INTRODUÇÃO
As rápidas modificações que ocorrem na contemporaneidade, as inovações tecnológicas constantes e suas repercussões nas relações sociais exigem dos agentes do Direito reflexões e respostas para problemas que se multiplicam. O Direito encontra novas fronteiras e a normatização destas novas relações com novos campos do saber humano são desafios que se impõem às pessoas que se encontram na estrutura estatal. Como normatizar adequadamente determinada questão ambiental, biotecnólogica, informática ou qualquer nova fronteira, sem uma comunicação adequada com os outros campos do saber. Como construir políticas públicas adequadas sem um conhecimento que se exige transdisciplinar? Como solucionar conflitos sem a adequada compreensão das questões técnicas que envolvem o problema?
Obviamente não faço aqui um discurso de defesa da técnica sobre a política, ou do discurso técnico matematizado sobre o discurso político ou jurídico. Ao contrario: para afastar as falsas premissas técnicas matematizadas é necessário conhece-las, caso contrário o judiciário, o legislativo e o executivo se verão subordinados à determinados discursos técnicos hegemônicos que reivindicam a verdade para si. Para desmistificar a técnica é necessário é necessário conhece-la.
Outra questão importante é a impossibilidade do direito prever todas as situações decorrentes destas mudanças tecnológicas. Não é possível mais, o Direito prever em regras todos os problemas que irão ocorrer, o que exige um Direito de forte caráter principiológico, o que aumenta o papel do judiciário na construção da solução justa para o caso concreto.
Neste artigo vamos enfrentar a questão da interpretação da norma, as regras e os princípios e a construção da norma justa, segundo a Constituição, aplicável ao caso concreto.
Não vamos, neste estudo, repetir o que já foi escrito de forma competente por diversos juristas contemporâneos.1 Cada um, de acordo com seu marco teórico, desenvolveu reflexões importantes que devem ser conhecidas e estudadas. Vamos, aqui, desenvolver nossas reflexões sobre o tema procurando oferecer uma contribuição a esse debate. As reflexões que se seguem são construções teóricas efetuadas a partir do debate com o pensamento de diversos autores e especialmente, com relação ao conflito de normas, a partir do diálogo com as obras de Robert Alexy e Ronald Dworkin, tomando este último como referencial teórico capaz de nos oferecer maior segurança diante da incerteza, relatividade e complexidade descoberta.
2 O CONSTITUCIONALISMO INGLÊS
A Constituição inglesa (ou o constitucionalismo inglês para alguns) começa a nascer simbolicamente com a Magna Carta de 1215. Três são as instituições protagonistas da histórica constitucional inglesa: o Rei, a Câmara dos Lordes e a Câmara dos Comuns. O predomínio de cada um desses protagonistas marca períodos da história política e constitucional do Reino. No período que vai de 1215 até o século XVII, predomina a autoridade do Rei, marcando um período monárquico. Entre o século XVII e meados do século XIX, prevalece a Câmara dos Lordes, marcando o período aristocrático, e desde de final do século XIX até os dias de hoje ocorre o predomínio da Câmara dos Comuns, que seria, então, o período democrático. Alguns autores vêem no século XVIII um período misto, no qual, então, ocorreria uma união ideal das três formas clássicas de governo: a monarquia, a aristocracia e a democracia.2
Muitos equívocos foram cometidos a respeito da Constituição inglesa. Dizia-se que a Inglaterra3 (leia-se Reino Unido) não tinha Constituição ou, então, que não tinha Constituição escrita, duas incorreções. Alguns começaram a separar o inseparável, a constituição moderna de constitucionalismo, afirmando que na Inglaterra e Israel, dentre outros países, havia constitucionalismo sem Constituição (bobagem). O equivoco estava em reduzir a Constituição à sua forma, não compreendendo que Constituição pode até ser forma e pode até ser matéria específica, historicamente localizada, mas seu único elemento permanente é a sua hermenêutica, a Constituição sempre será interpretação, compreensão, leitura histórica, portanto temporal e geograficamente localizadas. Aliás constituição é vida e vida é interpretação. Tudo é interpretação, e a interpretação é história, cultura, vida, e portanto complexidade.
Para fins de referencial histórico, a maior parte dos autores menciona a Magna Carta de 1215 como o marco inicial de formação da Constituição inglesa. A Magna Carta não é a primeira Constituição, mas nela podemos encontrar os elementos essenciais do constitucionalismo moderno: limitação do poder do Estado e declaração de direitos da pessoa.
A Constituição inglesa, a partir de então, começa a se construir sobre um tripé cuja Magna Carta constitui apenas o início. Por Constituição na Inglaterra compreende-se três bases:
• As leis escritas produzidas pelo parlamento que podemos chamar de Statute Law. As leis constitucionais produzidas pelo parlamento são Constituição não porque são elaboradas por um poder constituinte originário ou derivado, ou por observarem procedimentos legislativos especiais, mas são Constituição, porque tratam de matéria constitucional, ou seja, limitação do poder do Estado com distribuição de competência e organização da sua estrutura e território e a declaração e proteção dos direitos fundamentais da pessoa;
• As decisões judiciais de dois tipos: o Common Law e os Cases Law. Por Common LawCases Law temos as decisões judiciais que se traduzem por interpretações e reinterpretações, leituras e releituras das normas produzidas pelo parlamento; compreendemos as decisões judiciais (escritas) que incorporam costumes vigentes à época. Por
• As Convenções constitucionais, que são acordos políticos efetuados no parlamento, não escritos, de conteúdo constitucional (entenda-se por conteúdo constitucional aqui as normas de organização e funcionamento do Estado, distribuição de competência e limitação do poder do Estado e as declarações e posteriormente garantias de direitos fundamentais).
Como se vê, a Constituição inglesa existe e é essencialmente escrita, pois dois dos três pilares de sua estrutura são escritos. Importante ainda ressaltar que as convenções constitucionais não escritas são obrigatórias e, por força da tradição, são de difícil alteração. Uma Convenção constitucional pode se transformar em lei do Parlamento, e nesse caso o seu cumprimento ou não pode ser objeto de decisão judicial. Entretanto, enquanto Convenção constitucional, esta é de competência do parlamento, e o fato de uma ruptura com uma Convenção não autoriza o Judiciário a decidir sobre o fato.
Em outras palavras, devemos entender o seguinte: uma Convenção constitucional é um acordo parlamentar não escrito, alguns durando séculos, que tem enorme força, sendo de difícil alteração. Entretanto, para romper com uma Convenção, basta não mais aplicá-la. Esse fato para nossa cultura pode parecer fácil, mas, na cultura inglesa, extremamente tradicional, e difícil acontecer. Uma vez rompida com o acordo, esta rompido, e este rompimento não pode ser objeto de análise do Judiciário.
O que nos interessa no constitucionalismo inglês é a sua contribuição para o constitucionalismo norte-americano, que por essa tradição chegou até nós. A sua contribuição principal nesse caso não está na força do parlamento, mas na força do juiz. O Judiciário constrói a norma justa aplicável ao caso concreto, e se essa norma construída pelo Judiciário cuida de matéria constitucional ela é Constituição. O que acabamos de dizer vem ser teorizado com maior consistência no século XX, entretanto é praticado a séculos.
Essa construção e reconstrução da compreensão da Constituição inserida na realidade econômica, social, cultural e política é fato, que passa a ser melhor teorizado na segunda metade do século XX. A Constituição inglesa é de extrema complexidade, pois não foi construída sobre uma única base, um texto constitucional produto de um poder constituinte originário, sistematizado, codificado, dividido em títulos, capítulos, seções, artigos, incisos e alíneas, mas é formado por diversas leis que são interpretadas, reinterpretadas e formalmente modificadas, isso tudo somado a Convenções não escrita acordadas no parlamento, o que torna a compreensão da Constituição inglesa extremamente difícil para nós.
Não há na história constitucional inglesa um poder constituinte originário, eleito para elaborar a Constituição e que se dissolve depois dessa tarefa, deixando um poder constituinte derivado de reforma atuante a qualquer momento, desde que cumpridos os requisitos formais. Podemos dizer que não há na Inglaterra um poder constituinte originário nem derivado, mas um poder constituinte permanente que atua no Legislativo, no Judiciário e na cultura política. A idéia britânica da soberania do parlamento reside na afirmação antiga de que o parlamento (as câmaras e o rei) podem adotar qualquer lei. Assim, não há norma superior à lei, e logo uma lei de conteúdo constitucional pode a qualquer momento ser modificada por uma lei ordinária. A lei constitucional não o é por ter procedimento legislativo diferente, mas somente pelo seu conteúdo. Alguns ainda defendem a idéia de que aquilo que a rainha faz em seu parlamento é direito e não há limites ao que pode fazer o parlamento (ao menos limites jurídicos por ser obvio a existência de limites históricos, fáticos). Assim os tribunais não podem recusar a aplicação de uma lei sob o fundamento de invalidade ou inconstitucionalidade, recusando-se, portanto, um mecanismo judicial de controle de constitucionalidade das leis produzidas pelo parlamento.4
Entretanto, recentemente, há um forte movimento em defesa da adoção de uma declaração de direito, de uma codificação dos direitos e liberdades com um valor supralegislativo e logo suscetível de um controle de constitucionalidade. Essa tese ainda é minoritária mas mudanças importantes vêm ocorrendo com a condição do Reino Unido de Estado-Membro da União Européia. O Ato dos Direitos Humanos adotado em 1998 tornou a Convenção Européia de Direitos Humanos diretamente aplicável. Embora a Convenção não tenha superioridade em relação as leis ordinárias do parlamento, um deputado que proponha um lei deve fazer um declaração sobre a compatibilidade desta com a Convenção. Os tribunais continuam não podendo anular uma lei do parlamento, mas devem, no caso de conflito entre uma lei do parlamento e a convenção, promover uma interpretação que as tornem compatíveis. Sendo impossível a compatibilização, esta deve ser declarada pelo tribunal. O juiz não pode afastar a aplicação da lei parlamentar mas para pôr fim o conflito o Primeiro-Ministro pode emendar a lei sem voltar ao caso concreto que gerou o conflito.5
Outro aspecto importante da tradição jurídica inglesa, que decorre de maneira lógica de tudo o que foi dito, é o recurso ao precedente, como fonte do direito constitucional. Os precedentes judiciais são Constituição, na forma de decisões que incorporam tradições e costumes, e nas interpretações e reinterpretações da lei produzida pelo parlamento. Importante lembrar que a jurisdição suprema do Reino Unido é exercida pela Câmara dos Lordes, que é também integrante do Legislativo. A Câmara dos Lordes era composta, em 1999, de 758 pares hereditários e 542 pares vitalícios indicados pela Rainha, recentemente, indiretamente pelo Primeiro-Ministro, e 25 pares espirituais, bispos da Igreja Anglicana. Com as recentes reformas do governo Trabalhista de Tony Blair, os lordes hereditários deixam de existir e se inicia um processo de democratização da Câmara dos Lordes com a eleição de pares ao lado dos pares vitalícios nomeados pelo Primeiro-Ministro por intermédio da Rainha. A reforma no sistema de designação dos lordes vitalícios ainda não foi implementada. Assim, os lordes hereditários perderam suas cadeiras com a exceção de 92, que permaneceram por serem selecionados por eleição. Finalmente, acrescente-se que, com as sucessivas restrições históricas ao poder da Câmara dos Lordes, a participação desta no processo legislativo se resume na possibilidade de vetos suspensivos que prorrogam a entrada em vigor de uma lei por no máximo um ano.6
O precedente não equivale ao que chamamos entre nós de súmula. A súmula é uma redução absurda do caso, em que uma ementa resume toda a sua complexidade. O pior é determinar que essa súmula dos Tribunais Superiores ou do Supremo Tribunal Federal deve vincular as decisões de todos os órgãos do Poder Judiciário. Para entendermos a absurda simplificação de uma súmula e a desumanização do processo no Judiciário quando impomos sua vinculação, devemos compreender o significado de um precedente. A riqueza do precedente e a sua contribuição para as compreensões da hermenêutica constitucional contemporânea estão no fato de que o precedente não se resume a uma sumula (uma ementa), mas leva em consideração toda a lógica argumentativa desenvolvida pelas partes no decorrer do processo assim como o fundamento das decisões, incluindo os argumentos de votos vencidos. Nesse sistema de precedentes, as partes devem demonstrar que, levando em consideração a situação histórica do caso em julgamento, com todo o seu pano de fundo social, cultural, econômico, pessoal, dentre outros aspectos, um precedente se aplica ou não, qual precedente se aplica ou, ainda, se é necessário criar um novo precedente. Nesse sentido, é que podemos dizer que um precedente não se revoga, mas é superado pela história, cultura e valores vigentes nas sociedades, sempre em transformação.
Partindo dessa experiência, podemos resistir à estupidez das simplificações impostas, utilizando a mesma lógica para rechaçar a aplicação de uma súmula. Para evitar a desumanização do processo, é necessário demonstrá-la, ou seja, é necessário demonstrar em cada caso a sua natureza única, a sua especificidade e a razão por que a súmula não se aplica.
Isso posto, passamos à análise do constitucionalismo norte-americano, modelo que contribuiu diretamente para nossa história constitucional. O constitucionalismo norte-americano se aproxima do nosso, uma vez que, a partir da experiência inglesa e da teoria francesa, os norte-americanos elaboraram um texto, produto de um poder constituinte originário, rígido, sintético e essencialmente principiológico, o que permite a força do Judiciário na construção e reconstrução de sua interpretação.
Embora não tenhamos uma Constituição com um texto sintético e principiológico, como a Constituição norte-americana, a influência do constitucionalismo norte-americano, a partir da nossa Constituição de 1891, ocorreu principalmente com a criação do controle difuso de constitucionalidade. A introdução dessa forma de controle no Brasil permite que recebamos importante contribuição teórica e prática, que ocorre com a introdução da idéia de construção de um sentido mais amplo e democrático do conceito de jurisdição constitucional. Essa contribuição é, hoje, importante para o direito constitucional em todo o mundo.
3 O CONSTITUCIONALISMO NORTE-AMERICANO
De forma diferente do constitucionalismo inglês, nos Estados Unidos houve um poder constituinte originário que produziu, em 1787, um texto codificado, rígido e sintético com aspecto essencialmente principiológico e inicialmente político, incorporando a declaração de direitos individuais fundamentais a partir da dez emendas que constituíram o Bill of Rights.
O constitucionalismo estadunidense criou o sistema de governo presidencial, o federalismo, o controle difuso de constitucionalidade, mecanismo sofisticados de freios e contrapesos e uma Suprema Corte que protege a Constituição, sendo sua composição uma expressão do sistema controle entre os poderes separados.
Sobre a Constituição norte-americana muito tem sido dito, por isso muitos são também os equívocos. Primeiro diz-se que os Estados Unidos tiveram apenas uma Constituição, mas esta não parece ser a compreensão de seus intérpretes e estudiosos. Alguns autores afirmam encontrar-se nos Estados Unidos da América ao menos três Constituições, outros falam em sete Constituições diferentes. Isso significa que, embora desde 1787 o texto com sete artigos permaneça em vigor com 27 emendas, ocorreram modificações interpretativas que atribuíram sentidos diversos aos significantes do seu texto, e essas mudanças de compreensão geraram novos direitos.
Para compreender o que foi dito, é importante lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de significantes aos quais atribuímos significados. Nesse sentido toda leitura de um texto significa atribuição de sentidos e atribuição de sentidos significa atribuir valores, que mudam com a mudança da sociedade. A sociedade muda por meio das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando muda a sociedade, mudam os valores, logo, mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais, portanto, passamos atribuir novos significados.
O processo evolutivo da Constituição dos Estados Unidos da América ocorre, principalmente, por meio das suas mutações interpretativas, decorrentes da evolução de valores de uma sociedade em permanente conflito.
Jorge Miranda7 afirma que a Constituição norte-americana é, simultaneamente, rígida e elástica. Rígida porque a alteração formal de seu texto é complexa e diferenciada do processo legislativo de elaboração de uma lei ordinária. Para alterar o texto ou promover emendas aditivas ou supressivas, é necessária a participação dos Estados-Membros da federação em um processo lento e complexo. Isso explica, em parte, o número reduzido de emendas. Entretanto, o principal motivo da existência de poucas mudanças formais do texto, por meio de emendas é o fato de que esse texto sintético e principiológico permite mutações interpretativas, mudança de compreensão de seu sentido e do conceito de seus princípios, que torna desnecessária o recurso constante a mudança do texto, pois muda-se a Constituição mudando o seu sentido, a sua compreensão, sem ter de mudar o texto.
Importante ressaltar que a mudança interpretativa tem limites, impostos pelo próprio texto. Logo, um texto sintético, que contenha mais princípios do que regras8 permite maiores mudanças interpretativas do que um texto analítico, com excesso de regras que travem mudanças de compreensão dos princípios. Quanto mais detalhado o texto, quanto mais regras, quanto maior o detalhamento do texto, que em alguns casos pode construir modelos, conceitos e traduzir valores, menor o espaço para as mudanças interpretativas. Entretanto, podemos dizer que mesmo um texto detalhado, minucioso, também muda de sentido, embora o espaço da mudança seja menor. Podemos concluir nesse aspecto, que, ao contrário do que se diz, a Constituição dos Estados Unidos da América não é pequena, pois o seu texto sintético permite construções interpretativas muito amplas, fazendo que a constituição dos Estados Unidos da América, juntamente com a Inglesa, seja uma das maiores Constituições do planeta, pois para compreendê-la é necessário buscar a leitura que os tribunais fazem do seu texto. Integram a Constituição as decisões judiciais que dão densidade aos seus princípios diante do caso concreto.
Esse é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional: o que ocorre nos Estados Unidos da América ocorre em todo o mundo, com intensidade diferente. A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre ocorre. O texto por si só não existe, ele só passa a existir quando alguém o lê, e quando isso ocorre, necessariamente, quem o lê e lhe atribui sentido, o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na compreensão do texto os valores, as pré-compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é impossível não interpretar.
Pode-se imaginar, a partir daí, que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isso também é fato. O que cabe ao jurista buscar é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com essa descoberta. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo, é uma ilusão que não gera segurança, mas gera, sim, injustiça e imobilismo autoritário.
Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros. Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece maior segurança se o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica. Esse assunto será enfrentado mais adiante e nos valemos das reflexões de Ronald Dworkin para fazê-lo, não adotando sua teoria mas pensando a partir dela.
Voltemos, pois, a história constitucional norte-americana para procurarmos entender a evolução constitucional daquele país e a importante contribuição de sua prática histórica para as reflexões que envolvem a hermenêutica constitucional em todo o mundo.9
Vamos tomar uma frase (em português) mas originária da declaração de independência dos Estados Unidos:
TODOS OS HOMENS NASCEMLIVRES E IGUAIS EM DIREITO
Como o leitor compreende essas palavras hoje, no século XXI? Provavelmente da maneira como a grande maioria das pessoas: todas a pessoas, indistintamente, sem diferenciação em razão de credo religiosos, etnia, cor, sexo, origem econômica ou nacional, nascem livres e iguais em Direito.
Como vemos, a frase “todos os homens nascem livres e iguais em Direito” conquistou hoje o senso comum de milhões de pessoas em quase todos os lugares do planeta onde há uma Constituição de um Estado nacional relativamente democrático, com um significado que se universalizou. Entretanto, para lermos e compreendermos essa frase como a compreendemos hoje foram séculos de história, séculos de conflitos e lenta conquista de direitos. A atribuição desse sentido aos significantes da frase, embora não seja realidade efetiva em diversas sociedades, representa uma busca comum de boa parte da humanidade. A compreensão geral desse principio é hoje bastante generalizada, embora a compreensão mais profunda da idéia de igualdade não seja tão uniforme, e nem deva ser, em um universo cultural diversificado, plural e democrático.
Se buscarmos, no entanto, a compreensão dessa frase no século XVIII, pouco depois da independência dos Estados Unidos da América, vamos perceber que as palavras ganham outro sentido, e logo as normas decorrentes desse princípio serão outras. O olhar de um juiz norte-americano sobre essas palavras, expressando os valores daquela época, vai permitir que ele extraia dessa frase a seguinte compreensão: todos os homens (sexo masculino) brancos e protestantes, nascem livres e iguais em direito. A mesma frase, com os mesmos significantes ganha sentido completamente diverso, pois o olhar do interprete é condicionado pelos valores sociais e as pré-compreensões desses valores decorrentes em determinado momento da história. As compreensões são historicamente e geograficamente localizadas. Com outro sentido, as normas decorrentes deste principio estabelecem uma ordem jurídica fundada sobre valores completamente diferentes e um sistema normativo também completamente diferente.
A situação de exclusão e um desenvolvimento econômico distinto no norte industrializado e progressista e um sul escravocrata e conservador geraram conflitos que levaram a guerra civil norte-americana. Os conflitos sociais, políticos e econômicos empurram a sociedade a mudanças comportamentais, novos valores se afirmam e as compreensões do mundo mudam gradualmente. Novos conceitos se afirmam diante de novas realidades, um novo universo de pré-compreensões é paulatinamente construído e reconstruído. Novos significados se afirmam para os mesmo símbolos, para os mesmos significantes, para as mesmas palavras. Um novo mundo se constrói na linguagem, que é reconstruída pela marcha econômica e social do capitalismo do século XIX. Essas mudanças ocorrem na cabeça das pessoas. Novas demandas se apresentam perante o Poder Judiciário, e juízes que incorporam essas novas compreensões constroem soluções, novas normas diante do caso concreto que refletem esses valores. No final do século XIX, as mesmas palavras que traduzem o princípio da igualdade ganham novo significado e normas diferentes são criadas, regulando as relações sociais, políticas e econômicas de forma diferente.
A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ter novo sentido, podendo ser traduzida da seguinte forma: todos os homens (sexo masculino), brancos e negros, nascem livres e iguais em direitos, mas devem viver separados. A existência de escolas só para brancos e só para negros, ônibus ou lugares nos transportes coletivos só para brancos e só para negros, assim como outras separações, são permitidas, desde a qualidade dos serviços sejam iguais para brancos e negros.10 Está criada a doutrina fundada sobre a idéia de separados mas iguais. Esse processo de mutação interpretativa é muitas vezes lento, aparecendo pontualmente em algumas decisões judiciais, até se firmar como paradigma de compreensão durante algum tempo.
A compreensão do separados mas iguais permanece até a década de 1960 nos Estados Unidos. Os conflitos raciais, o movimento pelos direitos civis na década de 195011 e 1960, com a liderança de Malcon X, o pastor Martin Luther King, a eleição de John Kennedy em 1960 e a ação de Bob Kennedy na repressão aos movimentos racistas violentos da Ku Klux Klan, empurram a sociedade norte-americana para uma nova ruptura, com a construção de uma nova idéia de igualdade. Lentamente, a doutrina do separados mais iguais vai cedendo espaço a uma nova leitura do principio da igualdade jurídica. A frase “todos os homens nascem livres e iguais em direito” passa a ser compreendida de outra maneira. Agora podemos dizer que todos os homens, brancos, negros, vermelhos, amarelos, independentemente de cor, etnia ou qualquer outra diferenciação, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser obrigados a viver separados em um sistema de segregação de qualquer espécie.
A igualdade de direitos entre homens e mulheres, entretanto, ainda vai demorar um pouco mais. Em 1972, nos Estados Unidos da América, foi proposta a 27ª emenda, reconhecendo direitos iguais para homens e mulheres. Na sua proposição, reconheceu-se que, caso a Suprema Corte mudasse a orientação a respeito da igualdade jurídica, não seria necessária a aprovação da emenda. Ela não foi aprovada, encontrando forte resistência nos Estados do sul, mais conservadores. Entretanto, a Suprema Corte passou a compreender a igualdade perante a lei de nova forma. Podemos dizer que a frase “todos os homens nascem livres e iguais em direitos” passa a ser compreendida da seguinte forma: todos os homens leia-se todos os seres humanos -, sem nenhuma distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser segregados ou discriminados por nenhum motivo, seja cor, etnia, origem social ou econômica, ou sexo.
A igualdade de direitos entre mulheres e homens no Brasil só foi reconhecida expressamente com a Constituição de 1988, no seu artigo 5º inciso, I. Em muitos países, hoje respeitados como modelos de Estado de bem-estar social democráticos, os direitos das mulheres foi tardiamente reconhecido. Na Suíça, por exemplo, o voto feminino só foi admitido em nível federal a partir de 1972.
Como vimos, o princípio da igualdade jurídica percorreu um caminho de mais de duzentos anos de conflitos até que pudéssemos compreendê-lo com o significado que ele têm hoje. Esse foi o percurso de um princípio. A mutação sistêmica da compreensão do texto constitucional representa a mudança de compreensão de toda a Constituição. É como se se adotasse uma nova Constituição. Talvez o exemplo mais claro disso tenha sido a passagem de uma Constituição liberal para uma Constituição social, sem a alteração do texto, sem um processo formal de reforma e sem um novo processo constituinte. Houve uma mudança de compreensão do texto no que diz respeito à admissão da possibilidade de uma forte intervenção do Estado no domínio econômico, o que marca a introdução do Welfare State nos Estados Unidos a partir do governo Roosevelt nas décadas de 1930 e 1940, adotando um modelo econômico intervencionista de base teórica keynesiano-fordista.12
A história constitucional norte-americana reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da vida. Uma Constituição que é interpretação, e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova dimensão da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das normas é inafastável.
4 UM PRESSUPOSTO: A AUTOPOIÉSIS É UMA CONDIÇÃO HUMANA
Um pressuposto fático e não apenas teórico é a condição de que, enquanto vivos, estarmos condenados a autopoiésis. Somos necessariamente, como seres vivos, auto-referenciais e auto-reprodutivos e essa condição se manifesta também nos sistemas sociais e jurídicos.
Dois cientistas chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela,13 biólogos, trouxeram uma importante reflexão, que a partir da compreensão da vida na biologia resgatam a idéia de auto-referência que se aplica para toda a ciência.14
Estudando a aparelho ótico de seres vivos,15 os cientistas viraram o globo ocular de um sapo de cabeça para baixo. O resultado lógico foi que o animal passou a enxergar o mundo também de cabeça para baixo, e sua língua, quando era lançada para pegar uma presa, ia também na direção oposta. O resultado óbvio demonstra que o aparelho ótico condiciona a tradução do mundo em volta do sapo.
A partir dessa simples experiência, temos uma conclusão que pode ser absolutamente óbvia, mas que, entretanto, foi ignorada pelas ciências durante séculos, ciências que buscavam um verdade única, ignorando o papel do observador na construção do resultado.
O fato é que entre nós e o mundo existe, sempre, nós mesmos. Entre nós e o que está fora de nós existem lentes que nos permitem ver de forma limitada e condicionada pelas possibilidade de tradução de cada uma dessas lentes.
Assim, para percebemos visualmente, ou seja, para interpretarmos e traduzirmos as imagens do mundo, temos um aparelho ótico limitado que é capaz de perceber cores e uma série de coisas, mas que não é capaz de perceber outras, ou por vezes nos engana, fazendo que interpretemos de forma errada algumas imagens ou cores.
Outras lentes ou instrumentos de compreensão se colocam entre nós e a realidade. Além do aparelho ótico e de outros sentidos, somos seres submetidos a reações químicas e cada vez mais condicionados pela química das drogas. Assim, quando estamos deprimidos, percebemos o mundo cinzento, triste, as coisas e as pessoas perdem a graça e a alegria, e assim passamos a perceber e a interpretar o mundo. De outra forma, quando estamos felizes ou quando tomamos drogas como os antidepressivos, passamos a ver o mundo de maneira otimista, positiva, alegre ou mesmo alienada. É como se selecionássemos as imagens e fatos que queremos perceber e os que não queremos perceber. Mesmo a nossa história, ou os fatos que presenciamos, assim como a lembrança dos fatos, passa a ser influenciada por essa condição química. Cada vez que recordamos um fato, essa condição influencia nossa lembrança. Daí a dificuldade de contar com provas testemunhais em processos judiciais ou administrativos, especialmente quando o depoimento ocorre muito tempo depois do fato. Um mesmo fato presenciado por diversas pessoas será descrito de maneira diferente por cada uma das testemunhas. A percepção diferente do mesmo fato ocorre, uma vez que cada observador é um mundo, um sistema auto-referencial formado por experiências, vivências, conhecimentos diferenciados, que serão determinantes na valoração do fato, na percepção de determinadas nuanças, e na não percepção de outras. Nós vemos o mundo a partir de nós mesmos.
Assim, podemos dizer que outra lente que nos permite traduzir e interpretar o mundo são nossas vivências, nossa história, com suas alegrias e tristezas, vitórias e frustrações. O que percebemos, traduzimos e interpretamos do mundo está condicionado por nossa história, que constrói nosso olhar valorativo do mundo, nossas preferências e preconceitos.
Novas lentes se colocam entre nós e o mundo, novos instrumentos decodificadores que, ao mesmo tempo que nos revela um mundo, esconde outros. Aproximando-se do campo do Direito, temos a cultura, que traduz uma série de círculos sistêmicos, que parte do mais estreito (espacialmente falando) no qual há uma maior sintonia fina para os mais amplos. Assim, somos influenciados em nossa percepção do mundo pelos valores e pré-compreensões decorrentes da cultura de nossa família, nossa cidade, nossa região, nosso país, nosso continente, assim como compartilhamos algumas compreensões universais. A cultura condiciona sentimentos e compreensões de conceitos como liberdade, igualdade, felicidade, autonomia, amor, medo e diversos comportamentos sociais. Assim, o sentir-se livre hoje é diferente do sentir-se livre a cinqüenta ou cem anos atrás. O sentimento de liberdade para uma cultura não é o mesmo de outra cultura, mesmo que em determinado momento do tempo possamos compartilhar conceitos que dificilmente são universalizáveis.
Chegando ao campo do Direito, quando procuramos entender uma Constituição e um sistema legal de outro Estado nacional, de outra cultura e história, enfrentaremos os problemas de diferentes compreensões e percepções do mundo, especialmente quando tratamos de princípios, palavras cheias de sentido, que se localizam, por isso, geograficamente e historicamente. Ao lermos o texto de uma Constituição vamos deparar com palavras como liberdade, igualdade, soberania, etc. Quando lemos o texto vamos atribuir o sentido a essas palavras, de nossa cultura, de nosso conhecimento e compreensão do mundo, entretanto essa não será a compreensão dessas palavras para o sistema jurídico estudado. Para nos aproximarmos do sentido do texto para aquele sistema jurídico, temos de buscar sua compreensão nos julgados, nas decisões judiciais que interpretam o texto naquele sistema.
Somos seres autopoiéticos (auto-referenciais e auto-reprodutivos), e não há como fugir desse fato. Entre nós e o que esta fora de nós sempre existirá nós mesmos, que nos valemos das lentes, dos instrumentos de interpretação do mundo para traduzir o que chamamos de realidade. Somos a medida do conhecimento do mundo que nos cerca. Somos a dimensão de nosso mundo.
A linguagem e a série de conceitos que ela traduz constituem nossa dimensão da tradução do mundo. Podemos dizer que quanto maior o domínio das formas de linguagem, quanto mais conceitos e compreensões (que se transformam em pré-compreensões que carregamos sempre conosco) incorporarmos ao nosso universo pessoal, mais do mundo nos será revelado.
Assim, não podemos falar em uma única verdade. Não há verdades científicas absolutas, pois é impossível separar o observador do observado.16 Daí existirão tantas verdades quanto observadores existirem. Esse universo de relatividade se contrapõe aos dogmas, aos fundamentalismos, às intolerâncias. A compreensão da autopoiésis significa a revelação da impossibilidade de verdades absolutas, sendo um apelo à tolerância, à relatividade, à compreensão e à busca do diálogo. A certeza é sempre inimiga da democracia. A relatividade é amiga do diálogo, essência da democracia. Entretanto, um problema fundamental se coloca para o Direito, o qual abordaremos a seguir: é necessário construir mecanismo de interpretação jurídica que ofereça o mínimo de segurança possível e desejável, em que o grau de relatividade seja controlado. Deve existir um mínimo de previsibilidade na inevitável relatividade. Lembremos que a tentativa de eliminar a relatividade na busca da previsibilidade pode levar ao absolutismo, ao totalitarismo ou, no mínimo, ao autoritarismo, gerando sempre injustiça.
5 A QUESTÃO DO CONFLITO DE PRINCÍPIOS
A construção da norma justa aplicável ao caso concreto necessita enfrentar, diante das complexidades da vida social, o conflito de princípios, que ocorre, não a priori, no texto, mas sempre diante do caso concreto. Para compreendermos o problema posto é necessário, primeiramente, identificar as diferenças entre regras e princípios. Alguns autores ressaltam o enunciado de uma e de outra norma. Enquanto a regra é extraída de um enunciado detalhado, minucioso por vezes, contendo mais palavras que buscam explicitar, explicar a situação que a norma regula, o princípio decorre de enunciados mais simples, genéricos, abertos, muitas vezes contendo uma palavra. Essa diferenciação procede, entretanto não se esgota aí, o que seria demasiado simplificador e, portanto, não poderia esclarecer todos os aspectos que envolvem a importante diferenciação.
Podemos dizer que de um enunciado (texto) podemos extrair um princípio ou uma rega, um principio e uma regra, e de uma serie de regras podemos deduzir princípios, não expressos, mas deduzidos com clareza do texto.
Podemos falar ainda que da leitura sistêmica do texto podemos extrair modelos, como o modelo econômico originariamente previsto na Constituição Federal de 1988, que privilegiava (e de certa forma ainda privilegia) as formas de ganho com trabalho como o salário, os vencimentos, os proventos de aposentadoria, o lucro, desde que decorrente da livre iniciativa e livre competição e que limita e condiciona as formas de ganho sem trabalho como a renda (função social da propriedade rural e urbana), os juros (os 12% ao ano que estava previsto no art. 192 § 3º e foi suprimido pela emenda 40) e o lucro com o controle de mercados e abuso de poder econômico como previsto no artigo 173. Já cuidamos dessa questão no tomo I do nosso Direito Constitucional e, portanto, retomamos a discussão que nos interessa no momento.
A principal diferença entre princípios e regras reside, entretanto, no grau de abrangência de um e de outro. A regra é uma norma que regula uma situação específica enquanto o princípio é uma norma que regula diversas situações, sendo que alguns princípios fundamentais tendem a ser aplicados a todas as situações ou, pelo menos, ao maior número de situações possíveis, uma vez que é impossível fazer qualquer afirmativa definitiva em relação à complexidade da vida social. Não vamos aqui adotar a diferenciação proposta por Rober Alexy no sentido de que, enquanto a regra se aplica ou não, os princípios podem ser aplicados em parte ou no todo. Ficamos com a idéia de que, assim como as regras, os princípios se aplicam ou não, residindo sua principal diferença no grau de abrangência muito superior do principio em relação as regras que regulam de forma específica situações específicas.
Dessa forma, toda vez que aplicamos uma regra a um caso concreto, não podemos nos esquecer de que devemos aplicar aquela regra de forma coerente com o sistema constitucional, pois devem ser aplicados simultaneamente à regra ou regras que regulam o caso todos os princípios constitucionais que compõem coerentemente o sistema constitucional. Assim, quando aplicamos uma regra do Código Penal ou do Código Civil, ou qualquer outra norma, o que fazemos não é mera aplicação do texto ao caso, mas, sim, uma construção, pois buscamos primeiramente as regras e princípios constitucionais e infraconstitucionais que regulam o caso, e a partir daí temos de construir uma norma específica para o caso a partir das normas gerais e abstratas dos textos legais constitucional e infraconstitucional. Logo, o trabalho do intérprete é de busca no ordenamento jurídico, a partir do caso concreto, das normas que o regulam para então construir uma norma específica para o caso.
É justamente a partir dessa compreensão que afirmamos sempre que toda jurisdição será necessariamente uma jurisdição constitucional, uma vez que não se pode aplicar as regras infraconstitucionais ignorando as regras e princípios constitucionais, e mesmo os modelos por acaso existentes.
Logo uma solução de um conflito pelo Judiciário que meramente transcreva norma escrita, mal interpretada porque descontextualizada, ignorando o sistema constitucional, suas regras e princípios, é uma interpretação e aplicação inconstitucional.
Alguns casos podem ilustrar a prática legalista, reducionista, do direito a regras, e como essa prática gera injustiça, pois não permite a adequação coerente do sistema jurídico ao caso.17
Certo dia, chegando a um delicioso hotel em Sete Lagoas, Minas Gerais, uma antiga fazenda mineira, no balcão onde fazia o ritual de entrada havia um aviso pendurado na parede escrito o seguinte: “Proibido entrar com animais domesticados”. Uma criança de cinco anos que chegava com a família pediu ao pai que lesse o cartaz. Após a leitura, perguntou: “Pai, quer dizer que animais selvagens podem entrar no hotel?”
Li no Jornal do Brasil, em uma das muitas viagens para o Rio de Janeiro, uma notícia a respeito do meu time do coração ao lado do Cruzeiro de Belo Horizonte: o glorioso Botafogo de Futebol e Regatas. A notícia contava um caso interessante de uma briga entre o técnico do time de juniores do Botafogo e o juiz da partida. Um jovem jogador do time não tinha uma parte do braço direito, o que, entretanto, não impedia que ele jogasse muito bem como atacante do time. Naquele jogo, entretanto, toda vez que o jogador ia cobrar lateral, o juiz mandava reverter o lateral para o outro time invalidando a cobrança feita pelo jovem jogador sem uma mão. Indagado com indignação pelo técnico sobre o porquê das repetidas invalidações das cobranças de lateral, o juiz respondeu: “A regra do jogo é clara: o lateral tem de ser cobrado com as duas mãos.”
Inspirado em Perelman, podemos adaptar para o nosso espaço outro caso ilustrativo. Em uma estação de metrô limpa, clara e bem conservada, uma senhora passeava com o seu cachorro que, apertado, fez cocô. A senhora, apressadamente, não limpou a sujeira de seu animal, deixando no chão aquela coisa desagradável e meio mole. Pouco tempo depois, passou outra senhora distraída pisou naquela coisa, escorregou e se machucou. O incidente rendeu um processo e uma indenização paga pela administração do metrô. Após o fato a administração baixou uma regra muito clara: “É proibido entrar com cachorro no metrô”. Muitos dias depois, passava pela cidade um circo, e o treinador de animais saiu para passear pela cidade levando na coleira um simpático urso panda filhotinho. No mesmo momento que entrava no metrô, entrava também um cego levando seu cachorro, um belo labrador branco que o conduzia. O guarda de plantão, vendo a cena e olhando a regra “proibido entrar com cachorro no metrô” abordou o cego e disse: “O senhor não pode entrar com o cachorro no metrô”. O treinador passou tranqüilamente com o seu urso, pois urso não é cachorro.
Qual o problema recorrente nos casos acima? A leitura gramatical descontextualizada que deturpa o sentido da norma. Ora, no último exemplo, a norma, embora mencione um cachorro, tem a finalidade de impedir que animais que não façam xixi e cocô no banheiro o façam no chão e nos carros do metrô. No que diz respeito ao cego, ele tem um direito constitucional maior, a liberdade de locomoção, superior à regrinha da administração do metrô, e como ele necessita do cachorro para se locomover não pode ser impedido de entrar com o cão no metrô.
Ainda sobre legalismos e interpretações literais e gramaticais descontextualizadas, recordo-me de um recurso de um aluno em uma prova de Direito Constitucional de uma professora colega de trabalho. O art. 5º da Constituição no caput dispõe o seguinte:
“Artigo 5 – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,nos termos seguintes:”
Como professora de Direito Constitucional I, sua primeira prova avaliava o conhecimento dos alunos a respeito dos direitos individuais. Uma das questões estava assim proposta:
“Os direitos individuais relativos à vida e à liberdade no Brasil são assegurados pela Constituição Federal para as seguintes pessoas:
a) apenas para os brasileiros natos e naturalizados;
b) para os brasileiros e estrangeiros residentes no país;
c) para todas as pessoas que se encontram no território brasileiro;
d) nenhuma das respostas anteriores.”
Note-se que a questão b) transcreve parte do texto do art. 5º da Constituição Federal de 1988. A maior parte dos alunos que assistiu às aulas e leu os textos indicados pela professora respondeu corretamente à questão assinalando a letra c). Entretanto, um aluno relapso e criador de caso assinalou a questão b) e, alegando estar a professora errada, recorreu e xingou até a última instância acadêmica, perdendo, obviamente, o recurso e a razão. Ora, como dissemos, Constituição não é texto, e uma leitura literal não sistêmica e descontextualizada do texto pode sugerir então que, como a Constituição expressamente se refere à garantia dos direitos individuais para brasileiro e estrangeiros residentes no Brasil, os estrangeiros, turistas, não residentes, não têm assegurado o seu direito à vida e à liberdade, o que é errado.
Passamos, agora, a análise do conflito de regras, de princípios e regras e de princípios.
A regra, pela sua especificidade, regula uma situação, logo, não pode haver duas regras regulando a mesma situação de forma contraditória. Nesse caso, a solução é simples e estudada há muito tempo, podendo ser encontrada em três aspectos:
a) a lei no tempo: regra posterior revoga a anterior;
b) a hierarquia das leis: lei hierarquicamente superior se impõe sobre a lei hierarquicamente inferior (esta discussão no federalismo já foi feita e não é tão simples quanto num estado unitário).
c) a regra contida em lei específica em face da regra contida em lei de caráter geral.
Não pode haver duas regras regulando a mesma situação de forma diversa no ordenamento jurídico - uma deve ser expulsa.
Podem ocorrer situações em que uma regra se confronte com princípios, e isso, em um ordenamento em que há excessos de regras, é muito comum ocorrer. Nesse caso dois aspectos devem ser ressaltados:
a) regra infraconstitucional que confronte principio constitucional é inconstitucional e não pode continuar sendo válida no ordenamento jurídico;
b) o conflito pode ocorrer diante do caso concreto e, neste caso, a regra continua existindo e podendo ser aplicada em outras situações, exceto aquela em que se caracterizou o conflito. O princípio sempre prepondera sobre a regra
Finalmente, chegamos à situação de maior complexidade: o conflito de princípios. Como dito, os princípios regulam diversas situações e têm como característica principal o grau de abrangência maior. Os princípios tendem a ser aplicados ao maior número de situações possível. Logo, em cada momento que aplicamos ou buscamos no ordenamento jurídico uma regra que regule uma situação, com ela devemos trazer diversos princípios que condicionam a aplicação da regra e que determinam a construção da norma aplicável ao caso concreto. Essa é a situação do Judiciário, ou deveria ser sempre, assim como deveria ser para a Administração Pública no cumprimento das leis e da Constituição.
Não existe, portanto, um conflito ou contradição a priori de princípios. Os conflitos de princípios a priori só existem quando não se considera o ordenamento um sistema lógico que produz seu próprio referencial de compreensão. Não se pode ler a Constituição com pré-compreensão outra senão aquela gerada pelo próprio sistema constitucional. O professor Washington Peluso Albino de Souza já afirma isso há mais de trinta anos.
Portanto, o conflito de princípios (não é uma mera tensão, pois a visão lógico-sistêmica tem efeito de um ansiolítico, evitando ansiedades e tensões) só ocorre diante do caso concreto, diante da complexidade da vida social.
Para compreendermos o conflito de princípios, vamos exemplificar, primeiramente, com um exemplo moral e depois jurídico, para demonstrar que a solução do conflito não pode estar no plano dos valores pessoais do julgador, mas, sim, da razão argumentativa fundada sobre o texto legal e constitucional e sua compreensão jurisprudencial.
Inspirados por um caso reportado, ocorrido com o grande Kant, adaptamos o caso ao Brasil contemporâneo.
Em 1970, um professor brasileiro, sobrevivente do fundamentalismo violento da direita autoritária, lecionava em uma sala de aula de uma universidade pública, quando um rapaz entrou em sua sala correndo, assustado, e pediu para se esconder. O rapaz vestia camisa vermelha e saiu por aí. Encontrou a polícia da ditadura. O rapaz tinha cavanhaque (naqueles tempos sinal de ser um trotskista ou leninista), o que, aliado ao fato de estar com a camisa vermelha e sua juventude, o condenava certamente à tortura e, provavelmente, à morte. O professor, prontamente, sugeriu que ele se escondesse debaixo de sua grande mesa de madeira encima do tablado do qual falava para a turma com cerca de 30 alunos (naquele tempo as turmas eram menores). Pouco tempo depois, dois policiais militares (naquela época a polícia servia às elites que financiavam a ditadura protegendo sua propriedade) entraram na sala de aula e perguntaram ao professor e à turma se eles tinham visto um rapaz perigoso, comunista, com camisa vermelha e cavanhaque.
Esse é o momento do conflito de princípios morais para construção de uma conduta ética: cada aluno e o professor, em fração de segundos, devem consultar sua constituição (os princípios morais e éticos que regem sua vida) para construir uma conduta justa aplicável àquela situação (a norma justa aplicável ao caso concreto). Ao consultar sua constituição moral, a maioria das pessoas presentes na sala de aula, como bons alunos de direito democrático, percebeu que havia um inevitável conflito de princípios: um dos fundamentos de seu ordenamento moral é o princípio de não mentir. Entretanto, percebem com clareza que, ao falar a verdade contando que o rapaz estava escondido debaixo da mesa estariam condenando o jovem trotskista à tortura e, talvez, à morte biológica. Um terrível conflito se instalou na consciência de cada um: ao falarem a verdade, estavam violando outro princípio moral muito caro a cada um deles: o respeito à vida, à integridade física e moral e à liberdade de pensamento e expressão, ou, no mínimo, ao principio de não delatar. A escolha é inevitável. Não há como aplicar, todo o tempo, todos os princípios. Mas há como manter a coerência. Todo esse processo ocorreu em poucos segundos. Depois de alguns segundos tensos, a solução justa veio aliviar a tensão. Nada como justiça para aliviar as tensões. O professor respondeu: “Policial, realmente vi o rapaz. Ele entrou aqui e pulou a janela (era o primeiro andar) correndo em direção do jardim. Os alunos concordaram com a solução se calando, pelo menos a maioria, pois alguns se calaram por covardia de mostrar sua solução injusta.
Eis o conflito de princípios. Ele é inevitável, não há como fugir dele. A escolha tem de ser feita mesmo que seja a omissão, o que uma é péssima escolha. Não é possível aplicar, todo o tempo, todos os princípios e regras, pois, mantendo ou não a coerência, as escolhas devem ser feitas, e o mais grave ocorre quando as escolhas são feitas sem que se saiba que se está escolhendo, fato que ocorre diariamente no plano moral e jurídico.
A solução ocorreu por meio de uma opção fundada sobre valores. Ocorreu uma escolha fundada sobre valores morais. No campo do Direito, isso não pode ocorrer pois significaria a absoluta insegurança. Não são os valores morais do juiz que irão determinar a construção da norma justa com as escolhas que devem ser feitas. Se isso ocorrer, os valores pessoais do juiz determinarão a construção da norma jurídica justa aplicável ao caso concreto, e a insegurança estará instaurada. A resposta que devemos buscar, pois, é, como solucionar o conflito inevitável de princípios no campo do Direito. Para isso, vamos buscar outro exemplo, e para a solução do conflito partimos dos ensinamentos de Ronald Dworkin na sua importante análise do conflito de princípios e na sua construção da idéia da integridade do sistema jurídico. Lembramos que, ao mencionar a teoria de Dworkin como base de reflexão para solução dos problemas de conflitos de princípios na ordem jurídica, não estou concordando com todo o seu pensamento nem que eu seja um liberal, o que definitivamente não sou. O que escrevo surge a partir de um diálogo de leitor, estabelecido com sua obra e com várias outras obras. Não estou traduzindo o seu pensamento, não me julgo o seu intérprete, nem sou seu seguidor. Recomendamos ao leitor o conhecimento das obras do autor norte-americano, O Império do Direito; Uma Questão de Princípios; Levando o Direito a Sério e O domínio da vida, referências importantes para o Direito contemporâneo.
Para trabalharmos o conflito de princípios no Direito, buscamos um exemplo ocorrido no Brasil não faz muito tempo: um episódio envolvendo o conflito de terras. Em um Estado brasileiro, um grupo de famílias do movimento dos Sem Terra ocupou uma propriedade que, segundo o movimento, tratava-se de propriedade improdutiva. O fazendeiro, proprietário das terras, não conformado, recorreu ao Poder Judiciário pedindo a imediata desocupação das terras. O pedido foi acatado pela juíza, que mandou a Policia Militar desocupar a terra em 24 horas. O saldo trágico da ordem inconstitucional da juíza foi de uma morte e diversos feridos. Perguntas surgem dessa exposição: a decisão de desocupação das terras em 24 horas foi correta? Havia outra solução? Qual a solução justa para o caso? Há conflito de princípios? Porque afirmei ser a decisão da juíza inconstitucional? Vejamos.
Para solucionar o conflito construindo uma norma justa específica para o caso, é necessário considerarmos todos os elementos fáticos que envolvem a situação para, então, buscarmos no ordenamento jurídico (visto de forma sistêmica e integral, o que significa coerência do sistema e com o sistema), os princípios e regras, constitucionais e infraconstitucionais que devem ser considerados para a solução do conflito para, então, juntando os dois elementos, argumentando a partir do caso e considerando os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais, construirmos a solução justa, a única solução justa para o caso.
A Constituição Federal prevê a função da social da propriedade com limite ao direito fundamental a propriedade privada previsto no art. 5º. O art. 184 dispõe sobre a desapropriação para fins de reforma agrária quando descumprida a função social da propriedade, por sua vez prevista no art. 186. Em outros dispositivos constitucionais encontramos princípios e direitos fundamentais da ordem constitucional como o direito ao trabalho, a uma justa remuneração, à dignidade da pessoa, à proteção, à integridade física e moral, o direito à vida, ao devido processo legal, à ampla defesa, ao contraditório, dentre outros. Esses princípios e direitos constitucionais não são hierarquizados, tampouco pouco contraditórios. Devem ser lidos de forma sistêmica e coerente. Não pode haver conflitos a priori. O reconhecimento de conflitos a priori decorre de uma incorreta interpretação do sistema, que ocorre quando da leitura a partir de outro paradigma que não o paradigma do próprio sistema constitucional gerado a partir da inserção do texto constitucional e legal na realidade social, política e econômica do momento histórico presente.
A juíza, ao mandar desocupar a propriedade em 24 horas, ignorou os fatos e o potencial gritante de violação de princípios e direitos constitucionais que não foram considerados na construção da norma aplicável ao caso, que foi simplesmente: desocupe em 24 horas com base na legislação infraconstitucional processual.
Qual a solução justa para o caso? Há conflito de princípios constitucionais?
Para construirmos a solução justa para o caso, a única solução justa, é necessário:
a) levar em consideração a relação entre o julgador o caso e o sistema jurídico ao qual ele se vincula;
b) o julgador é obrigado a respeitar o ordenamento jurídico e, logo, deve fundamentar sua decisão desenvolvendo uma argumentação construída sobre os textos legais constitucional e infraconstitucional para solucionar o caso específico;
c) o caso tem de ser considerado em toda a sua complexidade, que deve ser claramente demonstrada. A argumentação deve partir do caso;
d) deve ser demonstrado, finalmente, que a sua decisão é a única que preserva a integridade do sistema, entendida como coerência histórica e coerência sistêmica;
e) a coerência histórica significa que o julgador não pode criar aleatoriamente ou arbitrariamente conceitos ou significados arbitrários para os significantes que constituem princípios constitucionais e infraconstitucionais. Deve ser considerado o conceito historicamente construído para, a partir dessa busca, escrever um novo capítulo coerente dessa novela. Os conceitos, os significantes, evoluem com a sociedade e não podem ser construídos arbitrariamente, mediante argumentos de autoridade, pelo julgador;
f) o sistema jurídico é uma coisa só. É um sistema lógico que se constrói sobre a Constituição que lhe dá sentido e coerência. Esse sentido e essa coerência devem,, obrigatoriamente, serem mantidos na construção de normas aplicáveis aos casos concretos pelos julgadores;
g) entendemos, no dialogo com Dworkin, que a integridade do sistema parte da compreensão de um sistema legal único fundado sobre a Constituição, e não uma série de sistemas autônomos ou semi-autônomos concorrentes entre si como visto no passado do Direito brasileiro, quando diversas obras jurídicas foram escritas para demonstrar a autonomia ou a cientificidade de determinado ramo do Direito. O efeito dessas compreensões foram e ainda são perversos para o respeito à Constituição e comprometem a afirmação do Estado Democrático e Social de Direito contemporâneo, como um necessário avanço ou evolução do Estado de bem-estar-social.
A juíza no caso mencionado não considerou nada disso. Simplesmente aplicou um artigo do Código. Ignorou a Constituição e o potencial explosivo de sua decisão. Ignorou a relação do caso com as normas do sistema jurídico e logo se recusou a construir a norma para o caso, mas simplesmente reproduzir uma regra descontextualizada para a situação fática de extrema complexidade.
Ora, é obvio que a determinação de desocupar uma propriedade rural onde estão, de um lado, centenas de pessoas, de todas as idades, famílias com crianças e idosos, mulheres e homens de todas as idades armados com pedaços de pau e foices, e, de outro, policiais armados com bombas de efeito moral, revólveres, espingardas e outras armas mais, nunca poderia acabar com o respeito à ordem constitucional e ao princípios e direitos acima mencionados. Não é necessário muito raciocínio lógico para perceber que essa ordem de desocupação, embora com amparo na regra processual infraconstitucional, não encontra amparo no ordenamento jurídico constitucional.
Não é difícil perceber que ao aplicar a regra infraconstitucional e mandar desocupar, comprometeram-se direitos como a integridade física e moral, a vida e a liberdade. Pode-se argumentar: E o direito à propriedade do fazendeiro? Não há no texto nada que autorize o julgador a priorizar a propriedade em detrimento da vida ou da integridade física ou moral de nenhuma pessoa. Nesse caso, há então, um conflito entre propriedade e integridade física, entre propriedade e vida? Não.
A solução do caso, levando em consideração a necessidade de preservação da integridade do sistema, deve buscar uma argumentação que, partindo do caso concreto, demonstre os riscos e ameaças a direitos envolvidos e busque, em todo o ordenamento, os direitos que devem ser preservados na decisão.
Não compete ao julgador escolher princípios em detrimento de outros, direitos em detrimento de outros, fundamentando sua decisão a partir de valores pessoais, morais ou ideológicos. Isso seria a insegurança absoluta. Essa arbitrariedade comprometeria o Estado de Direito. Ao permitir que as escolhas fossem fundamentadas pelo julgador a partir de argumentos morais ou ideológicos, teríamos situações de grave injustiça constitucional, principalmente em sociedades complexa e com múltiplas identidades simultâneas como as sociedades contemporâneas. No caso de conflito de terras e resgatando o importante conceito de autopoiésis construído anteriormente, teríamos, por exemplo, situação absurda de insegurança como:
• Um juiz conservador vê o mundo a partir do seu referencial de valores. Provavelmente, ao observar o caso, ele poderia pensar: “Aquele grupo de sem-terra desrespeitaram o direto a propriedade daquele fazendeiro trabalhador, devo tirar imediatamente os invasores”. A decisão, então, injusta perante o sistema constitucional, se fundou em valores morais e ideológicos da visão de mundo daquele sujeito.
• De forma diferente, um juiz com sensibilidade social, não necessariamente um socialista, também percebe o mundo a partir do seu referencial de mundo e pode traduzir o fato da seguinte forma: “Aquele latifundiário, com tanta terra sem produzir, enquanto tantas pessoas necessitam de terra, trabalho e comida. Esta propriedade não pode continuar sendo mal utilizada enquanto tantos necessitam. Os ocupantes devem permanecer, pois sua vida de liberdade é mais importante que a propriedade privada do fazendeiro”.
• Observamos na sociedade brasileira posicionamentos semelhantes ao acima exemplificado. Esses pensamentos opostos, entretanto, têm algo em comum: não são jurídicos. Não são constitucionais. Não respeitam a integridade de nosso sistema jurídico constitucional.
• Qual a solução justa, então? Ao observar o conflito de terras como o do nosso caso e ao ser chamado a solucionar o conflito sem a obrigatoriedade de respeitar a integridade do sistema fundamentando sua argumentação em valores morais e ideológicos e não argumentando exclusivamente sobre os princípios e normas jurídicas, tanto o juiz conservador como o progressista, comprometeram a segurança jurídica e desrespeitaram a Constituição.
• O caso não é o mais complexo, e sua solução já foi encontrada por diversos julgadores em casos concretos ocorridos recentemente no Brasil. Não se trata, neste caso, nem mesmo de conflito de princípios ou direitos constitucionais, mas de conflito entre regra e principio, em que a primeira deve ser afastada. Em nosso exemplo, a regra do código deve ser afastada, não pode ser aplicada, e a solução que mantém a coerência do sistema preservando os direitos constitucionais envolvidos é a que busca a desocupação no tempo necessário para que nenhuma vida seja ameaçada, nenhuma pessoa tenha sua integridade física e moral ameaçada ou comprometida, preservando a propriedade do fazendeiro até que, por meio do processo legal previsto para desapropriação para fins de reforma agrária seja assegurado o direito à terra para aquelas pessoas e todos os brasileiros que queiram produzir e viver com dignidade.
• A norma não foi inventada, não se trata de direito alternativo, mas de direito constitucional. Não há como preservar a integridade do sistema de outra forma.
Não há segurança absoluta. A segurança oferecida pelo Direito se funda sobre a obrigatoriedade de argumentação jurídica que demonstre a preservação da integridade do sistema jurídico, juntamente com um processo justo, no qual esteja assegurada a igualdade entre as partes, o duplo grau de jurisdição, a ampla defesa e o contraditório.
CONCLUSÕES
Direito Constitucional evolui com grande velocidade nesses anos de crise. Podemos dizer que nunca na história a comunicação entre os dois grandes sistemas ocidentais de Direito se fortaleceu com tanta intensidade trazendo contribuições importantes um para o outro como a partir do final do século XX.
A mudança da compreensão do significado do que é Constituição muda a partir de exigências de um mundo dinâmico e complexo. Constituição não é texto e Direito não é regra, e não pode ser assim considerado, sob pena de se tornar obsoleto. É inimaginável a possibilidade de o parlamento acompanhar e prever todas as possíveis situações fáticas decorrentes dos avanços da tecnologia (biomédica, biotecnologia, tecnologia das comunicações, tecnologia da produção entre outras), na vida das pessoas. A vida se mostra muito mais complexa do que a ciência (simplificadora por exigência) e os seres humanos felizmente não se adaptam aos sistemas prontos. Assistimos desmoronar, diante de nossos olhos, os sistemas teóricos econômicos, sociais, políticos construídos durante os séculos XVIII e XIX e implementados nos séculos XIX e XX. Assim vimos morrer a promessa liberal, o socialismo real, nos conformamos ao adiamento do sonho comunista e anarquista, assim como presenciamos propostas que se diziam mais realistas e, portanto, mais tímidas, como a social democracia, o social cristianismo, entrar em crise radical. Assistimos, hoje, a patéticos economistas televisivos, arrogantes e presunçosos, afirmarem que não há salvação fora de suas pobres teorias (daí o caos que vivemos) que mandam no mundo (teorias que transformaram os seres humanos em pouco mais que ratos que reagem a estímulos de consumo e poupança). A economia neoliberal (neoconservadora)[1] se transformou em uma nova religião inquestionável. Felizmente, começa a ser desmascarada e lentamente abandonada.
Diante deste mundo surpreendente, o desafio é perceber sua complexidade, sua diversidade e sua relatividade. Diante disso, uma nova consciência jurídica começa a se expandir. A superação de um legalismo pobre é exigência do nosso tempo. O Direito não pode ser resumido a regra pois não há possibilidade de previsão de regras para solucionar todos os conflitos de um mundo complexo. O Direito principiológico vinculado à história, vinculado ao caso concreto, tornou-se uma exigência democrática. Para compreendermos as origens históricas das reflexões contemporâneas do Direito Constitucional, e como antes das teorizações elas já eram realidades históricas, vamos começar a estudar essa questão pela da compreensão da contribuição do Direito Constitucional inglês e norte-americano para o Direito contemporâneo, que é, nesse sentido, (enquanto método e processo) de grande utilidade para as reflexões do Direito nacional de diversos países do mundo.
Importante lembrar que as teorias enquanto simplificações coerentes sistematizadas do real observado, constroem códigos próprios, que passam a ser instrumentos, não só de compreensão mas também de limitação do campo de compreensão, e, muitas vezes, como exercício de poder de grupos sobre outros grupos. Ou seja, se o conhecimento pode ter o condão de libertar, o conhecimento elitizado, escondido em códigos secretos, ou labirintos lingüísticos, torna-se fator de dominação ideológica, dominação esta fundamental para a legitimação de poderes excludentes.
Simplificando e procurando simplificar a saída do labirinto, podemos pensar que o conhecimento científico, organizado e sistemático, construído sobre bases metodológicas, explica e reorganiza práticas que têm seu método e coerência própria, ou em outras palavras: o conhecimento popular e as práticas sociais não se resumem às manifestações tradicionais não reflexivas, fundamentos religiosos e preconceitos; da mesma forma que a ciência moderna impregnou-se de preconceitos, novas sacralizações e verdades formais arrogantes e pré-potentes. Sem negar um e outro, ou sem escolher um ou o outro, a história pode nos ensinar que por meio de uma racionalização podemos organizar a produção de um conhecimento construído no cotidiano, retirando os preconceitos e tradições não reflexivas do que chamamos “senso comum”, desde que a ciência também não construa preconceitos sofisticados e novas sacralizações para uma nova prática religiosa.
Ou: muitas pessoas em muitos momentos da história acharam que inventaram a roda, e muitos ainda continuam inventando.
Um outro problema decorre destas reflexões e se refletem diretamente no Direito moderno: a crença no individuo como unidade desconectada do entorno, como uma pretensão de soberania de vontade que permanece no tempo e como uma pessoa que permanece essencialmente a mesma. Em outras palavras uma identidade individual permanente. Esta ficção liberal pretende atribuir aos indivíduos criações, construções, invenções, inovações que são construções permanentes. Assim, em algum momento, a partir de uma construção histórica coletiva, alguém chega a um resultado, uma nova teoria, uma descoberta científica, uma inovação tecnológica, uma obra artística, etc. A lógica individualista leva a que esta pessoa se aproprie de anos, décadas, séculos de construção. Assim aprendemos que fulano inventou isto, cicrano descobriu aquilo outro e assim por diante. Essa pretensão nos retira a nossa compreensão de pessoas singulares e coletivas que somos, sempre fruto da vivencia com os outros, assim como recorta processos criativos. Marx não produziu sua teoria do nada, assim como Santos Dumont não partiu do zero para a construção de seu 14 Bis, e assim por diante. Tudo é fruto de processos coletivos de construção permanente, inclusive nós mesmos. A genialidade de alguns de nós, humanos, nos faz visualizar uma espécie de pescador: alguém que sem esforço encontra melodias, pesca sinfonias, e como que uma antena aberta ao universo é capaz de visualizar obras magistrais. Outros de nós são sistematizadores, capazes de captar séculos de construção e sintetizá-los em uma criação útil. Mas o que é fundamental para compreensão do complexo processo de transformação por que passamos, é a percepção de uma dinâmica e complexa unidade de uma história que se constrói permanentemente.
[1] Trabalhamos em outros textos, especialmente nos livros Direito Constitucional Tomo I, II e III, editora Mandamentos, Belo Horizonte, o significado do neoliberalismo hoje, e como os interesses do grande capital financeiro e industrial conservador se escondeu atrás de um discurso pseudo liberal, descontextualizado, que levou milhões de pessoas a seguirem um projeto de destruição do bem-estar social com a perda constante de direitos sociais e econômicos, projeto este representado pelos governos Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso, e que de certa forma não foi totalmente abandonado pelo governo Lula que admite a perda de direitos trabalhistas históricos com a concordância das centrais sindicais.
Professor do mestrado e doutorado da PUC-Minas e da UFMG e Diretor do CEEDE(MG), mestre e doutor em Direito Constitucional, coordenador da pós-graduação da Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais, professor do Mestrado e Doutorado da PUC/MG, Centro Universitário de Barra Mansa (RJ) e UFMG
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JOSé LUIZ QUADROS DE MAGALHãES, . As novas fronteiras do direito e a necessidade de superação do legalismo ainda presente no judiciário brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 nov 2008, 15:34. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/15411/as-novas-fronteiras-do-direito-e-a-necessidade-de-superacao-do-legalismo-ainda-presente-no-judiciario-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
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Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: REBECCA DA SILVA PELLEGRINO PAZ
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