Introdução
Esta semana foi noticiada, em todos os meios de comunicação, a decisão proferida pela justiça de São Paulo (comarca de Marília) que autorizou a alteração do nome de uma transexual, admitindo que determinado indivíduo, apesar de ter nascido homem, teria se transformado, com perfeição, em uma mulher e que não poderia ser colocada uma barreira jurídica na concretização de sua identidade.
Esta possibilidade de retificação do prenome há muito tempo gera controvérsia na doutrina e jurisprudência pátrias diante da inexistência de regulamentação específica para a hipótese (lacuna jurídica).
Debatem os estudiosos do direito se a proibição da alteração do nome não colidiria frontalmente com a dignidade e a cidadania do indivíduo, tão somente lhe causando humilhações e constrangimentos cotidianos. Ademais, deve ainda ser lembrado que muitos tribunais (inclusive o Superior Tribunal de Justiça) já admitiram a possibilidade de alteração do nome com ressalvas, o que poderia lesar ainda mais o transexual.
Do direito ao nome
Maria Helena Diniz (2005, p. 148) nos ensina que o nome é o sinal exterior através do qual uma pessoa pode ser identificada. In verbis:
Sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se reconhece a pessoa no seio da família e da sociedade. Dois são os elementos constitutivos do nome: o prenome, próprio da pessoa, e o nome de família ou sobrenome, comum a todos os que pertencem a uma certa família (...).
O direito ao próprio nome se caracteriza como um direito da personalidade, irrenunciável, imprescritível, inalienável e intransmissível.
Como aduz Sílvio de Salvo Venosa (2001, p. 141), constitui-se no “mínimo necessário do conteúdo da própria personalidade”.
Ademais, como bem pondera Patrícia da Cunha Gurgel (2006), todos os seres humanos têm o direito ao nome com o intuito de identificação de também de construção da autonomia da pessoa humana.
De acordo com o Código Civil e a Lei dos Registros Públicos (6.015/73), em regra, o prenome (o primeiro nome da pessoa, pelo qual ela é chamada) é imutável. Apenas se admite a sua alteração na hipótese de erro gráfico, de exposição ao ridículo, de adoção ou pela substituição por apelido público notório (alguns doutrinadores afirmam vigorar a regra da “mutabilidade relativa”).
Em nenhum momento se menciona a possibilidade de alteração do nome em caso de indivíduo transexual.
Do indivíduo transexual
Transexual é o indivíduo que possui uma identidade de gênero psicológica diferente da designada em seu nascimento.
Na maioria das vezes, no senso comum, o transexual é definido como a pessoa que realizou ou planeja se submeter a uma cirurgia de “mudança de sexo”.
Flávio Tartucce (2005), citando Maria Helena Diniz, afirma ser a transexualidade “a condição sexual da pessoa que rejeita a sua identidade genética e a sua própria anatomia, identificando-se psicologicamente com o gênero oposto”.
Não obstante alguns juristas se fundamentem no artigo 13 do diploma substancial civil para obstaculizar a realização da cirurgia de “mudança de sexo”, em nosso país, tal procedimento é autorizado (e disciplinado) pelas Resoluções nº 1482/97 e 1652/02, do Conselho Federal de Medicina. Além disso, esta intervenção já foi até mesmo incluída na lista de procedimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A seleção de pacientes a serem submetidos à cirurgia é longa e rígida, sujeitando-se estes à avaliação por equipe multidisciplinar (médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social).
Da possibilidade de alteração do nome do transexual
Segundo os médicos e psicólogos, a pessoa transexual já sofre com choques psicológicos graves, sendo a intervenção cirúrgica quase imprescindível.
Aclara Renata Pinto Cardoso (2005):
O transexualismo é considerado, pela medicina, uma “síndrome de disforia de gênero”. Essa síndrome engloba e determina um estado emocional de constante ansiedade e depressão do indivíduo.
A medicina, nos últimos tempos, já evoluiu ao ponto de facultar a cirurgia de “mudança de sexo” e adaptar/harmonizar a realidade do indivíduo transexual.
Ocorre que a legislação não acompanhou esta evolução.
Após a superação no campo médico, o indivíduo não possui lei que lhe assegure a retificação de seu registro civil e precisa, invariavelmente, socorrer-se do Poder Judiciário.
Tal qual já disposto no presente artigo, a legislação brasileira não disciplina a hipótese ventilada e, ademais, a Lei dos Registros Públicos estabelece, como regra, a imutabilidade do prenome, apenas a admitindo em circunstâncias enumeradas.
A doutrina e a jurisprudência mais tradicionais asseveram ser naturalmente impossível transformar um homem em uma mulher e vice-versa e, portanto, consideram improsperável e impossível a alteração do nome. Vejamos:
Retificação de registro de nascimento. Mudança de sexo. A mudança aparente, ou seja, exteriormente, de órgãos genitais, em virtude de operação cirúrgica, vedada pelo ordenamento jurídico brasileiro, não implica em transformar um homem numa mulher, metamorfose que a natureza não admite e a engenharia genética ainda não logrou atingir. Por conseguinte, enquanto não editadas leis especificas sobre o assunto, improsperável se mostra o pedido de retificação de registro. (1992.001.06087 - APELACAO CIVEL- TJ/RJ - QUARTA CAMARA CIVEL - DES. MARDEN GOMES - Julgamento: 04/03/1993)
Entretanto, recentemente, tem ganhado força a corrente doutrinária e jurisprudencial que admite a possibilidade de alteração do prenome do indivíduo transexual. As argumentações e fundamentações são diversas.
Para Daniel Costa (2006), o direito à retificação do registro civil decorre não do princípio constitucional da igualdade, mas sim da dignidade da pessoa humana, que tutela a honra e a integridade de tal indivíduo. Em suas palavras:
O direito do transexual de retificar o seu prenome encontra-se absolutamente alambrado pelos princípios que emanam do direito fundamental da dignidade da pessoa humana. Isso porque, privar o transexual desse ato é fechar os olhos para a honra e a integridade desse sujeito, ou seja, é não atentar para um dos mais basilares princípios fundamentais. De tal modo que, analisando o Código Civil e a Lei de Registros Públicos à luz da Constituição Federal (arts. 1º, III; 5º, X), não há como emprestar entendimento diverso a essas leis, senão o de que é permitido aos transexuais a alteração do seu prenome. A propósito, conforme leciona o professor Renan Lotufo citado pelo Des. Carreira Machado (...), a excepcional imutabilidade do nome deriva do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana e se, por acaso, a atribuição do nome enseja afetação na honra e na integridade do indivíduo, prepondera o valor mais alto. Dessa forma, se comprovada a alteração do sexo, impor a manutenção do nome do outro sexo à pessoa é cruel, sujeitando-a a uma degradação que não é consentânea com os princípios constitucionais.
E complementa Joildo Souza dos Humildes (2008), segundo o qual o Estado Democrático de Direito deve respeitar e fazer cumprir todos os direitos dos seus cidadão, inclusive o direito a uma nova identidade sexual:
São imensuráveis as humilhações que um transexual, mesmo se identificando e sendo identificado como mulher, passa ao ter que apresentar seu nome de batismo nas mais diversas relações sociais do cotidiano, inclusive, obrigando-o a abandonar os estudos e a exclusão do mercado de trabalho formal. Analisando-se a Constituição pátria, identifica-se uma violação ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, obrigar um individuo a carregar um nome que não condiz com seu estado físico-psíquico. Vale ressaltar, que um autêntico Estado Democrático de Direito reconhece, respeita e faz cumprir todos os direitos dos seus cidadãos, inclusive, o direito a uma nova identidade sexual.
Neste contexto, a jurisprudência:
REGISTRO CIVIL - Retificação - Assento de nascimento - Transexual - Alteração na indicação do sexo - Deferimento - Necessidade da cirurgia para a mudança de sexo reconhecida por acompanhamento médico multidisciplinar - Concordância do Estado com a cirurgia que não se compatibiliza com a manutenção do estado sexual originalmente inserto na certidão de nascimento - Negativa ao portador de disforia do gênero do direito à adequação do sexo morfológico e psicológico e a conseqüente redesignação do estado sexual e do prenome no assento de nascimento que acaba por afrontar a lei fundamental - Inexistência de interesse genérico de uma sociedade democrática em impedir a integração do transexual - Alteração que busca obter efetividade aos comandos previstos nos artigos 1º, III, e 3º, IV, da Constituição Federal - Recurso do Ministério Público negado, provido o do autor para o fim de acolher integralmente o pedido inicial, determinando a retificação de seu assento de nascimento não só no que diz respeito ao nome, mas também no que concerne ao sexo. (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível n. 209.101-4 - Espírito Santo do Pinhal - 1ª Câmara de Direito privado - Relator: Elliot Akel - 09.04.02 - V. U.)
A seu turno, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2007, p. 180), apregoam que a imutabilidade do prenome deve ser relativizada e o nome, em casos justificáveis, deve ser alterado, consoante o prudente arbítrio do magistrado:
(...) O princípio da inalterabilidade relativa do nome implica a possibilidade de o juiz modificar o nome (seja o prenome, seja o sobrenome) em casos justificáveis, na defesa da proteção integral da personalidade humana, independentemente de previsão legal.
Renata Pinto Cardoso (2005) também ampara a possibilidade de retificação do registro civil no princípio da cidadania e no direito à saúde. Argumenta que, ao mesmo tempo em que a inadmissibilidade da alteração significa impedir ou dificultar o exercício da cidadania, a saúde implica o completo bem estar físico, psíquico e social (e que para os indivíduos transexuais o bem estar psíquico só pode ser alcançado pela redesignação de seu estado sexual).
Por fim, Joildo Souza dos Humildes (2008), reza que a falta de previsão legal de alteração do nome não pode gerar preconceitos e desconsiderar direitos personalíssimos:
A falta de previsão legal que discipline a matéria, serve de pretexto para o exercício de posturas, por vezes, conservadoras e preconceituosas. É evidente que o legislador não pode prevê e disciplinar todos os aspectos da vida social. Por mais que tente adequar leis para suprir as exigências de uma sociedade globalizada que se transforma rapidamente, muitas leis entram em vigor já anacrônicas. Associado a isso nos deparamos com preconceitos arraigados nos nossos tribunais, assim como na sociedade. (...)O transexual deseja ver seu direito à saúde, à cidadania, à igualdade, à dignidade, à opção sexual respeitados. Ignorar esses direitos é considerá-lo um cidadão incompleto, negando-lhe o direito a ser integrado na sociedade; é desconsiderar direitos personalíssimos, essenciais e inerentes à natureza humana.
A alteração do nome sem ressalvas
Outra questão que merece ser debatida se assenta na existência da ressalva ou observação na retificação do registro do transexual.
O Superior Tribunal de Justiça, em alguns casos, determinara a alteração do prenome de indivíduos que realizaram a cirurgia de “mudança de sexo”, todavia, determinara que nos registros civis seria incluída uma ressalva – anotava-se que a alteração do prenome decorria da transgenitalização. Ou seja, o registro de alteração de sexo constava expressamente na certidão civil.
Em face de tais decisões judiciais, a doutrina começou a asseverar que a existência de uma ressalva nos documentos pessoais também feriria o princípio da dignidade da pessoa humana e, ademais, constituir-se-ia numa situação preconceituosa e desigual.
Recentemente, como aduz Antônio Carlos da Rosa Júnior (2010), a ministra do tribunal guardião da lei federal, Sra. Nancy Andrighi adotara a corrente doutrinária da alteração do prenome sem ressalvas, uma vez que a observação na alteração implicaria na continuidade de exposição do indivíduo transexual a circunstâncias vexatórias:
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a alteração do pré-nome e da designação de sexo de um transexual de São Paulo que realizou cirurgia de mudança de sexo. Ele não havia conseguido a mudança no registro junto à Justiça paulista e recorreu ao Tribunal Superior. A decisão da Terceira Turma do STJ é inédita porque garante que nova certidão civil seja feita sem que nela conste anotação sobre a decisão judicial. O registro de que a designação do sexo foi alterada judicialmente poderá figurar apenas nos livros cartorários.A relatora do recurso, ministra Nancy Andrighi, afirmou que a observação sobre alteração na certidão significaria a continuidade da exposição da pessoa a situações constrangedoras e discriminatórias. Anteriormente, em 2007, a Terceira Turma analisou caso semelhante e concordou com a mudança desde que o registro de alteração de sexo constasse da certidão civil.
Conclusões
O direito não pode ignorar o fato da existência dos transexuais. São indivíduos que tão somente visam a adequação de seu nome à sua nova identidade, como forma de garantir a sua própria cidadania (evitar a ocorrência de situações humilhantes).
Visões preconceituosas não podem obstaculizar o exercício do direito à saúde, cidadania, dignidade e de uma nova identidade sexual por parte dessas pessoas. Sua honra deve ser respeitada.
Com toda a consideração pelas opiniões contrárias, inexiste interesse de uma sociedade livre e democrática de impedir a integração completa do transexual. E, ademais, a retificação do registro civil deve se operar sem qualquer ressalva ou observação, uma vez que tais também implicam na continuidade de exposição a situações vexatórias.
Bibliografia
CARDOSO, Renata Pinto. Transexualismo e o direito à redesignação do estado sexual. Disponível em http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2164/Transexualismo-e-o-direito-a-redesignacao-do-estado-sexual Acesso em 06.jan.2011.
COSTA, Daniel. O transexualismo e a mudança de prenome: Uma interpretação constitucional. Disponível em www.mundojuridico.adv.br/cgi-bin/upload/texto960.rtf Acesso em 06.jan.2011.
DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
GURGEL, Patrícia da Cunha. A mudança de nome e sexo do transexual e os seus reflexos na Lei de Registros Públicos (lei 6015/73). Disponível em http://jus.uol.com.br/revista/texto/12614/a-mudanca-de-nome-e-sexo-do-transexual-e-os-seus-reflexos-na-lei-de-registros-publicos-lei-no-6-015-73/2 Acesso em 06.jan.2011.
HUMILDES, Joildo Souza dos. Transexualismo e direito: Possibilidades e limites de uma nova identidade sexual. Disponível em http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=1946 Acesso em 06.jan.2011.
ROSA JÚNIOR, Antônio Carlos da. PNH-3- Alteração de nome por travestis e transexuais. Disponível em http://www.guiame.com.br/v4/37567-1769-PNDH-3-altera-o-de-nome-por-travestis-e-transexuais.html Acesso em 06.jan.2011.
ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de. Direito Civil. Teoria Geral. 6 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
TARTUCE, Flávio. Mudança de nome do transexual. Disponível em
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2001.
Advogada. Pós Graduação "Lato Sensu" em Direito Civil e Processo Civil. Bacharel em direito pela Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo. Extensão Profissional em Infância e Juventude. Autora do livro "A boa-fé objetiva e a lealdade no processo civil brasileiro" pela Editora Núria Fabris e Co-autora do livro "Dano moral - temas atuais" pela Editora Plenum. Autora de vários artigos jurídicos publicados em sites jurídicos.E-mail: [email protected], [email protected], [email protected]<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PRETEL, Mariana e. Da possibilidade de alteração do nome do transexual Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jan 2011, 10:08. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/801/da-possibilidade-de-alteracao-do-nome-do-transexual. Acesso em: 22 nov 2024.
Por: Remo Higashi Battaglia
Por: Marcos Antonio Duarte Silva
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