A comemoração dos 80 anos do Código Mello Mattos oferece oportunidade para que lhe seja prestada justa homenagem, até pela recente passagem dos 17 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Entre aquele ancião e este jovem que busca afirmação, reflexões se impõem.
Se evoluímos do paternalismo filantrópico à construção democrática de comprometimentos comunitários e estatais, temos ainda, ligando os dois marcos legais, a mesma miséria da realidade social brasileira. Injusta e excludente nos anos 20 do século passado. Cruel e certamente mais complexa em pleno Século XXI. No entanto, vencer a injustiça não é obra somente de textos, mas tarefa de homens de bem. Com a ação, bons homens podem minorar imperfeições de ‘maus textos’ e podem maximizar o bem que lhes dispuserem ‘textos bons’. Mas os inertes e o omissos agravam maldades e impedem bondades, independente das letras que lhes forneçam.
Mesmo quando escritos à custa de lágrimas, pólvora ou sangue, textos não operam mágica. Precisam ser trazidos à vida, em luta miúda e cotidiana, olhando nos olhos do desespero. E essa operação exige vontade e coragem.
Não duvidamos que o ECA inicie um ‘novo mundo’ na tutela dos direitos infanto-juvenis. A mudança de paradigma é uma realidade. Mas não autoriza o desprezo para com tudo o que, de ‘mundo anterior,’ existia. Queimar caravelas na chegada ao mundo novo - sabe-se - não é atitude dos sensatos. A evolução da sociedade faz natural que o avanço de ontem, hoje, seja atraso. Mas - é certo - não houve Copérnico sem Ptolomeu.
Para o desenvolvimento da humanidade, da democracia e da ciência jurídica e para a construção de um direito infanto-juvenil qualificado e robusto, não podem ser desprezadas contribuições sem as quais os caminhos necessários ao progresso não teriam sido abertos. Nessa trilha de raciocínio, cremos ser possível conceder à obra de MELLO MATTOS - e ao trabalho dos que o sucederam - a merecida importância, tantas vezes desnecessariamente mitigada no intuito de defender-se os inegáveis avanços promovidos pela Lei 8.069/90.
O Direito – lembremos - não se constrói no vazio.
DIREITO ESCRITO – TERRITÓRIO DE LUTA
Grandes obras legislativas ecoam nos tempos dando voz à altivez de um povo na medida de grandeza do Direito que praticou. NORBERTO BOBBIO registra que o herói do mundo clássico é o grande legislador. E realça o fato na seguinte história exemplar:
"A obra de Platão começa com as seguintes palavras: ‘Quem é que vocês consideram como o autor da instituição das leis, um deus ou um homem?’, pergunta o ateniense a Clínias; e este responde:" Um deus, hóspede, um deus." [01]
Natural que o direito escrito tantas vezes se pretenda intocável, perene, remetendo o Magistrado à condição estabelecida por MONTESQUIEU de ‘mera boca que pronunciava a lei’, sem autonomia de interpretá-la ou adequá-la. Mas sabemos que a lei escrita não congela o Direito. Luta política e jurisprudência estão aí, conectando realidade social e processo legislativo.
O novo, entre conflito e perplexidade, força as paredes do arcaico. Não mais o mero registro unilateral das vontades e concessões do príncipe, o Direito, agora é socialmente contratado, conforme ROUSSEAU. Surge a compreensão do Direito como repositório de valores, mais do que carta de instruções para a pequena desavença contratual e cotidiana. Momentos assim geram atestados de maturidade, como a Magna Carta de 1215 e as declarações de direitos firmadas pela Revolução Americana, pela Revolução Francesa ou pela Assembléia Geral da ONU, documentos que inauguraram novos tempos. Assim fizeram as diversas Cartas de Direitos das Crianças.
Documentos assim têm irresistível efeito multiplicador. Seus princípios dizem quem somos ou, pelo menos, quem almejamos ser. A lei que instrumentaliza um princípio, inoculada no ordenamento, "contamina" com o bem as leis circunvizinhas. Por isso é que se estabelece, em torno de cada palavra, um verdadeiro campo de batalha, mais que técnica, ideológica, tanto no momento em que as leis são redigidas quanto no passo em que a hermenêutica as transporta à realidade concreta.
Mas a lei depende da gradual evolução, nos povos, do sedimento cultural que firmará solo para edifícios legais que expressam sua alma. Assim ensinou JEAN-JACQUES ROUSSEAU:
"Como o arquiteto que, antes de construir um edifício, sonda e examina o solo para ver se pode agüentar o peso necessário, o sábio legislador não começa redigindo leis boas por si mesmas, mas antes examina se o povo a que são destinadas está apto para suportá-las". [02].
Já FERDINAND LASSALLE, ensina que as leis não são apenas a tinta no papel, mas os "fatores reais de poder" [03]. Direito escrito nada mais é do que a resultante do atrito entre, dentre outros: governo, classes sociais e poder econômico. Se este último predomina, marxistas avisam que a legislação é sempre um instrumento de dominação, apenas viabilizando a manutenção do status quo pela classe dominante.
Por isso é que RUDOLF VON IHERING, no inspirador "A Luta pelo Direito", combatendo o espontaneísmo da Escola Histórica de SAVIGNY, ensina que "a força viva" do direito "só se afirma numa disposição ininterrupta para a luta" [04], construído em "um trabalho sem tréguas, não só do Poder Público, mas de toda a população" [05].
Se é no bom combate que se fazem leis progressistas, os que entendem de luta não desprezam o pequeno avanço, a cabeça de ponte conquistada e a ser defendida, como passo para a vitória mais ampla.
Com essa rápida digressão entendemos que, considerados os ‘fatores reais de poder’ de então, e as regras, ainda de mera e miúda cabotagem, com que se fazia a navegação política na década de 1920, MELLO MATTOS, na verdade, avançou ao Cabo da Boa Esperança.
CONTEXTUALIZANDO O CÓDIGO MELLO MATTOS
O país vivia grande efervescência quando surgiu a obra de MELLO MATTOS. De um lado, o poder das elites conservadoras e rurais buscava perpetuação através de autoritarismo e conchavos de governadores. WASHINGTON LUIZ, em meio à carestia e à recessão, apontava a polícia como solução para os problemas sociais brasileiros, num tempo de sufrágio excludente. Não mais censitário, permanecia masculino e para os poucos alfabetizados, em eleições fraudadas ‘a bico de pena’.
Ocorriam lutas por alterações desse quadro. Na Revolta da Chibata (1910), os marinheiros – inclusive grumetes menores de idade - lutavam com JOÃO CÂNDIDO por comida e contra a crueldade dos castigos físicos. Nos anos 20, os tenentes se mobilizavam como porta-vozes de segmentos médios da população. PRESTES marchava pelo Brasil com sua Coluna. Era fundado o Partido Comunista.
A população dava um salto, passando, entre o final do século XIX e início do século XX, de 10 para 30 milhões, com os menores de 19 anos representando 51% da população. [06] Sofria-se o impacto da industrialização nascente, com todas as suas conseqüências sociais. A proletarização operária gerava situações de miséria e exploração, como as descritas na ficção de CHARLES DICKENS. O inchamento das cidades provocava a vivência do abandono, como descrito em ‘Capitães de Areia’ de JORGE AMADO.
ANDRÉ RICARDO PEREIRA descreve o quadro das principais cidades brasileiras ao final do século XIX, agravada no período a que nos referimos:
"... da noite para o dia (surgia), uma perigosa malta de pessoas marginalizadas que ameaçavam a ordem vigente, seja como massa ativa nos constantes motins urbanos, seja no exemplo negativo de um extrato que não vivia do trabalho ‘honesto’. No interior dessa malta, destacava-se, pela primeira vez, o grupo de crianças e adolescentes. No período anterior, eram pouco visíveis, pois as crianças tinham como destino as Casas do Expostos e os adolescentes trabalhavam como escravos." [07] (nosso grifo)
Como tratar da questão, àquela altura do nosso desenvolvimento histórico? Que forças atuariam em tal embate? As lutas operárias apenas conheciam a incipiente mobilização dos avós anarquistas, recém chegados na imigração. O "povo brasileiro" era construção ainda dispersa, com lutas de fraca organicidade e consistência, com baixo grau de consciência, sem condições de efetiva conquista de direitos e espaços de poder. O aparato oficial se constituía de poucos, em favor de poucos.
ROBERTO DA SILVA esclarece bem o contexto:
"...as leis são formuladas, na sua origem, para assegurar os direitos de um protótipo de homem, que no caso brasileiro apresentava-se, no inicio do século, como homem branco, letrado e cristão, a mulher e a criança tornaram-se tributários destes direitos apenas a partir da relação de parentesco e de consangüinidade com o varão." [08]
O então recente Código Civil Brasileiro cuidava preferencialmente desse homem branco e proprietário, idealizado pelo Estado. Aos pobres e pretos, o Código Penal. Mas os relatos da época já registravam a perplexidade das elites para com o ‘problema do menor’. O contexto era de limpeza da paisagem para saúde do sonho dourado de nossas elites europeizadas. Era necessário eliminar os fétidos cortiços e esgotos que corriam pelas ruas. Era necessário controlar as epidemias e dar novos ares ao Rio de Janeiro com a derrubada do Morro do Castelo, reprimindo "capoeiras" e "vadios" improdutivos e limpando a paisagem da nódoa de crianças pobres, entregues à mendicância ou à delinqüência.
Há dois elementos a serem compreendidos. Primeiro, a filosofia positivista que imperava naquele quadrante histórico. Dela resultava um dirigismo das elites que, na visão da época, tornava o comando das oligarquias uma necessidade, já que, "sob o país oficial, estava o mundo informe", ou seja, o povo difuso e composto de "incapazes de seguir diretrizes próprias no jogo das instituições, que não conseguiam assimilar e que a grande maioria de seus membros não podia sequer compreender" [09].
RAIMUNDO FAORO menciona as avaliações sobre o fracasso da aventura republicana, na comparação com os modelos que se pretendeu copiar: "Falhara a entrega da nação a uma sociedade que, não livre, carecia de elementos vivos de coesão", pelo que "o governo deveria educar, cultivar e orientar o povo" [10]
Sobre este aspecto, e de particular interesse ao tema focalizado neste trabalho, é emblemático o discurso do Senador LOPES TROVÃO em 1896, quando brada:
"...Temos uma pátria a reconstruir, uma nação a firmar, um povo a fazer e para empreender essa tarefa que elemento mais útil e moldável a trabalhar do que a infância? São chegados os tempos de trabalharmos na infância a célula de uma mocidade melhor, a gênese de uma humanidade mais perfeita." [11] (nosso grifo)
A quem mais entregar missão desta grandeza? Se não havia povo, ainda também não estavam constituídas, com densidade reivindicativa, camadas médias em condições de alguma intervenção política efetiva, como detecta FAORO:
"A classe média, a camada média da sociedade, segundo denominações divergentes, não tinha condições objetivas de aspirar ao comando político do país (...) reclama não um papel próprio, mas o abandono de um Estado não intervencionista (...)" [12]
Era inevitável o dirigismo elitista em face da dispersão das forças populares e da incapacidade de ação das camadas médias que esboçavam atuação apenas no âmbito militar.
Positivismo mais dirigismo eram conservadores e, se impulsionados a alguma atitude proativa nas questões sociais, assim se fazia apenas como forma de prevenir e esterilizar os reclamos e reivindicações nascentes. Ainda de perto se contemplavam as brasas da Grande Guerra e da Revolução Soviética de 1917.
Eram passadas menos de 03 décadas da abolição da escravatura, precedida de reforços ‘pseudocientíficos’ à mitologia quanto à maldade congênita do negro. JOAQUIM MANUEL DE MACEDO chegou a escrever, numa espécie de ‘contra-ficção’, os três contos antiescravistas de "As vítimas algozes", em resposta à publicação, no Brasil, de "A Cabana do Pai Tomás", de Harriet Beecher-Stowe [13]. Defendia que a escravidão precisava terminar, não porque os negros eram ‘bonzinhos’ e dignos de pena, mas, sim, porque o sistema os transformava em criminosos cruéis. Sua tese era reforçada pelo noticiário que registrava crimes de escravos contra senhores, reação desesperada à ausência de horizontes. Não bastasse serem tidos por inferiores, sem alma e sem direitos, veio a disseminação do conceito do negro ‘ladino’ e aterrorizante, visão que provavelmente se agravou quando o início da República recebeu a ilusão cientificista e o positivismo que permitiram à criminologia preconceituosas teorias de maldade congênita.
Neste contexto estabelece-se a preocupação com a criminalidade juvenil. Por detrás do pequeno delito se ocultaria a monstruosidade. Havia uma perspectiva higienista, com o viés da eugenia. Unem-se a pedagogia, a puericultura e a ciência jurídica para atacar o problema, tido como ameaçador aos destinos da nação: ‘o problema do menor’.
Ocorre a conscientização quanto à gravidade das precárias condições de sobrevivência das crianças pobres. Havia epidemias, superstição materna e pátrio poder impermeável às orientações quanto às providências básicas de saúde e higiene. Era elevada a taxa de mortalidade infantil. No caso dos "expostos", entregues às Santas Casas de Misericórdia, o índice chegava a 70%.
Marcos dessa reflexão foram o Centenário da Independência e a Exposição Mundial de 1922, no Rio de Janeiro. O clima era de ufanismo, esperança e crédito na capacidade humana de transformação da realidade. A questão da criança é realçada, destacando-se nessa reflexão médicos, políticos e advogados. O futuro do Brasil – descobre-se - dependia de atenção especial para com a infância.
Efeméride importante ocorreu, também em 1922: o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, realizado na Capital da República, em conjunto com o Terceiro Congresso Pan-Americano da Criança, sob inspiração de conferências internacionais. Criou-se uma agenda mais sistemática para a proteção social, influindo em questões de higiene, medicina, pedagogia, assistência social e legislação. Surgem recomendações para criação de leis de proteção à infância.Diversas tentativas, capitaneadas por grandes idealistas como Tobias Barreto, passando por Evaristo de Moraes, Lopes Trovão, Alcindo Guanabara, dentre outros, foram empreendidas, mas sem que o Congresso as aprovasse ou simplesmente, as discutisse. Até que vem o Projeto de Mello Mattos.
É NESSE QUADRO QUE SURGE, COM TODAS AS HONRAS, UMA OBRA DA IMPORTÂNCIA DO CÓDIGO DE MENORES INSTITUÍDO EM 1927. Muitos criticam a não adoção das recomendações da Declaração de Genebra sobre os Direitos da Criança, que a Liga das Nações, com o voto brasileiro, aprovou em 1924. Esquecem-se os críticos das características muito particulares do Brasil em relação ao pensamento internacional. O mundo de então vivia o tempestuoso entre-guerras da ascensão nazi-fascista e a débil Liga das Nações, já em passo de derrocada, pouca condição tinha – como ocorre com a ONU hoje – de impor normatividade às declarações de princípios.
Não se pode apreciar o Código Mello Mattos com juízos fora desse contexto. Ninguém despreza o pioneirismo operado, com as limitações de seu tempo, por Fra Angélico, porque a técnica de Da Vinci ou a inventiva de Picasso seriam superiores! A cada um a sua circunstância. Lembremos do ensino de MARX que, embora referido em outro contexto, não atende só aos marxistas:
"Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado". [14]
UM HOMEM DE LUTA, NO LUGAR CERTO E NA HORA CERTA
JOSÉ CÂNDIDO DE ALBUQUERQUE MELLO MATTOS foi um pioneiro. Foi um homem de grandeza moral que, com os mecanismos legados pelo passado brasileiro, obscuro e complexo, acendeu uma lanterna em direção ao futuro, em auxílio à infância desvalida. Engajou-se com o que de progressista então havia. Foi jurista e escritor respeitado, advogado militante, com atuação destacada, referido por Evaristo de Moraes, luminar do nosso direito, como "advogado de incontestável talento". [15]
Como parlamentar, em 1904, esteve na linha de frente da campanha pela vacinação obrigatória, apoiando Oswaldo Cruz e atuando com firmeza nas duras refregas em torno do tema na Câmara dos Deputados, onde ajudou a aprovar a autorização legislativa. [16] Ainda no Congresso, apresentou em 1906, o projeto que resultou na criação do Instituto que hoje leva o nome do grande sanitarista brasileiro. Foi também, entre 1920-1924, diretor do Instituto Benjamin Constant, de educação para cegos. Em 06 de março de 1924, [17] profere o primeiro despacho como Juiz de menores, função em que teve, ainda, notável atuação extrajudicial e humanista. Permaneceu à frente do Juizado até seu falecimento, em 1934.
Como descreve GUARACI VIANNA, "cuidava de forma paternal dos pequenos filhos de famílias pobres do Rio de Janeiro, ora entregando-os aos cuidados de seus amigos e conhecidos bem de vida, ora internando-os em patronatos ou instituições filantrópicas da época". [18]
Alguém poderá atribuir ingenuidades ao notável Magistrado, esquecendo-se de que, contra carências assassinas, filantropia é muitas vezes a Cruz Vermelha que salva vidas. Talvez a infância de esforços, como os do socialismo utópico, cujo desdobramento desembocam em revoluções. MELLO MATTOS não era um ingênuo, como não o eram os utópicos ROBERT OWEN, FOURIER OU SAINT-SIMON. Como estes, o grande magistrado era um homem de sonhos, mas também de compromisso e de ação. ALYRIO CAVALLIERI relata:
"Seu espírito humanístico levou-o a tentar preencher as lacunas existentes nos anos vinte, na área do amparo às crianças. Criou estabelecimentos para menores e sua esposa, Dona Chiquinha, foi diretora de asilo. O primeiro juiz menorista, de tal modo se dedicou ao amparo direto que ganhou o apodo carinhoso de ‘Mellinho das crianças’". [19]
Mereceu seu grande título: foi o primeiro Juiz de Menores da América Latina! Estava à frente de seu tempo, como em tão boas letras diz GUARACY VIANNA, referindo-se à apresentação do projeto de lei de sua autoria, que deu início ao processo legiferante que resultaria no consagrado Código:
"1925 – um jurista maior avança no tempo" [20]. (nosso grifo)
Referenciado pelas discussões internacionais em torno do tema, com a autorização legislativa fornecida em 1926 (Lei 4.242/21) a partir de seu projeto de 1925, promoveu a consolidação e sistematização de uma legislação de assistência e proteção aos menores. Na edição do Decreto nº 17943-A, de 12 de outubro de 1927, surgiu o Código de Menores. Pela primeira vez tinha-se direito escrito especializado, codificado, em torno de tema tão relevante.
O CÓDIGO MELLO MATTOS E SEUS VALORES
Cuidou-se, naquele quadrante histórico, da infância "exposta", "abandonada" e "delinqüente". Era uma legislação direcionada, sim, ao pobre e, àquela altura, era natural que o fosse. Afinal, vivíamos numa sociedade patriarcal, onde pontificava o poder quase absoluto do pai de família sobre sua prole, praticamente sem ingerência estatal. Na concepção da época, os que tinham pai estavam protegidos. Mas, e os que não tinham família? SE podemos surpreender-nos com métodos e motivações, não podemos desrespeitar nossa própria história. Frente ao grito das ruas, ainda sem efetividade, a lei – como dissemos - era uma concessão estatal mobilizada pelas lutas, apenas, dos integrantes mais conscientes e progressistas da elite.
Num país com mentalidade tão retrógrada, sem dúvida, o Código Mello Mattos era uma notável lei. Embora usando terminologias que hoje nos soam estranhas (como "expostos", "vadios", "transviados", "libertinos"), ou adotando institutos que hoje repudiamos (guarda "mediante soldada"), efetivamente avançava. Exemplos: permitia-se a intervenção do Estado no pátrio poder de quem submetesse os filhos a abusos, negligência e crueldades (art. 31); garantia-se que o ‘menor delinqüente’ de até quatorze anos não fosse "submetido a processo penal de espécie alguma" (art. 68), devendo aquele, entre quatorze e dezoito anos merecer "processo especial" (art. 69); proibia-se o recolhimento do menor à prisão comum (art. 86); vedava-se o trabalho aos menores de doze anos (art. 101) e, aos que tinham menos de quatorze anos, sem que tivessem instrução primária, assim, impulsionando sua escolarização.
Instituía a grande legislação, assim, a primeira estrutura de proteção aos menores, com a definição ideal para os Juizados e Conselhos de Assistência, trazendo clara a primeira orientação para que a questão fosse tratada sob enfoque multidisciplinar.
Frente à novidade, houve resistências, como relata TAMY VALÉRIA DE MORAES FURLOT:
"O Código de Menores de 1927, que causou tanto protesto dos industriais por suas medidas de regulamentação do trabalho infantil, procurava estabelecer medidas para garantir o bem-estar físico e moral das crianças. Crueldade, negligência, abuso de poder, exploração pela primeira vez constavam como motivos plenamente justificáveis para o Estado destituir alguém do pátrio poder." [21]
Os industriais de tecelagem tentaram obter prorrogação do prazo para a execução do Código, "especialmente sobre o artigo relativo à duração do trabalho dos menores". Mello Mattos indeferiu a petição, considerando-a "ilegal, injurídica, desumana e impatriótica". Julgou que aceitar a alegação da indústria, segundo a qual substituir o operário menor de 18 anos pelo adulto encareceria a produção e diminuiria o orçamento doméstico, levaria a "conclusões que atingem as raias do absurdo": "sacrificar a saúde e o direito dos operários menores para proporcionar maiores lucros pecuniários aos seus patrões, e permitir aos pais tirarem dos filhos rendimentos, como se estes fossem propriedade sui generis, que aqueles tivessem o direito de explorar até a custa dos seus perecimentos". [22] No Rio de Janeiro, em junho de 1929, foi negado o agravo interposto contra 500 multas aplicadas por Mello Mattos a empresas que descumpriam o Código. Também em São Paulo, tendo o Conde Matarazzo à frente, os industriais se mobilizaram contra o Código, alegando inclusive motivos humanitários, para seguirem na exploração do trabalho infantil. [23]
LIBORNI SIQUEIRA, esclarecendo que, pela primeira vez, trazia-se a "noção de pátrio dever, ao invés de pátrio poder", [24] menciona inclusive o questionamento que se deu, nas instâncias jurídicas, à constitucionalidade do novo diploma, tido pelos pais como invasivo do poder familiar:
"Os reflexos no contexto sócio-familiar foram grandes, eis que os pais consideravam uma intromissão exagerada ao exercício do pátrio poder, pois era uma verdadeira revolução no disciplinamento do assunto. Provocado, o Colendo Superior Tribunal Federal manifestou-se favoravelmente à validade do decreto que foi implantado e executado." [25]
O caso dizia respeito à intervenção precursora de Mello Mattos, em Portaria baixada com base no art. 131 do Código, vedando o ingresso indiscriminado de menores de dezoito anos a apresentações de teatro de revista. Ridicularizado na imprensa e combatido pela classe artística, o grande Juiz foi à luta, aceitou o debate e, ao final, vencedor, consolidou o indispensável "princípio da precaução".
Sua obra tornou-se um marco referencial, cumprindo papel histórico. Ousaríamos dizer, mesmo, que não se teria o Estatuto da Criança e do Adolescente sem Mello Mattos. A idéia de uma legislação especial, com a característica de sistema, proporcionada por um Código, atribuindo deveres paternos, impondo obrigações estatais e criando estruturas, foi essencial – parece-nos - para que, hoje, encontrasse o ECA amparo mais firme para tornar-se instrumento de construção de cidadania. Ambos os diplomas – o primeiro em 1927 e o último em 1990 – estão absolutamente antenados com o avanço possível em seus períodos históricos. Não seria possível crianças e adolescentes sujeitos de direito, aptos à reivindicação e garantia, sem a anterior definição das obrigações sócio-estatais em favor do menor.
Natural que a realidade tenha defasado aquela obra legislativa, destino inexorável do qual não escapam nem mesmo construções insignes como as de Nelson Hungria e Clóvis Bevilácqua, e de que, certamente, não escapará o nosso ECA.
ENTRE O CÓDIGO MELLO MATTOS E O ECA
Vencido o esquema da República Velha, o Brasil se moderniza sob impulso governamental, vincado na forte tradição autoritária de uma nação de burguesia atípica que, por sua origem patrimonialista, preza favores governamentais. A industrialização gera uma classe operária de relevo, o governo central manipula concessões. Vem o sufrágio feminino, surgem as leis trabalhistas e os partidos ligados às classes populares. Campanhas mobilizam multidões.
Entretanto, as forças militares se consolidam como sombra do populismo, por vezes indo à boca de cena assumir o papel principal quando alguém ousava o improviso, à margem do enredo programado. É assim que, nos anos 60, o regime se fecha. Na resistência, o novo movimento operário serve de base à emergência de organizações e reivindicações que vocalizam os anseios de um povo que agora quer protagonismo. Os progressos internacionais na luta por direitos se transmitem às lutas nacionais.
Memoráveis campanhas levaram à Constituição Cidadã de 1988, com significativos avanços. A correlação de forças se altera até ao ponto da quase vitória do candidato das esquerdas nas eleições presidenciais de 1989. Não estávamos mais na elitista belle époque !
Nesse contexto privilegiado surge o ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Os "fatores reais de poder", modificados, alteravam o direito escrito. Por isso, torna-se impossível a comparação, fora de contexto, entre dois diplomas que refletem suas épocas. Os méritos do ECA não ofuscam o brilho da obra de MELLO MATTOS. Repetimos: um preparou o caminho para o outro.
Entretanto, antes do surgimento do ECA, o Código Mello Mattos, em dada altura, tornara-se insuficiente, frente à realidade modificada. Como verificou ALYRIO CAVALIERI, empoeirava-se na estante. [26] Na transição entre uma e outra realidade, sob novos mecanismos de atenção ao problema da criança, destaca-se a atuação dos Juízes de Menores, tema que merece algumas considerações.
O PAPEL DOS JUÍZES
É comum, hoje, depreciar-se o papel exercido pelos Magistrados menoristas, cabendo, também aqui, a observação de que a crítica não pode ser descontextualizada. Cabe ao Magistrado promover as adequações que a realidade pede, priorizando a visão que melhor faça avançar o Direito e melhor produza Justiça. Entretanto, Juízes trabalham com as leis que lhes são dadas, sendo obrigados, ainda, a atentar para o grau médio de consciência dos seus jurisdicionados. Também neste campo verifica-se a ação dos "fatores reais de poder".
Os juízes que atuaram entre o Código Mello Mattos e o ECA, inclusive sob a égide do Código de Menores de 1979, merecem, no entanto, o reconhecimento, obviamente contextualizado, da sua contribuição. Assim se deve olhar a crítica à "doutrina da situação irregular". Ainda que os novos tempos a tenham tornado obsoleta e a realidade tenha demonstrado a má prática que inspirou em alguns, é de justiça reconhecer a sua bem intencionada base teórica. Adolescentes em "risco moral e social", a rigor, estão em "situação irregular" em relação ao que lhes seria ideal.
Os trabalhos que tratam do tema [27] deixam claro que pretendeu-se impedir o estigma que acompanhava o adolescente que recebia a pecha de "infrator" ou "delinqüente". A idéia era a de que aquele necessitava de família, escola, saúde e formação profissional para que saísse da criminalidade e que o miserável (‘carente’) precisaria de família, escola, saúde e formação profissional, para que na criminalidade não ingressasse.
Em visão isenta não se pode deixar de perceber que CAVALLIERI, como principal formulador, preocupava-se com a demarcação do território da atuação jurisdicional. Operador consciente e angustiado não vislumbrava, na realidade brasileira, em tempos de ditadura militar, possibilidade de aplicação da "doutrina da proteção integral". Daquele ponto de vista, seu discurso guarda irretocável coerência, até porque pugnava por restringir a atuação extrajurisdicional dos Juizados de Menores, no intuito de impelir os agentes estatais pertinentes ao cumprimento das suas obrigações. [28]
Também naquela época – seu livro "Direito do Menor" é de 1976 - já defendia a tese de que toda a perspectiva do ‘menorismo’ era no sentido de tratar a criança como sujeito de direitos, [29] discussão, aliás, que não era nova, vindo desde os anos 40 [30].
Mais contribuições foram dadas por outros magistrados.
ALBERTO AUGUSTO CAVALCANTI DE GUSMÃO, que militava no Juizado da Capital da República nos anos 60 - "viga mestra do menorismo brasileiro", como o chamou CAVALLIERI, quando participou da Comissão Revisora do Código de Menores, ainda em 1968, tentou incluir no anteprojeto a Declaração dos Direitos da Criança, proclamada pela ONU em 1959. Acabou obstado por questões metodológicas e certamente, políticas, sem que se possa deixar de registrar seu esforço. [31]
O Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito, instalada em 1975 para investigar o "Problema da Criança e do Menor Carentes no Brasil", registra o esforço dos Magistrados em busca da atualização do Código de Menores, mencionando projeto de revisão de autoria do Senador NELSON CARNEIRO, que então tramitava:
"Nesse projeto são aproveitadas as sugestões feitas em 1957, pelos Juízes de Menores do Brasil, tendo em conta o que, à época, tramitava na Câmara dos Deputados." [32]
Na mesma CPI vários Juízes deram seu testemunho demonstrando as necessárias mudanças legislativas e organizacionais. Já se falava na necessidade de municipalização e participação comunitária. Também havia a crítica às instituições de internação, como na fala de NELSON LOPES RIBEIRO LIMA, Juiz de Menores em Recife. O Magistrado, após defender o fim das medidas coercitivas, propôs um rol de providências de proteção e prevenção nas áreas de saúde e alimentação, dentre outras, realçando a necessidade de fechar "os reformatórios para os necessitados de correção, por inadequados e prejudiciais à infância e à adolescência". [33]
A atuação dos Juízes de Menores, dentro de uma estrutura injusta e sob uma lei defasada, sob a pressão de uma realidade social dramática que os obrigava à ação, [34] merece ser mais bem analisada em estudo próprio. O certo é que não se pode, por culpa dos que eventualmente foram somente repressivos ou se fizeram meros espectadores do passo lento da história, desprezar aqueles que lutaram contra a realidade injusta, tornando-se, eles próprios, fatores de transformação.
Não se pode esquecer que um dos mais brilhantes e decisivos autores do ECA, o DESEMBARGADOR ANTONIO FERNANDO DO AMARAL E SILVA, autor da idéia dos Conselhos, foi, ele próprio, Juiz de Menores, em virtuosa luta contra a realidade que enfrentava.
Se havia ímpeto transformador, é natural que os Juízes menoristas vissem a concepção de sua atuação nos marcos em que a dispôs o francês GASTON FÉDOU, como um "direito novo, que leva os juristas clássicos a uma certa inquietação", pelo que "teria efeitos comparáveis à erupção de um vulcão ou de um estremecimento da terra". [35] Também compreende-se que os autores do ECA, com passionalidade cívica, freqüentemente usem a expressão "revolução" para referir-se ao novo diploma, embora seja lamentável que cheguem a usar adjetivação desrespeitosa quando se referem aos ‘menoristas’, sem qualquer ressalva, como representantes da barbárie. [36]
É de todo compreensível – e até certo ponto, recomendável - que assunto de tamanha relevância eleve temperaturas. Tudo o que não precisamos no trato com a questão infanto-juvenil é de mornidão. Guardamos discordâncias com os que parecem desconhecer os profundos avanços trazidos pelo ECA. Igualmente temos diferenças de método e discurso em relação a certos defensores do ECA, especialmente quando não tributam o respeito devido às contribuições do passado.
Não devemos esquecer o ensino de MAHATMA GANDHI: "Discórdia honesta é freqüentemente um bom sinal de progresso". Lembrando que um grande teatrólogo já nos alertou sobre a pouca estatura intelectual que caracteriza toda unanimidade, sejamos honestos na discórdia! O que para nós faz efetiva diferença é a postura que assume o Magistrado frente à realidade concreta, diante de problemas tantas vezes sem solução legal ou institucional. Aí, para nós, o ponto de convergência dos realmente honestos. Aí, recordamos MELLO MATTOS.
Em sua obra ‘Direito do Menor’ afirma CAVALLIERI, às fls. 16: "Os juizados de menores não devem ter funções que extrapolem os limites da prestação jurisdicional". Entretanto, o mesmo autor menciona ( às fls. 166/169) circunstância dos anos 70 em que precisou baixar Portaria criando, ainda que em aparente contragosto, o que seria função de outra esfera pública, o SLA – Serviço de Liberdade Assistida, então voltado prioritariamente para a recuperação de toxicômanos.
É de se notar que nem um dos mais importantes Juízes da atualidade, apaixonado defensor do novo paradigma oferecido pelo ECA, o Doutor JOÃO BATISTA SARAIVA, titular da Vara especializada da Comarca de Santo Ângelo (RS), escapou dos apelos das urgências cotidianas. A organização não-governamental CEDEDICA (Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente), nasce de sua iniciativa de mobilizar, no próprio Juízo, voluntários aos quais capacitou para o acompanhamento da execução das medidas de liberdade assistida. [37]
Experiências similares ocorrem em todo o Brasil. Em Recife (PE), o Juiz LUIZ CARLOS DE BARROS FIGUEIREDO, querendo minimizar os índices de internação de seus adolescentes, criou grupo de voluntários para acompanhamento das medidas em meio aberto. [38] No Distrito Federal, sob o comando do Juiz RENATO RODOVALHO SCUSSEL, a Vara da Infância e da Juventude mobiliza voluntários em programas próprios, de que é exemplo a "Rede Solidária Anjos do Amanhã". [39]
Diversos Magistrados têm sido distinguidos no prêmio "Innovare", do Ministério da Justiça, por sua ação catalisadora de apoios e compromissos de voluntários e instituições, em prol dos direitos infanto-juvenis.
Destaque-se também o hoje Desembargador SIRO DARLAN, quando, à frente da 1ª Vara da Infância e da Juventude da Comarca do Rio de Janeiro, deixou registrada sua ação proativa, nem sempre compreendida por muitos, mas sempre respeitada por quem conhece a realidade dos problemas infanto-juvenis.
Na Comarca de Teresópolis, dentro das limitações que possuímos, igualmente não ousamos descansar a consciência frente aos clamores das mazelas com as quais diariamente nos defrontamos. Por isso também ali, à sombra do Dedo de Deus, buscamos motivar e mobilizar voluntários dispostos a contribuir na recuperação de vidas e na prevenção de situações de risco. [40]
MAGISTRADO DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE É MAGISTRADO SENSÍVEL. PORTANTO, NÃO PODE DESCANSAR NOS CONFORTOS DO PRINCÍPIO DA INÉRCIA. AGE. Esta a concórdia a ser construída.
LEI E REALIDADE
O desenrolar da nossa história demonstra como é penosa a construção democrática. Não se deve descurar, inclusive, de que se tenta fazer no Brasil algo novo. Sem experiência de democracia representativa em moldes estáveis, até pelo clamor das suas deficiências, esforçamo-nos por apontar para modelos de democracia participativa. Não é uma transição fácil. Por isso, não é possível imaginar a proteção aos direitos infanto-juvenis sem uma atuação efetiva do Magistrado especializado.
É cinzento o pano de fundo dessa tentativa. O Estado de Bem-Estar, que nos chegou com tanto atraso pela Constituição de 1988, defronta-se com o retraimento do modelo econômico em que se baseava. A modernização produtiva, destruindo empregos, coloca desafios que não eram os esperados no momento constituinte.
A solidariedade possível num ambiente de pleno emprego se torna penosa num quadro de precarização, informalidade e disputa constante. As organizações sindicais se debilitam. Tendo sido elas o móvel das transformações, estas também acabam em compasso de espera. As batalhas se tornam individuais e corporativas. Os valores éticos são corroídos.
A redução do Estado neoliberal é acompanhada pela emergência do terceiro setor. As organizações não governamentais, se por um lado criam espaço de reivindicação mais ordenado e pontual, por outro são incorporadas ao modelo excludente, na medida em que se tornam válvulas de escape para as deficiências estatais, não se descurando que reforçam, de algum modo, a tradição filantrópica.
É neste quadro que a malha do sistema de garantias, previsto pelo ECA, precisa se instalar. Daí a árdua batalha para a criação dos Conselhos Tutelares e dos Conselhos de Direitos, para seu aparelhamento e para conscientização de Conselheiros e autoridades. Ocorrem tensões, cooptação e oportunismos. Candidatos a Conselheiros, em tempos de emprego precário, buscam o mandato como forma de subsistência. Outros anseiam por uma pré-vereança. Ao mesmo tempo, escasseiam militantes para a cobertura das frentes abertas à participação, sendo comum a ação múltipla de alguns heróicos abnegados em diversos Conselhos. [41]
Por outro lado, o modelo previsto pelo legislador tem se mostrado, em alguns casos, apenas uma maximização das possibilidades representativas, já que a discussão popular mais ampla e a fiscalização contínua exigida em modelos participativos continua obstada pelo individualismo dos tempos.
Esta é a realidade com que nos defrontamos. Em termos de infância e juventude os desafios são maiúsculos e não podem esperar. Criança com fome não espera. Criança abusada não espera. Criança carente do remédio salvador não espera. Família desesperada, sem saber como agir com o filho pré-adolescente que se envolve com o tráfico, não merece esperar.
Somente agora - dezessete anos depois! - alcançamos a instituição de Conselhos em 90% dos municípios brasileiros. E muitos deles existem apenas no papel ou – em alguns casos - bravos Conselheiros lutam contra adversidades quase intransponíveis. Por isso, a lenta e penosa construção do sistema de garantias preconizado pelo ECA exige leitura de compromisso teleológico da diretriz do seu art. 262: "Enquanto não instalados os Conselhos Tutelares, as atribuições a eles conferidas serão exercidas pela autoridade judiciária". Mais que transitória, a regra é de transição, impondo ao Juiz que atue. Essencial é impedir a lacuna, até a chegada dos novos tempos de plenitude participativa, dos quais deve também ser, com os demais atores, um construtor substantivo.
Como ocorreu com MELLO MATTOS, não nos é dado o conforto de descansarmos sobre o princípio da inércia!
MELLO MATTOS, UM EXEMPLO DE LEI VIVIDA
Mello Mattos foi mais que um Juiz, mais que o autor de um código. Foi o apóstolo de uma causa. Os relatos de seu empenho pessoal enobrecem a história da Magistratura brasileira. Necessário que, com a ferramenta democrática e abrangente dos tempos atuais, o ECA, exerçamos a luta pelos direitos infanto-juvenis com o mesmo ímpeto missionário daquele grande mestre, impregnando-nos com sua indissociável paixão transformadora.
Onde existirem Conselhos atuantes, Promotores de Justiça eficazes, Chefes de Executivo compromissados, entidades sérias e responsáveis, caminhem juntos os Magistrados. Onde ocorrer desleixo ou omissão para com os deveres estatutários, os Magistrados devem colocar-se como ponta de lança do avanço necessário, agindo e motivando o agir. O novo exige atitude nova. A antiga (e inevitável) onipresença solitária do Juiz agora é presença catalisadora e solidária.
É interessante notar a coincidência na adjetivação que dois importantes líderes da Magistratura especializada atribuíram à missão que exercemos. Disse CAVALLIERI, o líder que atuou em tempos tão difíceis: "Os juízes de menores são os juízes novos de um direito novo". [42] Diz JOÃO BATISTA COSTA SARAIVA, referência atual de Magistrado na dianteira do bom combate: "Há, sim, um Novo Direito, e deve existir um Novo Juiz. Aliás, se não existir um Novo Juiz, apto a operar este Novo Direito, Novo Direito não existirá, pois ao Juiz compete dar eficácia às normas". [43]
Não nos cabe aqui descermos à minúcia do debate doutrinário por detrás de tais assertivas. Não pretendemos estar à altura de tais mestres. O certo é que SARAIVA e CAVALLIERI, cada um a seu tempo, ‘novos’ e inovadores foram. Como, antes de todos, o foi o grande MELLO MATTOS. Poderão acusar-nos de simplórios, românticos ou ingênuos. O certo é que aprendemos que as letras envelhecem. A atitude transformadora, no entanto, que está acima de teses, das doutrinas e das associações, forçando os muros da realidade na busca de horizontes para as crianças brasileiras - que precisam mais de certezas do que de esperanças - esta, nunca envelhece. Guerreiros experientes são guerreiros mais sábios. É na inércia, na falta do bom combate, que mora a decrepitude. MELLO MATTOS, ainda hoje, por ser dos que deram, às narinas da Lei, os próprios pulmões, tem o frescor dos que lutam sempre. São os indispensáveis, como diria BRECHT.
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www.risolidaria.org.br/util/view_noticia.jsp?txt_id=200511240013.
www.cededica.org.br.
www.oabsp.org.br
NOTAS
01 Em "A Era dos Direitos" pp. 56.
02 O Contrato Social – Capítulo VIII - Do Povo – pp 60 – Ediouro, 19ª edição.
03 Tese defendida na célebre obra "A essência da Constituição".
04 A Luta pelo Direito, Martin Claret, 2005 - pp 27
05 pp. 27
06 Dados em "Diretrizes Nacionais para a Política de atenção integral à Infância e à Adolescência", do CONANDA, pp. 15, no sítio www.mj.gov.br/sedh/ct/conanda/diretrizes2.htm.
07 No ensaio "Criança X Menor: A origem de dois mitos da política brasileira" constante de "Que História é essa?" (Relume Dumará, 1994), conforme citados por Judite Maria Barboza Trindade em "Mulheres e abandono de menores em Curitiba: Das imagens do progresso à construção coletiva das representações", disponível em www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol04_atg3.htm.
08 Conforme consta em "Painel: pobreza e exclusão social no Brasil – 300 anos de Políticas Públicas para a criança brasileira" – Em www.facom.ufba.br/pretextos/silva1.html. - acesso em 07/07.
09 Conforme Raimundo Faoro, mencionando Oliveira Vianna. "Os Donos do Poder", pp.278.
10 Op. Citada, pp. 296/297.
11 Cfe IRENE RIZZINI, citada no trabalho do CONANDA, antes mencionado, pp 16.
12 Op. Citada, pp. 302
13 Conforme LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO, em "Vida Privada e Ordem Privada no Império", no vol. 2 de "História da Vida Privada no Brasil", pp. 90/91 (Companhia das Letras, 1998).
14 MARX, Karl – "O 18 Brumário de Luís Bonaparte", pp15. Fon Fon e Seleta. Rio,1968.
15 Consta da Biblioteca do Senado Federal estudo crítico assinado por Rui Barbosa em torno de um Habeas-Corpus impetrado no Supremo Tribunal Federal por Mello Mattos, em favor de políticos confinados pelo Executivo na Ilha de Fernando de Noronha (senador João Cordeiro, deputados Alcindo Guanabara e Alexandre José Barbosa Lima, e major Thomaz Cavalcante de Albuquerque): "A lição dos dois acórdãos: estudo crítico acerca da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria de habeas-corpus contra atos do poder executivo", na página do SICON, codificado sob nº 680.867. A referência de Evaristo de Moraes se encontra no artigo que menciona o embate entre ambos no julgamento de um crime passional envolvendo personalidades da época sob o título "Tragédia de Tijuca", no endereço http://www.oabsp.org.br/institucional/grandes-causas/a-tragedia-de-tijuca.
16 Há um discurso virulento contra sua atuação, em que o parlamentar vencido, além de chamar a medida de odiosa e violenta, acusa o "nosso amorável e cândido" Mello Mattos de ser um carrasco, que se prestou a "fazer movimentar o lúgubre aparelho da guilhotina". – Ver transcrição, do discurso proferido na sessão de 29.09.1904, em .
17 cfe. Cavallieri, op. citada.
18 Direito Infanto-Juvenil – Freitas Bastos Editora, 2004 - pp.6. Sobre este aspecto entendemos que, de certa forma, é o que fazem os Juízes da Infância e da Juventude, nos dias atuais, em seus diversos programas de apadrinhamento, amplamente divulgados em suas cartilhas de atividades, na área da prevenção.
19 Op citada, pp. 14.
20 Op. citada, pp. 39.
21 em "Segredos de Família: violência doméstica contra crianças e adolescentes na São Paulo das primeiras décadas do Século XX", disponível no sítio http://www.dhi.uem.br/publicacoesdhi/dialogos/volume01/vol04_rsm2.htm
22 LIMA, Marcos Alberto Horta. "Legislação e Trabalho em Controvérsias Historiográficas: O Projeto Político dos Industriais Brasileiros (1919-1930)". em http://libdigi.unicamp.br/document/?view=vtls000350096.
23 Idem. Insistindo na tese de que "a escola do trabalho" era a solução para a "salvação da raça", chegam a mencionar que em Taubaté teria aumentado a criminalidade e a prostituição infanto-juvenil, porque lá tecelagens cumpriam o Código,
24 em ‘Adoção no Tempo e no Espaço – Doutrina e Jurisprudência’ – Forense, 1993 – pp. 29
25 Op. citada, pp. 40, 41
26 Sobre este fato Alyrio Cavallieri relata o início de sua carreira no Juizado de Menores, quando sua "primeira providência foi desencavar na biblioteca o Código de Menores". Op. Citada, nota 34, pp. 26.
27 Além da clássica obra "Direito do Menor", de Cavalieri, há um texto publicado pelo aposentado Ministro do STF, Sálvio de Figueiredo Teixeira, quando era Desembargador, na Revista Jurídica Mineira de setembro de 1986 (disponível em www.bdjur.stj.gov.br/dspace/bitstream/2011/1875/1/o_direito_do_menor.pdf.).
28 Op citada, pp16.
29 Op. Citada, pp. 20
30 CRISTINA LAZZAROTTO FORTES, em sua dissertação "Políticas Públicas em direção à prevenção da violência contra crianças e adolescentes" relata: "Em 1940, com o novo Código Penal, falou-se em reformular o Código de Mello Mattos, tendo em vista que aquele passou a idade da imputabilidade penal para os 18 anos. Assim, em 24 de novembro de 1943 foi aprovado o Decreto-Lei nº 6.026, conhecido como"lei de emergência", que atualizou o processo destinado aos menores abandonados e delinqüentes. Projetos de lei foram apresentados para a reformulação do Código de Mello Mattos, os quais ensejaram o debate entre juristas da época. As questões eram "o menor enquanto objeto do direito penal e menor enquanto sujeito de direitos" e,ainda, a "perspectiva judiciária pura", pela qual o judiciário não deve cumprir o papel da administração, tampouco do serviço assistencial.
31 Cavalieri, op. citada, pp 12/13.
32 "A Realidade Brasileira do Menor", pp 50 (Câmara dos Deputados – Centro de Documentação e Informação, 1976).
33 Op citada, pp 51 e 228.
34 Cavallieri registra os episódios em que famílias famélicas que buscavam internar filhos, ainda que não delinquëntes, em reformatórios, para que ao menos tivessem cama e comida.
35 Conforme citado por Cavallieri – OP citada, PPs 06 e 27.
36 EDSON SEDA DE MORAES em entrevista, comparou os menoristas a bárbaros situando-os entre adversários de combates atuais como terroristas e George Bush. Na seção "Memória Vova do Estatuto" no sitio www.risolidaria.org.br/util/view_noticia.jsp?txt_id=200511240013.
37 A experiência de Santo Ângelo se encontra no link "histórico" do sítio www.cededica.org.br junto a outras experiências que dela se originaram
38 Conforme mencionada no trabalho "Análise situacional e algumas experiências inovadoras no atendimento sócio-educativos aos adolescentes autores de ato infracional no Brasil" que pode ser localizado seguindo o endereço
39 Conforme livro Comemorativo dos 40 anos da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal editado em 2007 pelo TJDFT. (Pp71).
40 Desde 1990 cerca de 300 jovens em estado de risco moral e social que receberam medidas sócio-educativas ou protetivas reunem-se no EOJ - Encontro de Orientação de Jovens, coordenado pelo Comissariado de Justiça e no qual o orientador voluntário promove atividades de aconselhamento, acompanhamento e dinâmica com grupos de cinco a dez jovens, visando à criação de valores e referências positivas. Além disso atuam voluntários em Programas de Recuperação de Alcoólatras, de Justiça Terapêutica, Orientação de Pais, Reforço Escolar, Iniciação à Informática, Teatro e Artesanato, dentre outros.
41 Sobre as dificuldades nessa área, é interessante este trecho do trabalho de RUBENS PINTO LYRA "As vicissitudes da democracia participativa no Brasil" que, embora refira informações de 1998, infelizmente não parece vencido pela realidade: "(...) Mesmo com relação aos Conselhos de Saúde, da Criança e do Adolescente e Tutelar, cujo funcionamento é, por lei, obrigatório, as atitudes de Governadores e Prefeitos são freqüentemente marcadas pela lerdeza, ou mesmo completa inação. (...) Esta predisposição negativa de prefeitos, a nível nacional, é confirmada na Paraíba pela denúncia do Procurador da República Antonio Edílio Teixeira para quem "95% dos Conselhos existentes na área de saúde, só funcionam no papel. Na prática não existem e isso é muito preocupante porque quem deve decidir sobre a saúde é o Conselho e não o prefeito, como ocorre atualmente" (Correio da Paraíba, 9-5- 1998)...". - em www.ufpb.br/ufpb/home/ouvidoria/artigos/demopartic.htm.
42 Op. citada, pp.136
43 Em "O perfil do Juiz e o Novo Direito da Infância e da Juventude" – disponível no sítio do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e na Revista AJURIS nº 85 – março/02
Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, http://denilson_araujo.blog.uol.com.br/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DENILSON CARDOSO DE ARAúJO, . 80 anos do Código de Menores. Mello Mattos: a vida que se fez lei Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2008, 12:53. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/15025/80-anos-do-codigo-de-menores-mello-mattos-a-vida-que-se-fez-lei. Acesso em: 21 nov 2024.
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