Apenas recentemente tivemos conhecimento acerca do artigo de Paul Medeiros Krause, publicado no Jus Navigandi em dezembro/06 (http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9306) e (http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.21151 ) no qual se defende equivocadamente a inconstitucionalidade do Projeto de Lei 5003/2001, que inclui o preconceito por orientação sexual e identidade de gênero no tipo penal de racismo. O presente artigo visa, ao contrário, demonstrar os flagrantes equívocos daquele jurista e comprovar, conseqüentemente, a constitucionalidade do referido projeto de lei. Não se trata de uma questão pessoal contra aquele autor, deixe-se bem claro (mesmo porque sequer o conhecíamos antes de ler o seu artigo), apenas consideramos importantes estas colocações em virtude de, lamentavelmente, não ser incomum ouvir-se opiniões similares à dele. É de se destacar que todas as premissas das quais partiu o citado jurista encontram-se equivocadas. Refutaremos trechos específicos de sua argumentação como linha de princípio para a demonstração da constitucionalidade da criminalização do preconceito por orientação sexual e por identidade de gênero.
Este artigo foi treplicado por Paul Medeiros Krause com o seguinte título:A inconstitucionalidade do projeto de lei da homofobia (PLC nº 122/2006) e o estado totalitário marxista: tréplica a Paulo Roberto Iotti Vecchiatti
1. Considerações Iniciais – da discriminação juridicamente válida e da normalidade social da homossexualidade (assim como da bissexualidade)
Em síntese, alegou aquele jurista ser o referido projeto de lei inconstitucional por desnecessário, supostamente visando "a implantação do totalitarismo e do terrorismo ideológico de Estado, com manifesta violação dos direitos à igualdade, à livre manifestação do pensamento, à inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença, à não-discriminação por motivos de crença religiosa, convicção filosófica e política, e ao devido processo legal material ou substantivo" (sic). Contudo, seu equívoco nesse sentido é gritante, demonstrando inclusive desconhecimento acerca do conteúdo jurídico do princípio da igualdade.
Como é notório, a isonomia não proíbe discriminações jurídicas, pois toda lei é discriminatória ao conceder direitos a determinados grupos quando não os concede a outros (o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso são provas disso: concedem regimes jurídicos benéficos a menores e idosos, ficando os adultos com a legislação ordinária). Por outro lado, a isonomia exige uma fundamentação lógico-racional que justifique a discriminação pretendida com base no critério diferenciador erigido para a validade da discriminação legalmente perpetrada.
Nesse sentido, é fato notório que a homofobia no Brasil ainda é um grave problema social. Homossexuais (assim como bissexuais, travestis e transexuais) são cotidianamente agredidos física e psicologicamente nas ruas e inclusive mortos por pessoas homofóbicas. O assassinato de Edson Néris em 2000 em São Paulo, na Praça da República (fato que ensejou a aprovação da Lei Estadual Antidiscriminatória 10.948/01), assim como as recentes agressões divulgadas na mídia contra homossexuais (como as que ensejaram recente protesto na Praça da República – http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u132203.shtml), servem como prova incontestável de tal indagação. Tanto isso é verdade que Luiz Mott, líder do conhecido GGB (Grupo Gay da Bahia), publicou estudo demonstrando ser o Brasil campeão mundial de homofobia, com o maior número de assassinatos de homossexuais em virtude da homofobia dos agressores (ou seja, crimes de ódio). Negar tais verdades é o mesmo que negar que a Terra é redonda ou que ela gira em torno do Sol.
Dessa forma, fica evidente que a população GLBTT (Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Travestis) precisa de proteção do Estado, tendo em vista o preconceito social contra ela existente. O aspecto material do princípio da igualdade, que determina a necessidade de se tratar desigualmente os desiguais, é o fundamento jurídico legitimador de leis que visem a proteção da população GLBTT, tendo em vista que ela se configura como grupo estigmatizado alvo de inúmeros preconceitos sociais (gays sofrem preconceito por orientação sexual; héteros não o sofrem – assim, são desiguais nesse ponto específico, sendo portanto válido tratamento diferenciado, protegendo aqueles).
Por outro lado, é de se notar que não é nem essa propriamente a hipótese: o PL 5003/2001 não visa criar uma legislação protetiva apenas de não-heterossexuais: uma leitura atenta do mesmo demonstra que ele visa punir o preconceito por orientação sexual genericamente considerada, donde se um heterossexual vier a sofrer preconceito em virtude de sua orientação sexual restará configurado o crime, embora obviamente o PL em questão vise reprimir o preconceito homofóbico e por identidade de gênero, que é o fato que ensejou sua propositura (é o mesmo, aliás, que ocorre com o preconceito por cor de pele: não é o preconceito contra negros exclusivamente que é punido, é o preconceito por cor de pele, seja ela qual for, que constitui crime de racismo nesta modalidade).
Com essas premissas em mente, fica evidente que Paul Medeiros Krause chega a desafiar o bom senso ao afirmar que "a verdadeira minoria no Brasil é composta de homens, brancos, católicos, heterossexuais e de classe média. Essa minoria, sim, apanha de todos os lados" (sic); que os militantes homossexuais seriam "hábeis na arte da hiperdramatização (chamam de homofobia o que não é)" (sic); e que o PL 5003/2001 visaria a "cortar a garganta de quem quer que ouse apontar para a imoralidade, a inaturalidade, a antijuridicidade, a danosidade social da prática da homossexualidade, impondo aos seus opositores os rigores da lei: a cadeia" (sic). Esses trechos são suficientes para se verificar a opinião aqui contestada. Refutemos tais argumentos inegavelmente equivocados.
Embora considerássemos absolutamente desnecessária essa colocação, aponte-se o óbvio: o homem branco, católico, heterossexual e de classe média não é discriminado em nenhum momento pela realidade social em geral. Ora, este é o indivíduo que nunca sofre preconceito na sociedade por essas suas características! Por um acaso já se teve notícia de um homem receber um salário inferior ao de uma mulher pelo fato de ser do sexo masculino? Já se ouviu dizer de um heterossexual que fosse expulso de um estabelecimento comercial pelo simples fato de ficar abraçado com sua namorada? A resposta é negativa em ambas as hipóteses. Por outro lado, lamentavelmente é comum a mulher receber um salário inferior ao de um homem pelo simples fato de ser do sexo feminino e um casal homoafetivo ser expulso de um estabelecimento comercial por se portar exatamente da mesma forma que os casais heteroafetivos do local. Tais fatos justificam, per si, a proteção legislativa a esses grupos.
O autor também se equivoca gravemente ao dizer que haveria "hiperdramatização" (sic) dos militantes homossexuais. Ora, alguém pleitear por proteção do Estado quando é cotidianamente alvo de preconceitos sociais significaria "hiperdramatização"? Não configura preconceito alguém ser agredido pelo simples fato de ser como é (GLBTT)? Não-heterossexuais têm o direito de serem respeitados assim como heterossexuais o são: se a sociedade trata-os com preconceito, então o Estado deve elaborar normas jurídicas que imponham o respeito àqueles cidadãos, da mesma forma que fez quando criminalizou o preconceito por cor de pele e por sexo.
A terceira frase supratranscrita é completamente equivocada, senão vejamos: a homossexualidade não constitui doença, desvio psicológico, perversão nem nada do gênero, sendo uma das livres manifestações da sexualidade humana, ao lado da heterossexualidade. Quem diz isso não é uma pessoa isolada, mas a Organização Mundial de Saúde que, desde 1993, excluiu de sua Classificação Internacional de Doenças o diagnóstico de "homossexualismo", afirmando peremptoriamente que "a orientação sexual por si não deve ser vista como um distúrbio" (sic – CID 10/1993 – sendo o termo "homossexualismo" incorreto, pois o sufixo "ismo" significa "doença", sendo o correto "homossexualidade", pois o sufixo "dade" significa "modo de ser"). O nosso Conselho Federal de Psicologia, em sua Resolução nº. 01/99, afirmou peremptoriamente não ser a homossexualidade doença, desvio ou perversão, proibindo psicólogos de patologizarem a homossexualidade; a Associação Americana de Psiquiatria tem tal posicionamento desde a década de 1970. Não há, portanto, "inaturalidade" da homossexualidade.
Assim, equivoca-se o autor ao afirmar que "não se diga que a discriminação baseia-se no princípio da dignidade humana porque não há argumento lógico ou científico que demonstre ser o homossexualismo digno do homem. Ademais, os outros seres humanos também são dignos" (sic). O homossexual é tão digno quanto o heterossexual. É uma pessoa tão normal, tão capaz, enfim, com tantas potencialidades quanto o heterossexual – não há nem nunca houve prova científica em sentido contrário, apenas dogmas religiosos arbitrários que são inadmissíveis em Direito ante o princípio do Estado laico (se o Estado não pode manter relações de dependência/aliança com instituições religiosas – art. 19, inc. I da CF/88, não pode se deixar influenciar por seus dogmas, pois isto implicaria em dependência/aliança. Quem assim estatuiu foi o Constituinte Originário, democraticamente eleito para tal fim, restando portanto respeitada a vontade majoritária que elaborou a Constituição na proibição de se usarem fundamentações religiosas para se justificarem discriminações jurídicas).
Espera-se que as pessoas em geral não tenham a falta de bom senso de alguns que falam que a OMS, o CFP e a AAP teriam tais posicionamentos por "influências políticas" de militantes homossexuais... Aqueles que fazem esta descabida ponderação (que não são poucos...) têm uma noção absolutamente equivocada da questão, pois devem imaginar que a comunidade homossexual seria de força política ímpar, o que lamentavelmente não ocorre e é fácil de ser demonstrado: é só ver a enorme quantidade de países que ainda criminalizam (inclusive com a morte) a mera homossexualidade da pessoa (recentemente o Irã assassinou dois jovens, um deles adolescente, pelo simples fato de serem homossexuais...) e inclusive a enormidade de países que não garantem expressamente sequer uma "união civil" para pessoas do mesmo sexo... No Brasil, é só verificar a ausência de leis protetivas dos cidadãos homossexuais (sequer uma "união civil" lhes é garantida). Tivesse a comunidade homossexual a força que aquelas pessoas aparentam presumir, tal situação seria inegavelmente diversa.
Ademais, a homossexualidade não tem como ser tida como "imoralidade", pois ela não é uma "opção" do indivíduo. Ninguém "escolhe" tornar-se homo, hétero ou bissexual, as pessoas simplesmente se descobrem de uma forma ou de outra (a terminologia correta é "orientação sexual", pois não há "escolha" de sexualidade, como é óbvio e notório). Sendo uma característica que independe da vontade, não pode ser tida como "imoral" – "imoral" é o preconceito, é o menosprezo arbitrário a determinada pessoa pelo simples fato de ser como é.
Ou seja, deve-se ter em mente que há pessoas que simplesmente são homossexuais, sem terem escolhido tal característica, merecendo respeito por serem como são, mesmo porque não prejudicam ninguém por serem homossexuais.
Outrossim, não há "danosidade social" (sic) na homossexualidade. A uma, porque o autor sequer menciona qual seria tal "danosidade" – e, como diz o célebre adágio processual, alegar sem provar é o mesmo que não alegar. A outra, porque a regulamentação dos direitos dos casais homoafetivos não obrigará ninguém a se tornar homossexual – não haverá diminuição do número de heterossexuais por esse fato, como deveria ser óbvio. Tal colocação fez-se necessária porque muitos opositores do casamento civil homoafetivo dizem que o casamento civil jamais poderia perder de vista a idéia da procriação porque, do contrário, a raça humana se extinguiria... Ora, será que essas pessoas sinceramente pensam que o reconhecimento da possibilidade jurídica do casamento civil homoafetivo faria com que as pessoas heterossexuais simplesmente se "transformariam" (?!) em homossexuais?! É completamente irracional tal posicionamento, sendo que ainda por cima tem uma descabida desconfiança da heterossexualidade ao presumir que os heterossexuais deixariam de sê-lo pela mera regulamentação do casamento civil homoafetivo... Esse é outro ponto que deveria ser de menção absolutamente desnecessária, mas a inacreditável recorrência de argumentos tais nos força a fazer tais ponderações...
2. Conceituação de "gênero", "identidade de gênero" e "orientação sexual". Elementos normativos do PL 5003/2001.
Após transcrever o artigo 1o da nova redação pretendida pelo PL 5003/2001 à Lei 7716/89, indaga e afirma Paul Medeiros Krause: "que é ‘gênero’ e ‘identidade de gênero’? Em que se distinguem de ‘orientação sexual’? Aqui a ideologia homossexual, sem lastro em fundamentos lógicos robustos, insere a sua terminologia própria, com total desconhecimento do que é o ser humano. Qual é o bem jurídico protegido? A religião estatal, o dogma da naturalidade e moralidade do homossexualismo? O homossexualismo por acaso é raça, para ser tratado na Lei anti-racismo, a Lei 7.716, de 5 de janeiro de 1989? É razoável que a suposta ‘homofobia’ seja equiparada ao racismo, crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos do art. 5.º, XLII, da Constituição?" (sic).
Como se percebe, o autor demonstra seu total desconhecimento acerca de conceitos básicos a qualquer pessoa que estude minimamente a questão. Em primeiro lugar, "gênero" é um termo de longuíssima história, muito usado pelas militantes feministas do século XX. "Gênero" identifica o sexo biológico da pessoa. Preconceito por gênero, portanto, é o desmerecimento arbitrário de alguém por seu sexo biológico.
"Identidade de gênero" refere-se à convicção que a pessoa tem de si sobre ser masculina ou feminina [01]. O transexual é uma pessoa que possui uma dissociação entre o seu sexo biológico e o seu sexo psíquico, o que é resolvido através da cirurgia de adequação (popularmente conhecida como "cirurgia de mudança de sexo"). Preconceito por identidade de gênero, portanto, é o desmerecimento arbitrário de alguém que tem a convicção de ser masculino quando seu sexo biológico é feminino e vice-versa. É o caso de preconceito contra transexuais.
"Orientação sexual" é o direcionamento do sentimento amoroso-sexual a pessoa de determinado gênero – tal direcionamento pode ser a pessoas do mesmo sexo (homossexuais), de sexo diverso (heterossexuais) ou de ambos os sexos (bissexuais). Preconceito por orientação sexual, portanto, é o desmerecimento arbitrário de alguém pelo simples fato de ter a orientação sexual "x" ao invés da orientação sexual "y".
Ou seja, equivoca-se o autor ao afirmar que não haveria fundamentos robustos para a inserção de tais conceitos na lei – ditos conceitos são assim definidos pela ciência médica mundial, pelo atual nível do conhecimento humano, sendo que leis proibitivas do preconceito por gênero, identidade de gênero e orientação sexual decorrem do aspecto material da isonomia, supra explicitado.
Em outras palavras, o bem jurídico (elemento normativo) protegido pelo PL 5003/2001 são os conceitos de identidade de gênero e orientação sexual (o gênero já consta da Lei 7716/89) – pode-se dizer, ainda, que o bem jurídico protegido é o direito a ser respeitado por suas características pessoais.
Ademais, ao questionar se a homossexualidade seria raça, como forma de tentar excluí-la do tipo penal de "racismo", olvida-se o autor de que "religião" também não é raça, assim como "gênero" e "procedência nacional". Contudo, todos estes constam do atual tipo penal de "racismo". Por mais que o conceito científico de "raça" não se aplique a nenhuma hipótese (pois, em verdade, a raça humana é única), o conceito legal de racismo inclui todas essas hipóteses, não havendo nenhum óbice para que se incluam neste tipo penal o preconceito por orientação sexual e por identidade de gênero. Trata-se de política legislativa.
3. Preconceito no ambiente de trabalho – art. 4o do PL 5003/2001
Afirmou Paul Medeiros Krause: "Será que o homossexual não pode ser demitido, ainda que a razão da dispensa não seja o fato da sua homossexualidade? Observe-se a falta de elementos normativos do tipo, como ‘injustamente’, ‘sem justo motivo’ etc. De tal mácula já padece a Lei 7.716, de 1989. A homossexualidade é causa de estabilidade vitalícia no emprego?" (sic).
Esse trecho demonstra novamente a ignorância do autor sobre o tema que escreve (sempre presumindo sua boa-fé). Primeiramente, reitere-se que a lei não pune exclusivamente o preconceito contra homossexuais: a lei pune o preconceito por orientação sexual, donde se um heterossexual for demitido unicamente em virtude de sua sexualidade também incidirá o crime de racismo pretendido pelo PL 5003/2001.
No que tange à homo e à bissexualidade, é evidente que o PL 5003/2001 não visa a erigi-las como causas de estabilidade vitalícia, assim como não o pretende com a heterossexualidade... O que a lei visa impedir é que o empregador demita o funcionário pelo simples fato de ter a orientação sexual "x" ao invés da orientação sexual "y", seja aquela (x) qual for. Em outras palavras, não proíbe dito projeto de lei a demissão de homossexuais, proíbe apenas a demissão oriunda de preconceito por orientação sexual – ou seja, a demissão pelo simples fato de ter a orientação sexual "x" ao invés da orientação sexual "y".
4. Direito à livre expressão da afetividade
Afirmou Paul Medeiros Krause a respeito da proibição à repressão da livre expressão do afeto do cidadão homossexual, bissexual e transgênero [02]: "Descarada panfletagem e apologia ao homossexualismo; agasalhamento da ideologia gay pelo sistema jurídico, estabelecendo uma sanção absolutamente desproporcional e desarrazoada. Você terá que se resignar se o seu filho de cinco anos presenciar dois homens beijando na boca, no meio da rua, à luz do dia. Nem os heterossexuais possuem direito irrestrito de demonstrar afeto em público. Por que o beijo gay deve ser admitido, sob pena de reclusão de 2 a 5 anos, se a sociedade considera deselegante e de mau gosto o excesso de intimidades entre heterossexuais no meio do público? / Que se entende precisamente por ‘expressão e manifestação de afetividade’? Qual é o limite – caso exista – dessa manifestação?" (sic).
Demonstra claramente o autor aplicar dois pesos e duas medidas em sua valoração do amor homoafetivo em relação ao amor heteroafetivo, ao questionar a punição da repressão do "beijo gay" quando a sociedade considera de mau gosto "o excesso de intimidades entre heterossexuais em público". Ora, um beijo gay seria um "excesso de intimidade" mas um beijo hétero não seria? Claramente o autor pretende tratar desigualmente os iguais, pois em ambos os casos temos um casal que se beija em público, mas ele não considera inapropriado o beijo hétero, ao passo que considera como tal o beijo gay... Tal entendimento afronta claramente a isonomia.
Note o leitor que o tipo penal descrito pelo pretendido art. 8o-B deixa claro que a punição criminal ocorrerá apenas se a repressão ocorrer em ambiente que permita a casais heteroafetivos ("demais cidadãos ou cidadãs") manifestar seu afeto exatamente da mesma forma. Ou seja, se um restaurante permitir que casais heteroafetivos troquem beijos, incidirá o novo tipo penal se não for permitido que casais homoafetivos também troquem beijos. Em suma: se permitir que heterossexuais manifestem sua afetividade de determinada forma, incorrerá no pretendido crime de racismo se reprimir homossexuais [03] que manifestem sua afetividade daquela mesma forma que é permitida aos heterossexuais.
"Livre expressão da afetividade" entre namorados, como é intuitivo, é a exteriorização do afeto que se sente por seu(ua) companheiro(a) amoroso(a). A expressão "manifestação da afetividade" precisa ser genérica, indefinida legalmente, justamente para se permitir uma elasticidade do conceito: estabelecimentos podem proibir qualquer manifestação de afetividade, desde que o façam tanto para a heteroafetividade quanto para a homoafetividade. Da mesma forma, podem permitir apenas determinadas manifestações, proibindo outras – novamente, desde que o façam para qualquer casal, seja hétero ou homoafetivo. Portanto, não há nenhuma problemática no caráter aberto de tal conceito.
Agora, repare o leitor no seguinte trecho daquele autor: "Você terá que se resignar se o seu filho de cinco anos presenciar dois homens beijando na boca, no meio da rua, à luz do dia". Será que o autor entende que o heterossexual teria o direito de agredir, física ou psicologicamente, o casal homoafetivo pelo simples fato de trocar um beijo [04] "na rua"? Deveria ele se lembrar que cotidianamente casais homoafetivos são agredidos por homofóbicos pelo simples fato de andarem de mãos dadas na rua, trocarem "selinhos", enfim, portarem-se como namorados(as). A violência homofóbica ainda é uma lamentável realidade em nosso país. Assim, a repressão criminal ao preconceito por orientação sexual é medida absolutamente necessária.
5. Liberdades de pensamento, liberdade filosófica e liberdade religiosa.
Afirmou Paul Medeiros Krause ao comentar a proibição de ação violenta, constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica contra não-heterossexuais: "Manifesta ofensa ao princípio da liberdade de pensamento, religiosa e filosófica. O § 5.º é de inconstitucionalidade manifesta. Que se considera "ação constrangedora, intimidatória ou vexatória, de ordem moral, ética, filosófica ou psicológica"? Esse texto por exemplo? A homilia de um sacerdote? Será preciso retirar algumas páginas da Bíblia, como aquelas em que São Paulo recrimina a pederastia? O Estado totalitário, em sua ideologia oficial decreta: o homossexualismo é moral; é um supervalor. Qualquer oposição a esta verdade, ainda que de índole moral, ética, filosófica e científica (psicológica) estão proscritas. Trata-se de delito de opinião. É o Estado fascista quem diz o que se pode ou não pode pensar, crer ou descrer? Os cidadãos brasileiros estão sendo submetidos ao regime de tutela legal: são relativamente incapazes, não estão aptos a raciocinar sozinhos" (sic).
Inacreditáveis tais colocações. Primeiramente, homossexualidade não é sinônimo de pederastia ou pedofilia (relacionamento com menores), pois a pedofilia também existe entre heterossexuais, na mesma proporção que entre homossexuais. Trata-se de absurdo preconceito a confusão de tais conceitos (que, novamente, é feita sem nenhuma base científica que lhe justifique).
Ademais, o Estado não estará considerando a homossexualidade um "supervalor" com a aprovação do PL 5003/2001: estará apenas proibindo o preconceito por orientação sexual, seja ela homo, hétero ou bissexual, assim como o preconceito por identidade de gênero. É pacífico que não há nenhum direito absoluto: a liberdade de pensamento, a liberdade filosófica e a liberdade religiosa têm limites, não são absolutas. A pessoa tem total liberdade para falar o que bem entender, contudo sofrerá conseqüências se afrontar o direito alheio – como o direito ao respeito (integridade física, psíquica, proibição da ofensa moral etc).
Troque o leitor "homossexual" por "negro" ou "mulher". Ou seja, pense o leitor no seguinte exemplo: imagine que um ministro religioso ou qualquer outra pessoa pregasse que negros fossem pessoas imorais cujo "estilo de vida" deveria ser combatido/condenado pela sociedade... Lembre-se o leitor das ideologias segregacionistas que existiam até bem poucas décadas atrás (como o apartheid) que colocavam negros e brancos em castas quase completamente separadas da sociedade, com argumentos idênticos ou, no mínimo, muito similares aos hoje utilizados contra homossexuais. Será que o leitor considera como permitida essa disseminação de ódio contra negros, mesmo se baseada em dogmas religiosos?
Pois bem, é exatamente isso o que acontece com homossexuais atualmente: inúmeros ministros religiosos e inúmeras pessoas em geral pregam o ódio e a intolerância contra homossexuais, disseminando idéias de repressão contra o homossexual que "ousa" ser ele mesmo e portar-se com seu namorado [05] da mesma forma que um heterossexual o faz com sua namorada...
A liberdade de expressão (filosófica, religiosa etc) tem limites: ninguém pode validamente ofender terceiras pessoas. Se ofender, estará incorrendo em ato ilícito e deverá ser punida por isso (danos morais, injúria, difamação etc – quanto a estes tipos penais, incidirão enquanto não for aprovado o PL 5003/2001 ou outro similar).
Ora, da mesma forma que se pune o preconceito por cor de pele com prisão visa-se punir o preconceito por orientação sexual e identidade de gênero com prisão. Os fatos sociais apontam para a existência de grande quantidade de atos preconceituosos por orientação sexual e identidade de gênero, donde a aprovação do PL 5003/2001 é medida absolutamente constitucional, que visa garantir a isonomia aos cidadãos homossexuais, bissexuais e transgêneros.
Por fim, veja-se este último trecho: "Não obstante a deficiência técnica e a manifesta inconstitucionalidade do presente projeto de lei, espero que vozes de bom senso se ergam enquanto há tempo, para evitar a aprovação dessa aberração pelo Senado. Ficaria muito satisfeito se ouvisse manifestações da CNBB, das comunidades evangélicas, das comunidades judaica e islâmica, de pessoas sensatas das letras jurídicas. Estou fazendo a minha parte. Não poderei ser acusado de omissão. Todavia, quem não preza a sua liberdade, não se queixe de perdê-la" (sic).
A constitucionalidade do PL 5003/2001 foi cabalmente demonstrada (necessidade de proteção da comunidade GLBTT contra preconceito por orientação sexual e identidade de gênero, embora, como demonstrado, heterossexuais também se encontram protegidos por este projeto de lei). Contudo, o ponto a que queremos chegar com a transcrição deste trecho é o seguinte: será que aquele autor considera realmente que teria o direito de reprimir manifestações de amor homoafetivas quando ditas manifestações são permitidas/toleradas no caso de amor heteroafetivo?
É evidente que pessoas homossexuais têm o mesmo direito de serem respeitadas e de manifestarem seu afeto em público da mesma forma permitida às pessoas heterossexuais. Não há fundamento lógico-racional que justifique a discriminação de pessoas homossexuais em relação às pessoas heterossexuais pelo simples fato de terem orientação sexual diversa destas. Afronta flagrantemente a isonomia uma discriminação deste naipe, pois homossexuais (bissexuais etc) são trabalhadores e pagam seus tributos da mesma forma que heterossexuais, donde se têm as mesmas obrigações, também devem necessariamente ter os mesmos direitos.
Em suma: ninguém tem o direito de reprimir a manifestação do afeto de determinada pessoa quando tal é permitido a outra, assim como ninguém tem o direito de agredir física e psicologicamente nenhuma pessoa, em especial por uma característica sua que independe de escolha (orientação sexual não se escolhe, se descobre).
6. Conclusão
Ante o exposto, resta absolutamente demonstrada a constitucionalidade do PL 5003/2001, tendo em vista que a população GLBTT é gravemente discriminada no Brasil, sendo alvo cotidianamente de inúmeras agressões físicas e psicológicas por parte de pessoas homofóbicas, o que justifica a proteção estatal a tal parcela da população ante o aspecto material da isonomia. Por outro lado, heterossexuais também estão protegidos por este projeto de lei, visto que ele proíbe genericamente o preconceito por orientação sexual, seja ela qual for.
Bibliografia:
AZEVEDO, Antônio Junqueira. CARACTERIZAÇÃO JURÍDICA DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, in Revista dos Tribunais, 1ª Edição, ano 91, vol. 797, março de 2002.
BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. PARCERIAS HOMOSSEXUAIS: ASPECTOS JURÍDICOS. 1ª Edição, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual: O Preconceito & a Justiça. 3ª Edição Revista e Atualizada, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006.
DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade: o que diz a Justiça!, 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2003.
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre o Direito das Famílias. 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004.
DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre a Homoafetividade. 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004.
DIAS, Maria Berenice. MANUAL DE DIREIO DAS FAMÍLIAS. 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005.
FERNANDES, Taísa Ribeiro. UNIÕES HOMOSSEXUAIS – efeitos jurídicos. 1ª Edição, São Paulo: Editora Método, 2004.
GIRARDI, VIVIANE. Famílias Contemporâneas, Filiação e Afeto. A Possibilidade Jurídica da Adoção por Homossexuais, 1ª Edição, 2005, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado.
HELMINIAK, Daniel. O que a Bíblia realmente diz sobre a homossexualidade. 1ª Edição, São Paulo: GLS Edições, 1998. Tradução de Eduardo Teixeira Nunes. Título no original: What the Bible really says about homosexuality.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE. 3ª Edição, 11ª Tiragem, Maio-2003, São Paulo: Malheiros Editores, 2004.
RIOS, Roger Raupp. A HOMOSSEXUALIDADE NO DIREITO. 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2001.
RIOS, Roger Raupp. O Princípio da Igualdade e a Discriminação por Orientação Sexual: A Homossexualidade no Direito Brasileiro e Norte-Americano. 1ª Edição, Porto Alegre: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
RODRIGUES, Humberto. O AMOR ENTRE IGUAIS, 1ª Edição, São Paulo: Editora Mythos, 2004.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. 2ª Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS. 6a Edição, Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2006.
SPENCER, Colin. HOMOSSEXUALIDADE: UMA HISTÓRIA. 2ª Edição, Rio de Janeiro-São Paulo, Editora Record, 1999, Tradução de Rubem Mauro Machado. Título Original: Homossexuality: A History.
TREVISAN, JOÃO SILVÉRIO. Seis balas num buraco só: a crise do masculino, 1ª Edição, Rio de Janeiro-São Paulo: Editora Record, 1998.
VIEIRA, TEREZA RODRIGUES (coord.). BIOÉTICA E SEXUALIDADE. 1ª Edição, São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 2004.
Notas
01 Note-se: não do "sexo" masculino ou feminino, mas da compreensão cultural de masculinidade e feminilidade – conceitos estes que variam conforme cada cultura: o que é masculino para determinada cultura muitas vezes não o é para outras. Os kils escoceses (usados em determinadas ocasiões) são uma prova disso, assim como o costume dos homens franceses de se cumprimentarem com beijos no rosto: tais atitudes não são consideradas masculinas no Brasil. No Brasil, o futebol é considero "esporte de homem", masculino; nos EUA, o futebol (soccer) é um esporte praticado principalmente por mulheres (tanto que é o país com maior número de títulos mundiais nessa modalidade – futebol feminino), sendo os "esportes masculinos", por exemplo, o beisebol, o basquete e o hóquei no gelo.
02"Art. 8º-B Proibir a livre expressão e manifestação de afetividade do cidadão homossexual, bissexual ou transgênero, sendo estas expressões e manifestações permitidas aos demais cidadãos ou cidadãs: / Pena: reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.
03 Assim como bissexuais com companheiros(as) do mesmo sexo.
04 Nada excessivo – igual ao permitido/tolerado entre heterossexuais também "na rua".
05 Para usar o exemplo do homossexual masculino, ressaltando-se que o mesmo acontece com as mulheres homossexuais.
Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino/Bauru (2010); Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP (2008); Bacharel em Direito pelo Instituto Presbiteriano Mackenzie/SP (2005); Autor do Livro "Manual da Homoafetividade. Da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos"
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Constitucionalidade do Projeto de Lei nº 5.003/2001. Uma réplica a Paul Medeiros Krause Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 set 2008, 14:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/15015/constitucionalidade-do-projeto-de-lei-no-5-003-2001-uma-replica-a-paul-medeiros-krause. Acesso em: 21 nov 2024.
Por: Isnar Amaral
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: REBECCA DA SILVA PELLEGRINO PAZ
Por: Isnar Amaral
Precisa estar logado para fazer comentários.