não deve ser tratada de modo rigoroso ou absoluto. A lei não visou incentivar o calote ou excluir, indiscriminadamente, da execução, os bens do devedor. Neste sentido, pondera Marco Aurélio Leite da Silva (2002):
“Inescondível a componente social que norteia a norma, de modo que, analogamente ao tratamento jurídico dispensado a outras disciplinas igualmente inspiradas no senso social, somente deve haver rigor restritivo à efetivação da penhora diante de hipossuficiência econômica do executado. É o contrapeso necessário à busca da satisfação do débito, impedindo-se que o direito patrimonial, para ser observado, relegue ao ostracismo bens jurídicos muito superiores aos interesses econômicos em lide. Somente diante de hipossuficiência econômica legitima-se a proteção do devedor que, afinal de contas, é devedor. Que a família não sofra, como se diz popularmente, "na carne" o preço a ser pago. Mas nada justifica tomar a exceção como regra geral, até mesmo porque a Lei 8009/90 certamente não foi editada para afastar da execução indiscriminadamente os bens que existam em uma residência abundantemente. Uma família que possua um único imóvel e dele se sirva para a própria existência, mas que tenha em seu interior, digamos, três aparelhos de televisão, ou mais de um aparelho de som, não parece estar sob a proteção da lei em tudo o que exceda a condição de sobrevivência digna. (...) A cidadania de todos da família não será afetada pela penhora de um dos aparelhos disponíveis da casa, cuja eventual perda acarretará, quando muito, uma diminuição do conforto original em contrapartida à satisfação do direito do credor. Entender-se ao contrafluxo cria a possibilidade do indivíduo conduzir-se de má-fé, internando na casa elementos que lá não manteria, por serem desnecessários, como eventuais acessórios de conforto em duplicidade”.
O critério da hipossuficiência deve ser prestigiado. Somente serão impenhoráveis os bens indispensáveis à habitabilidade mínima da família, os efetivamente necessários para a manutenção da dignidade da pessoa humana.
Não é justo que o devedor permaneça em sua residência, com todos os seus bens e todo o conforto, enquanto o credor luta por anos para conseguir a satisfação do seu crédito (e pode vir a não conseguir diante de uma impenhorabilidade absoluta e descabida).
Não poderá um indivíduo sobreviver sem o seu computador, sua secadora de roupa ou seu aparelho de DVD? Quantas pessoas não vivem sem tais aparelhos eletrônicos em nosso país? Será indigna a sua mantença ou apenas haverá uma perda de conforto?
Para o juiz Rogério Valle Ferreira (Tribunal Regional do Trabalho – 3ª Região – Processo nº 01578-1998-020-03-00-4 – AP – 5ª Turma – Julgamento em 30 de junho de 2009), “na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum” e “não é razoável que a executada permaneça encastelada em sua residência, cercada de todo conforto (home teather e computadores de última geração, p. ex), enquanto a exeqüente (...) permaneça sem receber o seu crédito”. Para ele, a lei 8.009/90 deve ser aplicada e interpretada juntamente com o artigo 5º da Lei de Introdução ao Código Civil e, neste sentido, “a Justiça tem que dar uma resposta ao hipossuficiente, fazer valer as suas decisões, ao passo que a executada tem que procurar meios para pagar a dívida, e não apenas se esquivar dela, desvirtuando a mens legis para se furtar ao cumprimento da sua obrigação”.
Neste sentido, a jurisprudência de nossos Tribunais:
“Televisores e aparelho de som escapam da protetora inspiração social da impenhorabilidade”. (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul- SEGUNDA TURMA 10/10/1996).
“Agravo – Execução – Penhora de televisor, aparelho de som e antena parabólica – Alegação de serem bens de família, portanto, impenhoráveis – Exclusão apenas do televisor – Demais são prescindíveis ao funcionamento da residência”. (Tribunal de Justiça de São Paulo – Relator Des. Josué de Oliveira – Julgamento em 12 de agosto de 2003 – 1ª Turma Cível – Publicação em 01 de setembro de 2003).
“Estantes “não são imprescindíveis ou indispensáveis” (...) e poderão, na melhor das hipóteses, ser consideradas úteis”. (8ª CC Des. Jorge Dall´Agnol Jr – Al 198003014, Jornal do Comércio, 6-7-98, p. 39)
“EMBARGOS À EXECUÇÃO. PENHORA. BEM DE FAMÍLIA. MÓVEIS QUE GUARNECEM A RESIDÊNCIA DA DEVEDORA. Verificou o MM. Juízo “a quo” que os bens relacionados não são essenciais para a sobrevivência da Apelante, cujo patrimônio continua constituindo a garantia geral da Apelada. Nada impede a penhora em relação a eles, uma vez que a teleologia social da lei é de proteger o devedor e sua família da penúria a que a execução total dos seus bens levaria, o que aqui não acontece. (...) Foram constritados bens (...) como freezer, lava-louça, aparelho de televisão, vídeo-cassete e aparelho de som. (...) MÁ-FÉ. CARACTERIZAÇÃO. A Apelante extrapolou os limites do procedimento apenas para “ganhar tempo”, deduzindo pretensão contra fato incontroverso e tentando alterar a verdade dos fatos, usando do processo para conseguir objetivo ilegal, causando injustificada demora no resgate de obrigação que remonta ao ano de 2002. Essa conduta é temerária e autoriza o reconhecimento de “mala fides””. (Voto nº 11.426.- Apelação Cível nº 946.293-0/4 – Tribunal de Justiça de São Paulo – 34ª Câmara – Seção de Direito Privado – Julgamento em 20 de fevereiro de 2008 – Relator Des. Irineu Pedrotti – Comarca de Santos).
Conclusão
A lei 8.009/90 ampliou o conceito de bem de família, com o escopo de tornar impenhoráveis os bens que guarnecem a residência da entidade familiar, excetuando somente aqueles de natureza supérflua e suntuosa. Todavia, não trouxe qualquer critério objetivo para delimitar tais bens.
Tem sido tormentoso para a jurisprudência estabelecer o que é realmente indispensável em uma residência familiar. Os critérios da hipossuficiência e da imprescindibilidade são largamente utilizados. A melhor técnica tem entendido que o devedor deve ser protegido da penúria, garantida uma existência digna, sem tampouco excluir todos os bens da penhorabilidade. Não é justo nem razoável que o devedor permaneça com todos os seus bens, confortavelmente, e o credor não satisfaça o seu crédito.
Deve se atentar para a finalidade social da lei, compreendendo-se que a dignidade de uma família não será afetada pela penhora de alguns aparelhos eletrônicos como computadores, ares-condicionado, DVDs, microondas, homes - theater, secadoras de roupa, antenas parabólicas, etc.
Bibliografia
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Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. Bem de família: análise da (im) penhorabilidade dos bens que guarnecem a residência do executado sob a ótica da (im) prescindibilidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 10 jun 2010, 00:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/617/bem-de-familia-analise-da-im-penhorabilidade-dos-bens-que-guarnecem-a-residencia-do-executado-sob-a-otica-da-im-prescindibilidade. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Remo Higashi Battaglia
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
Por: Remo Higashi Battaglia
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