Muitos operadores do Direito creditam ao Prof. Miguel Reale a criação da Teoria Tridimensional do Direito. Enganam-se todos. O próprio mestre em questão, na sua primorosa obra referente à esta expressão jus-filosófica, faz questão de salientar que não trata-se de construção originária sua mas, sim, de uma grande contribuição que chegou-lhe mesmo a lhe trazer novos alicerces.
Em verdade, já se vai quase um século desde que Emil Lask e Gustav Radbruch a intuíram para a concepção românica de direito e Roscoe Pound o fez no âmbito da Common Law. Assim, veremos, agora, neste capítulo, a evolução da Teoria Tridimensional ao longo do tempo, que é visivelmente marcada pelo próprio desenrolar em termos de sofisticação da própria Filosofia do Direito.
Tanto Lask quanto Radbruch são representantes da chamada Escola Sud-Ocidental Alemã, fato que, por si só, já os posiciona entre o choque filosófico dos jusnaturalistas e dos positivistas, sendo os primeiros empenhados em demonstrar a transcendência dos valores jurídicos enquanto estes, pregavam sua presença na experiência histórica. Nessa posição, surge a idéia de ambos, trazendo um elemento de ligação, ou seja, uma liga, um concreto, a ligar dois elementos latentes, os valores ideais e os dados da experiência jurídica, que é a cultura ou a história (um complexo de bens espirituais e materiais constituído pelo ser humano através dos tempos).
Assim, na tridimensionalidade do Direito temos, segundo eles, três planos fundamentais: o primeiro se refere ao valor (dever ser), o segundo à realidade causalmente determinado (ser), e o terceiro à cultura (ser referido ao dever ser); o que nos traz três ordens lógicas distintas que fundam as três dimensões jurídicas: os juízos de valor, os juízos de realidade e os juízos referidos a valores.
Com isso, procuravam os filósofos estudados, superar o contraste gritante entre o jusnaturalismo, que empunhava a bandeira da ausência total e estéril de historicidade do valor transcendente, e o positivismo, que trazia à luz a idéia estanque de que as relações de fato eram impassíveis de uma compreensão de validade universal.
Também permitia esta concepção tridimensional separar comodamente a atuação dos interessados aos estudos das três esferas vislumbradas. Destarte, cabia ao filósofo estudar a transcendentalidade dos valores jurídicos, ou seja, o valor enquanto ele próprio; ao sociólogo cabia indagar os elementos das leis que regem as estruturas e os processos fáticos do Direito; e ao jurista cabia observar o Direito enquanto realidade impregnada de significações normativas. Aqui tínhamos muitos dissabores e lacunas, pois como nos lembra o Prof. Reale, a Filosofia do Direito se reduzia à Axiologia Jurídica; a Sociologia Jurídica garroteava-se ao método indutivo ou experimental; e a Jurisprudência, ou Ciência do Direito, agarrava-se à especificidade do método jurídico-dogmático.
Caminhando um pouco mais, temos a contribuição dos filósofos italianos, sendo a mais importante a de Norberto Bobbio, que generalizou a tridimensionalidade, especificando as tarefas de cada compartimento de estudo: à Filosofia do Direito caberia o estudo da Metodologia Jurídica e da Teoria da Justiça, tendo por objeto, a determinação dos fins, nos quais a sociedade humana deve se inspirar; à Sociologia Jurídica caberia a perseguição dos meios a serem empregados para melhor atingir aqueles fins; e à Teoria Geral do Direito caberia estabelecer a forma dentro da qual os meios devem conter-se para alcançar os fins visados. Tem-se portanto, uma tridimensionalidade da experiência jurídica que se revela na presença de um fim, de um meio e de uma forma.
A crítica feita a esse trabalho é de que a correlação fim-meio-forma é intrínseca e inextinguível em qualquer área do pensamento humano, o que quase reduz a tridimensionalidade de Bobbio a um tripartição da experiência jurídica, ainda mais quando lançamos nela os conceitos de vigência, eficácia e fundamento, onde o próprio autor nos ensina que “de um ponto de vista abstrato e em linha de princípio, o juízo de validade é um juízo global, que versa ao mesmo tempo, sobre o valor e sobre a legalidade, bem como sobre a aceitação da norma por parte dos consociados, donde poder dizer-se que uma norma, em linha de princípio, será válida se for também justa.”[1] e rebate o Prof. Reale, dizendo que “no plano fático o equilíbrio dos três critérios é instável, e varia no âmbito do mesmo ordenamento jurídico, sendo ora considerados em conjunto, ora não, conforme o tipo de normas, as circunstâncias etc. Assim, se na lei prevalece a validade formal, já no caso de uma regra consuetudinária, o critério principal é o da eficácia ou da validade empírica, enquanto é a validade material (o fundamento axiológico) que decide da aceitação de um princípio geral do Direito”.[2]
Mas a escola italiana se sofisticou e posteriormente Giuseppe Lumia e Dino Pasini trouxeram novas contribuições à Teoria Tridimensional sendo que o primeiro prega pela obrigatoriedade do estudo integral da experiência jurídica, considerando-se todo o leque de seus aspectos, chegando a afirmar que o filósofo e o jurista, estudiosos do Direito, não estão diante de realidades diversas, casualmente designadas por uma só palavra, mas sim perante uma realidade única, concreta, e concatenada, que não se excluem reciprocamente, mas se integram e se complementam. Já o segundo, vislumbrando a realidade jurídica, estabeleceu três momentos distintos, um condicionante ou situacional, que é o fato, outro normativo ou estrutural, que é a norma, e um terceiro teleológico ou funcional, que é o valor, chamado na visão realeana de tridimensionalidade específica.
Por seu turno, Luigi Bagolini rechaça a setorização artificial da concretude do Direito e à luz da dialética de polaridade em virtude da experiência histórico-cultural, nos ensina que “o Direito não pode ser visto como puro fato, nem como pura forma, nem como norma entendida em sentido formal, nem como puro valor ideal, nem como puro conteúdo intencional, mas sim como objetivação normativa da justiça”.[3] Ainda que o citado mestre italiano não tenha se embrenhado mais detidamente no campo do tridimensionalismo jurídico, sua contribuição é de suma importância à esta teoria, pois a concretude indivisível por ele intuída e combatida está em seu cerne.
Com Paul Roubier a Teoria Tridimensional tem em território francês seu maior arauto. Segundo este pensador “a teoria tridimensional do direito, que é a doutrina mais recente sobre a matéria, focaliza o conjunto do ordenamento jurídico com inspirado por três fins principais, que são a segurança jurídica, a justiça e o progresso social.
A exigência de segurança e de certeza, ou por outras palavras, de ordem, que é a condição primeira de toda possibilidade de desenvolvimento das sociedades humanas, implica a idéia de comando e de regra de direito: quando essa tendência se isola ou se exacerba e a norma jurídica se legitima tão somente em virtude de sua forma, isto é, pelo poder que a impõe, temos o tipo das tendências formalistas, fundadas em atos de autoridade.
Se, ao contrário, o que prevalece é a aspiração moral de uma ordem justa, temos uma tendência idealista, fundada no valor superior da justiça, pondo- se o direito sob a forma de princípios gerais inferidos pela razão, a cujo ditames deve se subordinar o autor da lei.
Finalmente, se o que sobreleva é o anseio de progresso social, o reclame do bem estar social, em função do patrimônio adquirido pela civilização, temos as tendências realistas, fundadas na correspondência efetiva do direito com a experiência real, isto é, entre a rede dos usos e comportamentos sociais efetivos e a utilidade social.
Mas essa decomposição do direito é esquemática, pois a vida social jamais se inspira exclusivamente numa dessas tendências: ao contrário, elas se misturam na cena jurídica, sendo necessário determinar os seus domínios distintos de investigação, a saber, respectivamente, a Política do Direito, que indaga dos fins; a Sociologia Jurídica, que cuida dos comportamentos efetivos e sua adequação aos fins; e a Ciência do Direito, que se interessa mais pela forma da experiência jurídica.”[4]
Já Michel Virally estabelece três dimensões a experiência jurídica: a histórico-normativa, a fática e a axiológica, que ele estuda em três divisões denominadas, respectivamente, direito e ação, direito e fato e direito e valor, ensinando-nos que “essa relação nasce de uma simples situação de fato, que uma norma carrega de significação jurídica à luz dos valores que ela exprime e onde ela encontra o fundamento de sua forma específica”.[5]
Foi Roscoe Pound, ao analisar as escolas de juristas do século XIX, que estabeleceu as bases do tridimensionalismo para a Common Law, lembrando que as adeptos da corrente analítica cuidaram exclusivamente do corpo dos preceitos estabelecidos, objetivando definir um resultado legal que é intrinsecamente unido a uma situação fática apreciada; já os juristas de tendência historicista preocuparam-se mais com as idéias e as técnicas tradicionais, bem como com os elementos condicionadores das decisões legais em face das exigências da vida; e, finalmente, o jurista filósofo buscava os fins éticos, ou seja, as exigências ideais do Direito, chamadas por eles de lei natural, como forma de conceber a norma.
Partindo deste ponto, outro filósofo desta escola, Julius Stone concebe o Direito em uma concretude tricotômica, formada pelo que ele denominou de Jurisprudência Analítica, Jurisprudência Sociológica e Teoria da Justiça, sendo a primeira encarregada da análise dos termos jurídicos e da pesquisa acerca da correlação lógica existente entre as proposições legais, e tal qual a lógica do Direito estabelecer como e até onde tais proposições formam por si só um sistema ordenado e consistente. Por seu turno, à segunda caberia observar, interpretar e generalizar os efeitos do Direito sobre as atitudes e o comportamento dos homens, bem como os efeitos dessas atitudes em relação à ordem jurídica. Finalmente, a terceira faceta tem por ideal buscar o dever ser absoluto no conteúdo do Direito.
Enfim, chegamos a Kelsen, e é o próprio Stone quem nos leciona a respeito de sua obra e do legado daquele grande mestre alemão: “a divisão Teoria Pura de Direito, Sociologia Jurídica e Filosofia da Justiça já foi claramente estabelecida por Kelsen. Essa é substancialmente a divisão por mim adotada, se bem que Hans Kelsen a faça visando a excluir as duas outras do campo da jurisprudência. Nosso propósito é, ao contrário, regularizar e consolidar o lugar de todas as três. O objetivo de Kelsen, ao por aquela distinção, tem sido às vezes, desacreditar a Jurisprudência Sociológica ou a Teoria da Justiça como campos apropriados de indagação de natureza jurídica”.[6]
Assim, chegamos ao que Josef Kunz chamou de tricotomia implícita e o Prof. Reale chama de tridimensionalidade metodológico-negativa na obra de Kelsen, ou seja, em sua contribuição, este grande filósofo coloca que apenas a Ciência do Direito possui caráter puramente jurídico, enquanto à Teoria da Justiça e à Sociologia do Direito caberia a metajuridicidade.
Quanto aos filósofos jurídicos de cultura ibérica, somos obrigados a destacar de plano três nomes: Luís Recaséns Siches, Cabral de Moncada e Miguel Reale, sendo que este último terá uma análise mais detida de sua obra no capítulo vindouro.
Recaséns Siches já estabelece o chamado tridimensionalismo específico no amadurecimento de seu pensamento, ensinando-nos da seguinte forma: “essa realidade que constitui o Direito e possui a dimensão de referir-se a valores, tem forma normativa. Ou seja, o Direito é norma, com especiais característicos, elaborada pelos homens com o propósito de realizar certos valores. Nessa concepção, conservam-se as três dimensões de que tenho tratado – valor, norma e fato -, porém indissoluvelmente unidas entre si em relações de essencial implicação. O Direito não é um valor puro, nem é mera norma com certos característicos especiais, nem é um simples fato social com notas particulares. Direito é uma obra humana social (fato) de forma normativa destinada à realização de valores.”[7]
Por outro prisma, Moncada também dá uma interessante contribuição relativa à problemática das fontes do Direito na Teoria Tridimensional, correlacionando-as. Diz ele que “o costume significa o fato da conduta humana, a norma legal expressa o pensamento de certo dever ser, definido e formulado pelo legislador, e a jurisprudência corresponde à atualização dos valores, ou melhor, à aplicação prática, concreta, de numerosos critérios de valoração, extraídos da lei ou do espírito objetivo duma cultura, à própria conduta e aos costumes dos homens, para a realização entre eles de uma idéia de justiça.”[8]
Finalmente, a partir da década de 40, o tridimensionalismo jurídico estabelecido que estava, reclamava um certo vigor maior, até para conter todos os graus da experiência jurídica. Foi quando começou a ser concebida a chamada tridimensionalidade específica, com as pesquisas de Wilhelm Sauer na Alemanha e do Prof. Miguel Reale no Brasil, e mais tarde com o integrativismo jurídico de Jerome Hall, uma vez que já não se podia mais partir de um pressuposto abstrato e estanque na separação desvinculada dos três elementos da tridimensionalidade.
Então, cessou a apreciação do fato, do valor e da norma como elementos separáveis da experiência jurídica, passando a concebê-los em unitária integração absolutamente impossibilitada de divisão compartimentalizada, chamando-os agora de perspectivas, por Sauer e Hall, ou de fatores e momentos, como Reale e Recaséns.
A diferença básica entre a intuição destes grandes juristas é que Sauer apresenta sua teoria com caráter mais estático e descritivo, realçando o elemento axiológico que acaba por subordinar os demais.
Já Hall preocupa-se com o cunho sociológico, pois a sua compreensão fática, ainda que desprovida do empirismo que resvala nessa faceta, faz com que os elementos valor e norma subordinem-se àquele, uma vez que para ele, “o direito é uma coalescência específica de forma, valor e norma”.[9]
E é o próprio Prof. Miguel Reale que faz uma breve análise do pensamento destes mestres contemporâneos, situando a sua própria obra como veremos adiante.
“O problema que tanto na posição de Sauer como na de Hall fica em aberto consiste em saber como é que os três elementos se correlacionam na unidade essencial à experiência jurídica, pois sem unidade de integração não há “dimensões”, mas simples “perspectivas” ou “pontos de vista”. Penso que é só graças à compreensão dialética dos três fatores que se torna possível atingir uma compreensão concreta da estrutura tridimensional do Direito, na sua natural temporalidade.”[10]
Assim, após termos uma breve noção da linha evolutiva que percorreu a Teoria Tridimensional do Direito, desde as intuições pioneiras, e até revolucionárias, de Lask e Radbruch, até chegar à obra realeana, passaremos a estudar esta mais detidamente, pois se apresenta como escopo do presente trabalho.
Teoria Tridimensional do Direito: A Visão Realeana
A divisão da Filosofia do Direito em três frentes, uma destinada à teoria dos fenômenos jurídicos, outra cuidando dos interesses e valores que atuam na experiência jurídica e mais uma relativa à teoria da norma jurídica, como vimos, não é recente.
A fórmula realeana que nas palavras de Josef Kunz traz o Direito como uma integração normativa de fatos segundo valores, veio dar novo fôlego ao tridimensionalismo ou à tricotomia jurídica que já permeiam de longo tempo a imaginário jusfilosófico. Ela se situa em contraposição à norma pura, como queria Kelsen, ou a preponderância do elemento fático, como queriam os marxistas, ou, ainda, à pujança do valor garroteando os demais elementos como queriam os adeptos do direito natural tomista.
Assim, ensina-nos o Prof. Reale que a norma jurídica é a indicação de um caminho, porém, para percorrê-lo é necessário um início e uma direção, sendo o início o fato e o rumo, o valor. Isso traz uma verificação e uma constatação. A partir daí, verifica-se que esses três elementos não estão simplesmente ajustados e, portanto, passíveis de serem separados de maneira compartimentalizada. Eles estão correlacionados, e mais: constata-se que há uma união dinâmica entre eles, ou seja, eles se dialetizam. Ou nas palavras do próprio mestre, “há uma dinamicidade integrante e convergente entre esses três fatores. O Direito é uma realidade, digamos assim, trivalente ou, por outras palavras, tridimensional. Ele tem três sabores que não podem ser separados um dos outros. O Direito é sempre fato, valor e norma, para quem quer que o estude, havendo apenas variação no ângulo ou prisma de pesquisa. A diferença é, pois, de ordem metodológica, segundo o alvo que se tenha em vista atingir. É o que com acume Aristóteles chamava de diferença específica, de tal modo que o discurso do jurista vai do fato ao valor e culmina na norma; o discurso do sociólogo vai da norma para o valor e culmina no fato; e, finalmente, nós podemos ir do fato à norma, culminando no valor, que é sempre uma modalidade do valor do justo, objeto próprio da Filosofia do Direito.”[11]
Por outro lado, o Direito também não é um simples fato que plana na abstração, abandonado no espaço e no tempo, ao contrário, está imerso na vida humana, em um complexo de sentimentos e estimativas e, portanto, é uma dimensão da própria vida humana, formado de contínuas intenções de valor, incidentes em uma base de fato que perfaz inúmeras proposições e direções normativas que se convertem em norma jurídica a partir da interferência do poder.
Vale a pena neste ponto, um pequeno estudo acerca deste termo “poder”. Isso porque a norma jurídica não surge espontaneamente dos fatos e dos valores, pois ela não pode prescindir da apreciação da autoridade, aqui genericamente considerada, que decide de sua conveniência e oportunidade, elegendo e consagrando através da sanção, uma das vias normativas possíveis. Portanto, poder não se refere apenas e tão somente ao poder governamental, mas também a ele, como também se refere às sucessivas decisões homogêneas judiciárias, onde teremos as normas jurisprudenciais, mas também ao poder social anônimo que consagra normas costumeiras ou consuetudinárias, e, ainda, ao poder negocial que dá vida aos contratos.
Desta forma, temos que a norma é a forma que o jurista usa para expressar o que deve ou não deve ser feito para a realização de um valor ou impedir a ocorrência de um desvalor.
Acontece entretanto, que a norma jurídica resultado que é do caldo cultural humano, pode evoluir, como sói acontecer com a própria cultura, que por sua vez é resultado da vivência cotidiana, de tal sorte que, mesmo sem qualquer mudança gráfica, sem alteração alguma de uma vírgula, passa a significar outra coisa. E para conceber tal possibilidade, devemos lembrar a lição de Pontes de Miranda, para quem a norma jurídica tem certa elasticidade, limitada a um certo momento onde não resiste e rompe. Logo, as variações na interpretação da norma devem ser compatíveis com a sua elasticidade, pois quando uma norma deixa de corresponder às necessidades da vida, ela deve ser revogada, para que nova solução normativa surja a adequar-se à experiência vislumbrada.
Portanto, cabe à Teoria Tridimensional do Direito perceber, resgatar, acolher e concatenar todos esses elementos, o que só será possível com a própria união harmônica e dinâmica de seus próprios elementos, ou como adverte Recaséns Siches, “o Direito é essencialmente tridimensional, e essa qualidade não pode existir só para o jurista, no plano de sua atividade científico-positiva, mas deve constituir antes um pressuposto de validade transcendental, condicionando, por conseguinte, todas as estruturas e modelos que compõem a experiência do Direito.”[12]
Também é digno de nota que a Filosofia do Direito não pode se alienar dos problemas da Ciência do Direito, mas, ao contrário, deve achegar-se a eles, convertendo-os em seus problemas, sob outro prisma que não o da Ciência, empregada a palavra problema no seu sentido original, como algo posto como objeto de análise, implicando a possibilidade de alternativas.
Para tanto, precisamos perceber que existem duas perspectivas de valor: uma transcendental, onde o valor é o mecanismo vertical da história do Direito que possibilita a obtenção de opções e realizações no sentido do justo, e uma outra positiva ou empírica, onde o valor se atualiza como valoração efetiva, determinante de soluções pragmático-normativas, ou seja, de sistemas de modelos destinados a disciplinar classes de comportamentos futuros, segundo as diversas circunstâncias de lugar e de tempo.
Destarte, objeto de estudo do jusfilósofo é a experiência jurídica na integridade de sua estrutura fático-axiológico-normativa, enquanto geradora de modelos e de significados jurídicos.
Entretanto, como a experiência jurídica é variável em seus parâmetros, de país para país, ainda que situados na mesma área cultural, e também como as conjunturas históricas e os coeficientes pessoais e estimativa são diversos perante as mesma situações de fato, compreende-se a multiplicidade das formas de tridimensionalismo jurídico que são, em verdade, todas expressões de uma mesma análise que consiste em inserir a Jurisprudência no fluxo da história e da vida, sem perda dos valores de rigor técnico, de certeza e de segurança exigidos por uma ciência que deve ser estável mas não estática, e certa mas não cristalizada em fórmulas rígidas, ilusoriamente definitivas.
Ainda como preliminares ao estudo da contribuição realeana, cabe-nos tecer alguns comentários sobre a validade do Direito, em termos de vigência ou de obrigatoriedade formal dos preceitos jurídicos; de eficácia ou da efetiva correspondência social ou seu conteúdo; e de fundamento, ou dos valores capazes de legitimá-los em uma sociedade de homens livre, onde cabem integralmente as palavras do mestre estudado: “a meu ver, vigência, eficácia e fundamento são qualidades inerentes a todas as formas de experiência jurídica, muito embora prevaleça mais esta ou aquela, segundo as circunstâncias, sem que se possa partir o nexo que as vincula ao todo, como é próprio da estrutura do Direito.”[13]
Para o Prof. Miguel Reale, o saber jurídico não se apresenta rigidamente concretado em um modelo onde todas as investigações se justaponham, mas sim em um outro onde há um desdobramento dos planos lógicos que não podem e não devem ser confundidos, principalmente o plano transcendental e o plano empírico-positivo, atentando-se para este no qual se discriminam âmbitos ou campos distintos de pesquisa que são título de autonomia à Sociologia do Direito, à Política do Direito, à Ciência Dogmática do Direito, e à História do Direito.
Assim, quando falamos em conduta jurídica não se deve lembrar algo permeado de um substrato recebendo os timbres exteriores de um sentido axiológico ou de uma diretriz normativa. Muito pelo contrário, a conduta só é jurídica se, e somente se, a experiência social dotada do sentido axiológico ou da diretriz normativa passa automaticamente a se distinguir das demais espécies de conduta ética por ser o momento bilateral-atributivo da experiência social.
Considerando-se tudo o antes visto, podemos estabelecer os postulados básicos da Teoria Tridimensional do Direito concebida pelo Prof. Miguel Reale, que são duas primariamente, depois revestidas de outras assertivas bastante importantes.
Em princípio temos o que ele chama de “tridimensionalidade como requisito essencial ao Direito”, ou seja, o fato, o valor e a norma estão sempre presentes e correlacionados em qualquer expressão da vida jurídica, seja ela estudada pelo filósofo ou o sociólogo do Direito, ou pelo jurista como tal, ao passo que, na tridimensionalidade genérica ou abstrata, caberia ao filósofo apenas o estudo do valor, ao sociólogo do fato, e ao jurista o da norma. Mas também temos o que ele chama de concreção histórica do processo jurídico, numa dialética de complementaridade que é a correlação existente entre os três fatores lembrados de maneira funcional e dialética, onde eles se implicam e se polarizam simultaneamente, em especial quanto ao fato e ao valor, de cuja tensão resulta a norma, como solução superadora e integrante nos limites circunstanciais de lugar e de tempo.
Entretanto, com ele mesmo nos lembra, “seria falho, por conseguinte, reduzir meu pensamento sobre o Direito aos dois enunciados discriminados, com olvido de outros pontos não menos relevantes, sem os quais minha concepção do tridimensionalismo ficaria irremediavelmente mutilada.”
Então, passaremos agora ao estudo das assertivas que lembramos um pouco acima.
Primeira: as diferentes ciências, destinadas à pesquisa do Direito, não se distinguem umas das outras por se distribuírem entre si fato, valor e norma, como se fossem fatias de algo divisível, mas sim pelo sentido dialético das respectivas investigações, pois ora se pode Ter em vista prevalecentemente o momento normativo, ora o momento fático, ora o axiológico, mas sempre em função dos outros dois, formando, então, a tridimensionalidade funcional do saber jurídico.
Segunda: o normativismo jurídico concreto ou integrante nos traz a idéia de que a Jurisprudência é uma ciência normativa, mais precisamente, compreensivo-normativa, devendo-se porém, entender por norma jurídica, bem mais que uma simples proposição lógica de natureza ideal, mas toda uma realidade cultural, e não mero instrumento técnico de medida no plano ético da conduta, pois nela e através dela se compõem conflitos de interesses e se integram renovadas tensões fático-axiológicas, segundo razões de oportunidade e prudência.
Também temos a institucionalização do poder na nomogênese jurídica, ou melhor, a elaboração de uma determinada e particular norma de Direito não é mera expressão do arbítrio do poder, nem resulta objetiva e automaticamente da tensão fático-axiológica operante em dada conjuntura histórico-social. É, antes, um dos momentos culminantes da experiência jurídica, em cujo processo se insere positivamente o poder, que é o poder individualizado em um órgão do Estado, quer o poder anônimo difuso no corpo social, como ocorre na hipótese das normas consuetudinárias, mas sendo sempre o poder condicionado por um complexo de fatos e valores, em funções dos quais é feita a opção por uma das soluções regulativas possíveis, armando-se de garantia específica.
Ainda: a experiência jurídica deve ser compreendida como um processo de obtenção e disponibilização de modelos de organização e de conduta dentro de um princípio de unidade que percorre desde as representações jurídicas, ou seja, as formas espontâneas e elementares de juridicidade, até ao grau máximo de expansão e incidência normativas representado pelo direito objetivo estatal, com o qual coexistem múltiplos círculos intermediários de juridicidade, segundo formas diversificadas e autônomas de integração social, com a concomitante e complementar determinação de situações e direitos subjetivos, o que perfaz a teoria dos modelos jurídicos e da pluralidade gradativa dos ordenamentos jurídicos.
Já a elasticidade normativa e semântica jurídica nos diz que a norma jurídica, assim como todos os modelos jurídicos, não pode ser interpretada como abstração dos fatos e valores que condicionaram o seu advento, nem dos fatos e valores supervenientes, assim como da totalidade do ordenamento em que ela se insere, o que, na visão realeana, torna superados os esquemas tradicionais de compreensão do Direito. E mais: a sentença deve ser compreendida como uma experiência axiológica concreta e não apenas como um ato lógico redutível a um silogismo, verificando-se nela, no sentido da aplicação da norma, um processo análogo ao da integração normativa.
Explica-nos ainda, que há uma correlação funcional entre fundamento, eficácia e vigência, cujo significado só é possível numa teoria integral da validade do Direito, que traz uma compreensão da problemática jurídica que pressupõe o valor como objeto autônomo irredutível aos objetos ideais, cujo prisma é dado pela categoria do ser, mas, por outro lado, como são os valores o fundamento do dever ser, a sua objetividade só é possível se referida ao plano da história que traz a experiência espiritual, onde existe certos valores latentes que se expressam em sua fonte, que para o Prof. Reale é a pessoa humana, a qual condiciona todas as formas de convivência juridicamente ordenadas, ou seja, o chamado historicismo axiológico.
Em seguida, temos a consequente reformulação do conceito de experiência jurídica como modalidade de experiência histórico-cultural, na qual o valor atua como um dos fatores constitutivos desta realidade e, concomitantemente, como prisma de compreensão da realidade por ele constituída e como razão determinante da conduta. Por isso, ou seja, em virtude da natureza trivalente do valor e da tripla função por ele exercida na experiência histórica, o Direito reflete dinamicamente a historicidade do ser do homem, que é o único ente que, de maneira originária, é enquanto deve ser, sendo o valor da pessoa a condição transcendental de toda a experiência ético-jurídica.
Por fim, existem duas necessidades. A primeira é a de uma Jurisprudência que desenvolva-se como experiência cognoscitiva, na qual sujeito e objeto se co-implicam e não se percam em setorizações axiológicas, mas atendam sempre à solidariedade que une entre si todos os valores, assim como à sua condicionalidade histórica. É a chamada Jurisprudência histórico-cultural ou axiológica. E a segunda se refere a uma orientação metodológica própria caracterizada por uma reflexão transcendental de tipo crítico-histórico, baseada na correspondência entre a intencionalidade da consciência e o significado das intencionalidades objetivadas pela espécie humana no processo da experiência histórico-cultural.
Devemos ainda tecer alguns comentários específicos sobre alguns pontos do pensamento realeano. Comecemos então pela dialética de complementaridade.
Poderia parecer que os elementos da teoria aqui estudada apenas se justapõe, desprovidos de um travamento interno assegurador de sua unidade coerente. Entretanto, o próprio Prof. Reale nos ensina.
“Dessa colocação do problema resulta o caráter dialético do conhecimento, que é sempre de natureza relacional, aberto sempre a novas possibilidades de síntese, sem que esta jamais se conclua, em virtude da essencial irredutibilidade dos dois termos relacionados ou relacionáveis. É a esse tipo de dialética, que denomina dialética de complementaridade, da qual a dialética dos opostos, de tipo marxista ou hegeliano, não é senão uma expressão particular, com as modificações resultantes da análise fenomenológica de seus termos, notadamente para se desfazer a confusão entre contrários e contraditórios. No âmbito da dialética de complementaridade, dá-se a implicação dos opostos na medida em que se desoculta e se revela a aparência da contradição, sem que com este desocultamento os termos cessem de ser contrários, cada qual idêntico a si mesmo e ambos em mútua e necessária correlação.
É sobretudo no mundo dos valores e da praxis que mais se evidencia a existência de certos aspectos da realidade humana que não podem ser determinados sem serem referidos a outros aspectos distintos, funcionais, ou até mesmo opostos, mas ainda sim essencialmente complementares. Tal correlação de implicação não pode jamais se resolver mediante a redução de uns aspectos nos outros: na unidade concreta da relação instituída, tais aspectos mantém-se distintos e irredutíveis, daí resultando a sua dialeticidade, através de sínteses relacionais progressivas que traduzem a crescente e sempre renovada interdependência dos elementos que nela se integram.”[14]
[1] NORBERTO BOBBIO, Teoria della Scienza Giuridica, Turim, 1950, páginas 18 e seguintes, citado em Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, página 29.
[2] MIGUEL REALE, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, páginas 29 e 30.
[3] LUIGI BAGOLINI, “Descrittiva pura del dato giuridico – Neopositivismo e fenomenologia”, Riv. Int. Fil. Dir., 1955, página 753 e seguintes, citado em Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, página 31.
[4] PAUL ROUBIER, “La méthode sociologique et les doctrines contemporaines de la Philosophie du Droit”, na coletânea Méthode Sociologique et Droit, Paris, 1958, publicado pela Faculdade de Direito de Strasburgo e Théorie Générale du Droit, 2ª edição, Paris, 1951, páginas 318 e seguintes, ambos citados em Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, páginas 33 e 34.
[5] MICHEL VIRALLY, La Pensée Juridique, Paris, 1960, página 213, citado em Reale, op. cit.
[6] JULIUS STONE, The Province and Function of Law, 2ª edição, 1950, citado em Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, página 38.
[7] LUÍS RECASÉNS SICHES, Tratado General de Filosofía del Derecho, citado em Reale, op. cit.
[8] CABRAL DE MONCADA, Filosofia do Direito, Coimbra, 1966, volume II, página 127, citado em Miguel Reale, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, página 43.
[9] JEROME HALL, “Integrative Jurisprudence”, in Interpretations of Modern Legal Philosophies, 1947, citado em Reale, op. cit.
[10] REALE, op. cit., página 50.
[11] MIGUEL REALE, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, página 119 e seguintes.
[12] MIGUEL REALE, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, página 11.
[13] MIGUEL REALE, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, página 21.
[14] MIGUEL REALE, Teoria Tridimensional do Direito, São Paulo, 1994, página 72.
Adminstradora de empresas com habilitação em Comércio Exterior e estudante do 5º ano de Direito, ambos os cursos pela Universidade Presbiteriana Mackenzie
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PIRES, Adriana C.. Teoria Tridimensional do Direito: Uma Breve Análise Histórica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 nov 2008, 07:16. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/15378/teoria-tridimensional-do-direito-uma-breve-analise-historica. Acesso em: 23 dez 2024.
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