A Lei 11.340, a chamada Lei Maria da Penha, que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar e garantir a integridade física, psíquica, sexual, moral e patrimonial, está sendo alvo das mais ácidas críticas.
A partir da vigência da nova lei, a violência doméstica não guarda correspondência com quaisquer tipos penais. Primeiro é identificado o agir que configura violência doméstica ou familiar contra a mulher (art. 5º): qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. Depois são definidos os espaços onde o agir configura violência doméstica (art. 5ª, incs. I, II e III): no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação de afeto. Finalmente, de modo didático e bastante minucioso, são descritas as condutas que configuram a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
As formas de violência elencadas deixam evidente a ausência de conteúdo exclusivamente criminal no agir do agressor. A simples leitura das hipóteses previstas em lei mostra que nem todas as ações que configuram violência doméstica constituem delitos. Além do mais, as ações descritas, para configurarem violência doméstica, precisam ser perpetradas no âmbito da unidade doméstica ou familiar ou em qualquer relação íntima de afeto.
Assim, é possível afirmar que a Lei Maria da Penha considera violência doméstica as ações que descreve (art. 7º) quando levadas a efeito no âmbito das relações familiares ou afetivas (art. 5). Estas condutas, no entanto, mesmo que sejam reconhecidas como violência doméstica, nem por isso configuram crimes que desencadeiam uma ação penal.
De qualquer modo, mesmo não havendo crime, mas tomando conhecimento a autoridade policial da prática de violência doméstica, deverá tomar as providências determinadas na lei (art. 11): garantir proteção à vítima, encaminhá-la a atendimento médico, conduzi-la a local seguro ou acompanhá-la para retirar seus pertences. Além disso, deverá a polícia proceder ao registro da ocorrência, tomar por termo a representação e remeter a juízo expediente quando a vítima solicitar alguma medida protetiva (art. 12).
Todas estas providências devem ser tomadas diante da denúncia da prática de violência doméstica, ainda que – cabe repetir – o agir do agressor não constitua infração penal que justifique a instauração do inquérito policial. Dita circunstância, no entanto, não afasta o dever da delegacia de polícia tomar as providências determinadas na lei. Isso porque, é a violência doméstica que autoriza a adoção de medidas protetivas, e não exclusivamente o cometimento de algum crime.
Este é o verdadeiro alcance da Lei Maria da Penha. Conceitua a violência doméstica divorciada da prática delitiva e não inibe a concessão das medidas protetivas tanto por parte da autoridade policial como pelo juiz.
Mas há outros avanços significativos. Cabe à autoridade policial, ao proceder o registro da ocorrência, tomar por termo a representação da vítima contra o ofendido. Quando houver necessidade da concessão de medidas protetivas de urgência, o expediente é remetido a juízo no prazo de 48 horas. Independentemente disso, processar-se-á a instauração do inquérito policial a ser encaminhado à Justiça em 10 dias.
Ao juiz cabe adotar não só as medidas requeridas pela vítima ou pelo Ministério Público, também lhe é facultado agir de ofício. Assim, pode determinar o afastamento do agressor e a recondução da ofendida e seus dependentes ao lar; impedir que ele se aproxime da casa, fixando limite mínimo de distância; vedar que se comunique com a família; suspender visitas; encaminhar a mulher e os filhos a abrigos seguros; fixar alimentos provisórios ou provisionais. Além disso, pode adotar medidas outras, como a restituição de bens indevidamente subtraídos da vítima, suspender procuração outorgada ao agressor e proibir temporariamente a venda ou locação de bens comuns. Também o magistrado dispõe da prerrogativa de determinar a inclusão da vítima em programas assistenciais. Quando ela for servidora pública, tem acesso prioritário à remoção ou, se trabalhar na iniciativa privada, é assegurada a manutenção do vínculo empregatício, por até seis meses, se for necessário seu afastamento do local de trabalho.
Mas certamente o maior de todos os avanços foi a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFM), com competência cível e criminal. Claro que o ideal seria que em todas as comarcas fosse instalado um JVDFM e que o juiz, o promotor, o defensor e os servidores fossem capacitados para atuar nessas varas e contassem com uma equipe de atendimento multidisciplinar. Mas, diante da realidade brasileira não há condições de promover o imediato funcionamento dos juizados com essa estrutura em todos os cantos deste país.
Uma coisa é certa, a violência doméstica está fora do âmbito dos Juizados Especiais, e estes não poderão mais apreciar tal matéria. Esta alteração de competência justifica-se, porquanto de modo expresso – e em boa hora – foi afastada a aplicação da Lei 9.099/95 quando o crime é praticado com violência doméstica e familiar contra a mulher.
Muito se tem discutido se a lesão corporal cometida no âmbito doméstico, persiste condicionada à representação, uma vez a Lei dos Juizados Especiais considerou de pequeno potencial ofensivo o delito de lesão leve ou culposa (LJE, art. 88). A doutrina não tem posição uniforme e a jurisprudência vem adotando soluções díspares.
De primeiro cabe atentar que o dispositivo que condicionada o delito de lesões corporais à representação, não se encontra no bojo da Lei, mas entre as disposições finais, onde se situam regras que refogem ao tema objeto da lei. Assim, excluída a incidência da Lei dos Juizados Especiais em sede de violência doméstica, tal não implica no afastamento de disposições de natureza outra que acabou por alterar dispositivo do Código Penal, ainda que não lhe tenha emprestado nova redação.
O propósito da Lei Maria da Penha é dar um basta à violência doméstica, o que nem sempre é alcançado ao perpetuar-se a situação de conflito mediante a instauração de processo criminal, quando já solvidas todas as questões que lhe serviam de causa. Ao depois, subtrair a possibilidade da desistência da representação vai inibir a denúncia por parte da vítima que, ao registrar a ocorrência, não deseja nem se separar do agressor e nem que ele acabe na cadeia. Ela vai em busca de ajuda para que a violência cesse. Obtido este resultado no incidente de aplicação de medida protetiva, nada justifica o prosseguimento da ação penal que se desencadeou quando do registro da ocorrência.
Fora disso, de modo expresso, há referência na Lei Maria da Penha à representação da vítima (LMP, art. 12) e à possibilidade de renúncia à representação em juízo (LMP, art. 16). Assim, mister reconhecer que, logrando o magistrado compor de forma consensual as causas geradoras da violência, mister assegurar à vítima a possibilidade de desistir da representação que havia formalizado na polícia. Para evitar a repetição das desastrosas situações a que as mulheres foram submetidas nos juizados especiais, agora para desistir da representação deve comparecer perante o juiz e o Ministério Público, acompanhada de advogado.
A representação é feita quando do registro da ocorrência, que enseja o desencadeamento do inquérito policial. No entanto, havendo composição perante o juiz, e solvendo-se a situação de conflito entre as partes, impositivo reconhecer a possibilidade de obstar o prosseguimento da demanda penal. Composto o conflito, imperioso garantir à vítima o direito de desistir, pois tal lhe confere poder de barganha. Pela vez primeira o agressor vê a vítima com mais poder do que ele, pois está nas mãos dela a possibilidade de ele responder ou não a processo criminal. Claro que este empoderamento da mulher é importante pois, temendo o prosseguimento da ação o agressor pode fazer concessões à mulher e aos filhos, quer quanto ao valor dos alimentos, quer quanto a partilha de bens.
Apesar destas profundas mudanças, passado um ano de vigência da lei, infelizmente há que se reconhecer que os avanços foram pequenos, até porque a aplicação da lei, em face de sua natureza, exige a criação dos Juizados da Violência e Especial contra a Mulher. Só um juiz especializado pode atentar à dúplice natureza da violência doméstica, a exigir providências muito mais no âmbito do direito das famílias.
Assim, se a atribuição da competência às Varas Criminais buscou marcar o repúdio à forma de como a violência doméstica vinha sendo tratada no âmbito dos Juizados Especiais, a delegação das demandas às varas criminais não lhes concedeu melhor tratamento.
Como aniversários servem para se fazer balanço do que foi feito e planejar o que fazer, este é o melhor momento para se atentar que de nada adiantou a criação da lei, que só conseguirá ser implantada quando da criação dos juizados especializados.
Que esta seja a grande meta até a próximo aniversário.
Só assim teremos o que comemorar!
Advogada especializada em Direito Homoafetivo; Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS; Vice-Presidente Nacional do IBDFAM; Autora de vários livros jurídicos. Sítos: www.mbdias.com.br; www.mariaberenice.com.br; www.direitohomoafetivo.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na Justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 dez 2008, 09:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16174/a-lei-maria-da-penha-na-justica. Acesso em: 23 dez 2024.
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