Resumo: Discute a legalidade de exigências que se impõem ao esporte não profissional através dos Regulamentos das Competições, em face da situação de hipossuficiência da maioria esmagadora dos clubes.
Palavras-chave: atraso – exigência – desigualdade – hipossuficiência – estado de necessidade – poder público – serviços de saúde - estatuto do torcedor – justa causa – responsabilidade objetiva – contrato de adesão – multa – suspensão – perda de pontos.
O atraso ou retardamento do início da partida é um fato desagradável e causa dano a todo o universo envolvido na prática do esporte. Provoca estresse nos atletas, com possível comprometimento de seu rendimento e prejuízo às empresas de comunicação, jornalismo, radiofonia, televisão, que reservam horários, de elevado custo, para a programação. É enfim, enorme desrespeito ao público que se dirige ao local do evento ou que esteja aguardando por ele através da tele-transmissão.
Pode acontecer por motivos de força maior ou caso fortuito, como precipitações pluviométricas torrenciais ou outros acidentes naturais, raios, trovões, que costumam provocar black out e supressão do fornecimento de energia necessária para as transmissões, comunicações locais e externas etc.
Já houve ocorrência de desabamento de arquibancada ou de outras dependências do estádio, inundação do gramado, incidentes graves entre torcidas ou entre estas e o policiamento, além de outras.
Os casos que se vão enfocar, entretanto, são de natureza diferente, advindas de causas diversas, levados aos Tribunais Esportivos para eventual responsabilização.
Especificamente em Minas Gerais, tem ocorrido, com enorme incidência nos jogos não profissionais de futebol, que a equipe de arbitragem e representantes da Federação se recusem a dar início à partida, apesar da presença integral de ambas equipes, por ausência de equipamentos para atender às possíveis demandas médicas, conforme dispõe o Estatuto do Torcedor[1]:
“Art. 16. É dever da entidade responsável pela organização da competição:
III - Disponibilizar um médico e dois enfermeiros-padrão para cada dez mil torcedores presentes à partida;
IV -Disponibilizar uma ambulância para cada dez mil torcedores presentes à partida;
A despeito da restrição do próprio Estatuto, em suas disposições finais, de que essas regras não se aplicam ao desporto não profissional (artigo 43), geralmente são colocadas no Regulamento do Torneio, estipulando-se que a obrigação recaia sobre o time que detenha mando de campo. Nesses casos, os profissionais de saúde, veículos e equipamentos costumam ser fornecidos pela Administração Pública Municipal ou Estadual, já que raros clubes os possuem, para atendimento a esse comando.
Se esse aparato constituído de médicos, ambulâncias e técnicos de enfermagem não se apresenta até o horário marcado para início do jogo, ele não começa e o atraso passa a ser computado até o máximo de vinte minutos.
Iniciada a partida retardamento inferior aos vinte minutos referidos, já enseja aplicação de penalidade administrativa ao time local, por infringência ao artigo 206 do Código Brasileiro de Justiça Desportiva[2], que prescreve: “Dar causa ao atraso do início da realização de partida, prova ou equivalente, ou deixar de apresentar a sua equipe em campo até a hora marcada para o início ou reinício da partida ou prova equivalente”.
Depois dos vinte minutos, o time adversário abandona a arena e se dirige ao TJD na busca do ganho dos pontos correspondentes à disputa que não aconteceu e, também, punição para o oponente, em decorrência do dispositivo do mesmo CBJD que proíbe, no seu artigo 203: “deixar de disputar, sem justa causa, partida, prova ou equivalente, na respectiva modalidade, ou dar causa à sua não realização ou à sua suspensão.” (realce nosso).
Não se pesquisa, in casu, nos tribunais, a ocorrência de dolo ou culpa por parte do imputado, vez que, com certeza, a não realização do jogo vai contra o interesse de todos, mídia, público, entidades esportivas, do próprio responsável pela “équipage” não apresentada a tempo.
Seria necessário que se levasse em conta, inicialmente, se o clube faltoso teria, de fato, mediante comprovação, requisitado a equipe médica à Prefeitura ou outra Agência Estatal, posto que o primeiro não tem poder de hierarquia, ascendência ou comando sobre qualquer organismo público, inviabilizando completamente a sua capacidade de obediência integral à exigência que lhe é imposta pelo regulamento da competição.
Há que se entender, em tais situações, que o clube fez o que lhe foi possível, que é o mero ato de requisitar, solicitar médicos e ambulâncias, mas que, se seu pedido não foi atendido, não detém ele qualquer poder de coação ou de pressão sobre o omitente, caracterizando, sem a menor dúvida, excludente supralegal de ilicitude por “inexigibilidade de conduta diversa”, conforme disposto no artigo 161 do mesmo Diploma, razão pela qual não deveria, de forma alguma, ser objeto de qualquer espécie de sanção. Muito menos, o clube não deu motivo “sem justa causa” para o retardamento do evento, faltando elemento constitutivo do tipo descrito no artigo 203.
Punir o clube não profissional é admitir a abominável responsabilidade objetiva, como já execrada em outras oportunidades, pelos motivos apontados por PEREIRA[3], quando insiste que “Filosoficamente, a abolição total do conceito de culpa vai dar num resultado antissocial e amoral, dispensando a distinção entre lícito e ilícito, ou desatendendo à qualificação boa ou má da conduta..”
Aliás, se o Estatuto do Torcedor, que é constituído por legislação federal, não exige essas providências do esporte não profissional, por que razão um mero regulamento da competição, em nível estadual, há de exigi-las, apesar das notórias condições de precariedade e hipossuficiência econômico-financeira de tais entidades?
Não é o próprio CBJD, que também tem força de lei federal, que recomenda exatamente no seu artigo primeiro, parágrafo segundo, que “Na aplicação do presente Código será considerado o tratamento diferenciado ao desporto de prática profissional e ao de prática não profissional...”?
As Federações, respaldadas por seus Tribunais Desportivos, estariam aplicando aos clubes não profissionais a igualdade formal que a Constituição Federal e o CBJD não recomendam?
A esse propósito convém citar excerto de doutrina que trata do assunto, de autoria de Clemerson Merlin Cleve e Melina Breckenfeld Reck[4]:
“Gradativamente percebeu-se que a igualdade jurídica formal – mera igualdade perante a lei – poderia pouco significar, pois não implicava e não conferia efetividade ao princípio, de modo, inclusive, a gerar suspeita de que seria uma abstração que servia para encobrir as terríveis desigualdades de fortuna e de condição material... ...só se tornou imprescindível adotar uma concepção material, substancial do princípio da igualdade, na qual seriam equilibradas as desigualdades concretas da sociedade, fazendo com que as situações desiguais fossem tratadas de forma diferenciada, impedindo, assim, a perpetuação das diferenças existentes..” .(realce nosso).
Algumas Comissões Disciplinares têm sustentado entendimento de que a assinatura do Regulamento da Competição pela entidade desportiva implica, obrigatória e automaticamente, na concordância com todos os seus termos, esquecendo-se de que se trata, na realidade prática, de um “Contrato de Adesão”, não permitindo aos aderentes a mínima possibilidade de discussão de seu conteúdo, cláusulas e condições, por mais iníquas, leoninas ou draconianas que sejam, limitando-se o seu ato de vontade à simples opção de aderir, ou não, a ele.
Concluindo, impende-se afirmar que a exigência posta aos clubes não profissionais é ilegal, porque se o Estatuto do Torcedor, lei federal, não os obriga, isso não pode decorrer por força de simples regulamento, à guisa de obrigação contratual, sob pena de afrontar a hierarquia das normas jurídicas.
Além disso, quando as entidades desportivas não conseguem o aparato de saúde que lhes é exigido, não o fazem “sem justa causa”, mas por absoluta inexigibilidade de conduta diversa faltando, assim, elemento constitutivo do tipo legal de que se utiliza para embasar a punição, não se caracterizando, logicamente, em infração administrativa, pela atipicidade ou pela existência de causa supralegal excludente de ilicitude.
É meridiana, como respaldo, a quebra do princípio constitucional da igualdade material, quando se age desprezando as gritantes diferenças, de toda ordem, que existem entre os clubes profissionais e os outros que sobrevivem em ambiente de penúria e escassez, movimentados exclusivamente à custa da boa vontade e idealismo que sustentam os sonhos de milhões de brasileiros.
Isso não pode continuar!
* LOPES, João. Delegado de Polícia (apos)- Mestre em Administração Pública – Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal – Prof. Do Centro Universitário Metodista de Minas – Defensor Dativo/TJD.
[1] BRASIL, Lei nº 10.671, de 15 de maio de 2003
[2] BRASIL, Código Brasileiro de Justiça Desportiva – Resolução nº 29/CNE, de 31 de dezembro de 2009
[3] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – vol II p 562 – Ed. Forense - 2006
[4] CLEVE, Clemerson Merlin. RECK, Melina Breckenfeld. Princípio Constitucional da Igualdade e Ações Afirmativas – in www.unibrasil.com.br/revistaonline/artigo2011 - acesso em 31 Mai 2011.
Delegado de Polícia (apos). Mestre em Administração Pública/FJP - Especialista em Criminologia, Direito Penal e Processual Penal - Professor do Centro Universitário Metodista de Minas - Assessor Jurídico da Polícia Civil. Auditor do TJD/MG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LOPES, João. Justiça Desportiva: atraso no início da partida Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2011, 04:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/coluna/931/justica-desportiva-atraso-no-inicio-da-partida. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: RICARDO NOGUEIRA VIANA
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