A relação entre o Direito e a Economia, atualmente melhor definida, já proporcionou o surgimento de teorias radicais, a exemplo do "materialismo histórico" de Karl Marx, onde a infra-estrutura econômica seria responsável por sustentar as demais manifestações culturais, inclusive o Direito. Miguel Reale1 prescreve que, pela teoria de Marx, "quem comanda as forças econômicas, através delas plasma o Estado e o Direito, apresentando suas volições em roupagens ideológicas destinadas a disfarçar a realidade dos fatos". Apesar da bancarrota do radicalismo, não é inegável a interação entre as ciências, pois ao Direito interessa regular o conteúdo econômico de determinado ato humano, em razão da sua própria essência. É mesmo natural a disputa por objetos com expressão econômica no mundo fenomenológico, ainda mais pela complexa sociedade pós-moderna.
Por assim dizer, o contrato veste as operações econômicas, logo, onde não há interesse econômico não há contrato. Vale frisar que, com o desenvolvimento econômico-cultural atual, qualquer indivíduo contrata, independentemente de classe social, padrão econômico, grau de instrução, etc., de forma que a abstração do fenômeno contratual certamente ocasionaria a estagnação da vida social e a regressão do homo economicus às eras primárias. Portanto, os contratos assentam-se em um "pressuposto fático de uma declaração volitiva"2, e por isso é possível afirmar que a base ética do contrato é a vontade humana. Como se diz, os contratos criam lei entre as partes, e como todo negócio jurídico, exige o consentimento na sua criação, pressupondo, em contrapartida, a conformidade com o ordenamento legal, sem o qual não teria o condão de criar direitos e obrigações entre as partes.
Na prática, o contrato surge da necessidade humana de conviver em sociedade, justamente para viabilizar e proteger as expressões econômicas intersubjetivas. O conceito clássico do contrato reside no acordo de vontades destinado à produção de efeitos jurídicos3. Porém, a simplicidade desta definição não acompanhou o refinamento atual do instituto, que vislumbra no elemento volitivo apenas uma das características da relação contratual4, e não o contrato em si, que pode ser composto de cláusulas não consensuais5, e assim, eventualmente sequer previsíveis pelos contratantes no momento da outorga da vontade. De fato, para entender a denominada relação contratual complexa é imprescindível trafegar com conforto pela teoria que estabelece que a vontade, embora necessária para a configuração do contrato, é apenas um dos seus requisitos, não se confundindo com ele.
Para melhor ilustrar, imaginemos a compra e venda de um aparelho eletrônico. Na celebração do negócio, o comprador (credor) estava realmente convencido da sua capacidade em operá-lo, e desta forma não houve preocupação em constar nas cláusulas do contrato a necessidade de casual orientação técnica para ensinar o credor a manusear o aparelho. Caso o adquirente não consiga utilizar o produto corretamente, não existe dúvida de que ao vendedor (devedor) cabe o dever de instrução, não obstante não estar previsto nos termos do pacto. Para Sousa Ribeiro6, a redução radical do contrato ao elemento declarativo "tende a descurar a dinâmica constringente e os efeitos vinculativos dos aspectos relacionais não subsumíveis às declarações de vontade dos contraentes". Assim, além da vontade, o contrato exige um plus, que deve ser preenchido pelos deveres oriundos da boa-fé.
O corolário imediato da crítica é a caracterização de uma relação contratual complexa, viva, composta de deveres primários, secundários (deveres de prestação) e acessórios (deveres de conduta). Os deveres primários traduzem um fato positivo ou negativo a ser executado pelo devedor, em benefício do credor. Conforme aduz Fernando Noronha7, "os deveres principais são a razão de ser da própria relação obrigacional, que sem eles não existiria", por assim dizer, os deveres primários ou principais definem o núcleo "duro" do contrato, e, desde que lícitos, a princípio somente encontram limitação na imaginação dos sujeitos. Este é o vetusto conceito romano de obrigação simples, onde a prestação está limitada unicamente ao que consta no instrumento do pacto, e "com o seu cumprimento, extingue-se, em regra, a relação contratual, pois o fim contratual, embora autónomo em relação ao estrito fim da prestação, é no comum dos casos, realizado com a verificação deste".8
No que tange aos deveres secundários, sua intenção é complementar os primários. Exemplo dado por Menezes Leitão9 ajuda na compreensão de tais deveres: a compra e venda de um dado automóvel (dever primário), onde o devedor pode ter assumido o compromisso de abastecê-lo ou mesmo lavá-lo (dever secundário). Os deveres "secundários de prestação, são, como os primários, dirigidos à realização de prestações determinadas, mas que agora são diversas daquelas que caracterizam a obrigação, embora estejam diretamente ligadas à realização destas"10. Logo, tais deveres não fazem sentido sem os primários, devem constar no contrato, ou mesmo emanarem de preceito legal.11
Porém, neste momento, nos compete ressaltar a importância dos deveres acessórios. Enquanto que o conjunto de deveres primários e secundários são denominados "deveres de prestação", os acessórios são chamados "deveres de conduta", tendo estes como fundamento a cláusula geral da boa-fé. Ricardo Donnini12 sustenta que, ainda que não existisse uma norma expressa consagrando no ordenamento jurídico a cláusula geral da boa-fé objetiva, o simples fato de ser princípio geral do direito serviria como fundamento para a sua aplicação pelos Tribunais. Todavia, o autor reconhece que, "embora integrando os princípios gerais de direito e norteadora de qualquer relação jurídica, por não estar expressa em nossa lei civil, possibilitou a confirmação de decisões contrárias e, ipso facto, confrontantes com o ideal de justiça". Na realidade, a maioria das legislações modernas já consagra o instituto da boa-fé objetiva, como cláusula geral expressa no ordenamento jurídico, o que certamente facilita a vida do operador do direito, que, em virtude disso, está dispensado do árduo trabalho de identificar que o sistema adotou a boa-fé, uma vez que ela está esculpida na lei.
Os deveres acessórios não objetivam propriamente a obrigação principal, mas tendem a viabilizar um ambiente juridicamente seguro e favorável para o seu cumprimento13. Antunes Varela14 destaca que as divergências marcantes que existem entre os "deveres de prestação" (principais e secundários) e os "deveres de conduta" (acessórios) residem na possibilidade de estes últimos "surgirem antes (ou independentemente) de ser ter constituído a relação obrigacional de onde decorre (ou viria a decorrer) o dever de prestação", bem como "na possibilidade de os deveres acessórios de conduta terem como titular activo pessoas estranhas à relação donde nasce o dever de prestação". Acentua ainda que os deveres acessórios incidem sobre ambos os sujeitos da relação, num dever mútuo de cooperação, para oportunizar o cumprimento adequado da prestação pelo devedor.
Josep Llobet i Aguado15 leciona que a doutrina é pacífica e unânime em admitir que a boa-fé impõe três obrigações: "de guardar el secreto y discreción debidas", "de custodia y conservación de la res ‘objeto’ del futuro y eventual contrato (por ejemplo, en el caso de mercancías enviadas para su examen)", e, principalmente, "de información". A seu turno, Mota Pinto16 aponta a existência de duas teorias: a primeira é restritiva, e somente inclui nos deveres decorrentes da boa-fé os deveres de declaração, em geral de caráter omissivo; a segunda teoria, de concepção mais ampla, "entende ser digna de proteção não só a confiança das partes na formação dum negócio mas também o patrimônio e a integridade física delas, quando, pelo facto das negociações, entram numa esfera jurídica alheia". Por conseguinte, em um primeiro momento, é possível sintetizar os deveres acessórios em deveres de proteção, colaboração e informação17; todavia, para Almeida Costa18, em suma, o que se tutela mesmo é a "confiança recíproca de cada uma das partes em que a outra conduza as negociações num plano de probidade, lealdade e seriedade de propósitos".
Desta maneira, a relação contratual é observada como um "sistema interpessoal de coordenação"19, complexo, direcionado à consecução de um fim, com deveres de prestação dos mais variados, via de regra previstos no instrumento do contrato (primários e secundários) ou decorrentes de lei (no caso dos secundários), e ainda integrada por deveres de conduta provenientes da necessária observância da cláusula geral da boa-fé, que neste caso atingem ambos os sujeitos da relação contratual. Ferreira de Almeida20 define contrato como "o acordo formado por duas ou mais declarações que produzem para as partes efeitos jurídicos conformes ao significado do acordo obtido", e critica Sousa Ribeiro quando este admite que o contrato prescinde do que denomina "modelo do consenso".
Por fim, ao lado da concepção moderna de "relação contratual complexa" há a de "relação contratual como processo". Tais conceitos comumente se confundem, e realmente, ao que tudo indica, Couto e Silva21 criou este último como sinônimo daquele, mas parece-nos que, embora se complementem, existem diferenças entre eles. Na análise da relação contratual complexa, o intérprete deve focalizar a sua preocupação com a gama de deveres assumidos e inerentes aos sujeitos da relação (primários, secundários e acessórios), enquanto que na relação contratual como processo o foco é sensivelmente outro, é a "mecânica contratual", que teve sua marcha rompida com algum ato de cunho negocial, praticado ainda que unilateralmente por alguma das partes (período pré-contratual), e que só estará terminada com a plena consecução do fim do contrato, ultrapassando, se for o caso, a própria conclusão solene do negócio (estágio pós-contratual), "de maneira que o cumprimento se faça da maneira mais satisfativa ao credor e menos onerosa ao devedor".22
Todavia, a satisfação do credor deve ser analisada sempre dentro das balizas impostas pelos deveres primários, secundários e acessórios. Por conseguinte, o contrato de antigamente não é mais o mesmo contrato do mundo pós-moderno. Para Figueiredo23, o contrato "não é mais instrumento jurídico de interesse puramente interpessoal ou de operação de proveitos. Seu conteúdo deve importar nos fins da justiça e da utilidade, em superação do egocentrismo que propicia a fragilização do débil e a dominação do mais forte".
Referências:
1 REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 21.
2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Contratos. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 11-25.
3 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Contratos I. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2005. p. 27.
4 RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 2003. p. 14-16.
5 RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 2003. p. 16-17.
6 RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 2003. p. 14.
7 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 79.
8 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Cessão da posição Contratual. Coimbra: Almedina, 2003. p. 336.
9 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2006. v. 1. p. 122.
10 NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1. p. 79.
11 LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2006. v. 1. p. 122.
12 DONNINI, Rogério Ferraz. Responsabilidade pós-contratual no novo Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 77-97.
13 PINTO, Carlos Alberto da Mota. Cessão da posição Contratual. Coimbra: Almedina, 2003. p. 342.
14 VARELA, João de Matos Antunes. Das Obrigações em geral. 10. ed. Coimbra: Almedina, 2005. v. 1. p. 126-127.
15 AGUADO, Josep Llobet i. El deber de información en la formación de los contratos. Madrid: Marcial Pons, 1996. p. 14.
16 PINTO, Carlos Alberto da Mota. A responsabilidade pré-negocial pela não conclusão dos contratos. In: Boletim da Faculdade de Direito. Suplemento XIV. Coimbra, 1966. p. 154-155.
17 MARTINS-COSTA, Judith. O direito privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais do Projeto do Código Civil brasileiro. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano 35, nº 139, jul./set. 1998. p. 15.
18 COSTA, Mario Julio de Almeida. Responsabilidade civil pela ruptura das negociações preparatórias de um contrato. Separata da Revista de Legislação e de Jurisprudência. Coimbra, 1994. p. 54.
19 RIBEIRO, Joaquim de Sousa. O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 2003. p. 19.
20 ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Contratos I. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2005. p. 37.
21 SILVA, Clóvis Veríssimo Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro: FGV, 2007. p. 20-21.
22 ROSENVALD, Nelson. Direito das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Impetus. p. 13.
23 ALVEZ, Jones Figueiredo. Novo Código Civil: uma nova teoria do direito contratual. In: Revista Jurídica Consulex. Brasília, ano VII, nº 147, 28 fev. 2003.
Advogado em Palmas (TO), mestrando em Direito Patrimonial pela Universidade de Coimbra, professor de Direito Civil e Processo Civil, coordenador do curso de Direito da Universidade Federal do Tocantins. Blog: http://www.eueodireito.blogspot.com/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HENNEMANN, Alex. O contrato na pós-modernidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 set 2008, 22:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/15029/o-contrato-na-pos-modernidade. Acesso em: 26 dez 2024.
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