Sumário: 1. Introdução 2. O reconhecimento da existência da Mutação Constitucional. 3. A Segurança Jurídica. 3.1 A necessidade humana da segurança jurídica. 3.2 O Princípio da Segurança Jurídica em nosso ordenamento Jurídico. 4. A Coisa Julgada no âmbito do Direito Processual Civil. 5. A relativização da coisa julgada material. 6. Conclusão
Resumo: A Constituição Federal de 1988 encontra-se em constante alteração seja em razão das emendas constitucionais, seja em razão da mutação constitucional. Essas alterações são necessárias haja vista que a sociedade brasileira também está em constante modificação, assim é preciso que o nosso ordenamento jurídico continue respondendo aos anseios da sociedade e para isso faz-se necessário essas alterações. Com as alterações na Carta Magna, todas as normas jurídicas infraconstitucionais também sofrerão essas mudanças. Reconhecendo a existência dessas alterações precisamos verificar o que ocorre com a segurança jurídica, já que é considerado um princípio estruturante do Estado Democrático de Direito, um sobreprincípio. Qual a garantia da segurança jurídica prevista em nosso ordenamento jurídico ? Busca-se responder esse questionamento para que possamos falar em “relativização” da coisa julgada. A necessidade da busca da verdade real é essencial para que possamos falar em segurança jurídica e não a mera ficção.
Palavras-Chave: Mutação Constitucional. Princípio da Segurança Jurídica. Coisa Julgada.
Abstract: The Federal Constitution of 1988 is in constant change is a result of constitutional amendments, whether on grounds of constitutional change. These changes are necessary due to the Brazilian company is also constantly changing, so we must continue our legal system responding to the desires of society and for this it is necessary these changes. With the changes in the Magna Carta, all legal standards infraconstitucionais also suffer these changes. Recognizing the existence of these changes we need to verify what happens with certainty, because it is considered a structuring principle of democratic rule of law, a sobreprincípio. What is the guarantee of legal certainty provided for in our legal system? Try to answer this question so we can talk about "relativization" the thing judged. The need to search for the real truth is essential for us to talk about legal certainty and not a mere fiction.
Key Words: Constitutional change. Principle of legal certainty. Thing judged.
O presente trabalho versa sobre a análise da “relativização da coisa julgada”, buscando responder se essa relativização está nos levando a ofender o princípio da segurança jurídica ou se estamos na realidade concretizando esse princípio.
Para tanto se faz necessário analisar o princípio da segurança jurídica, verificando a existência ou não de alteração e/ou mutação constitucional e verificar se a denominada por alguns doutrinadores da relativização da coisa julgada está em conformidade com a nova ordem constitucional ou não.
O processo civil como os demais ramos do direito estão ligados de forma direta com a Constituição Federal. Dessa forma, tudo o que ocorre na Constituição Federal irá atingir o processo civil. Daí a importância de estarmos sempre atualizando o processo, sem necessidade de novas normas, mas somente mediante a interpretação de seus dispositivos em conformidade com a nova interpretação constitucional. Ou seja, diante da mutação constitucional faz-se necessário reler o Código de Processo Civil.
2. O reconhecimento da existência da Mutação Constitucional
A Constituição Federal de 1988 foi um marco histórico, não só pelo momento histórico em que estávamos vivendo, mas também pela sua forma de criação. Só que o que se iniciou com a Assembléia Constituinte de 1987 culminando com a Constituição de 1988 está longe de ser o fim, como um projeto pronto e acabado. Pelo contrário esse foi o marco inicial para que possamos repensar e remodelar todo o ordenamento jurídico.
Com o nascimento dessa nova ordem foi preciso rever, já em 1988 toda a ordem jurídica existente, analisando quais normas tinham sido recepcionadas pela Constituição de 1988 e quais não tinham sido recepcionados.
Nessa primeira leitura realizada, acabou percebendo-se a necessidade de dar uma maior efetividade ao processo civil, gerando assim entre os processualistas um movimento em prol das alterações do Código de Processo Civil. Esse movimento gerou o que denominados hoje de “mini-reforma” do Código de Processo Civil, que acaba sendo um conjunto de normas que estão sendo editadas desde a década de 90 buscando dar mais agilidade e eficiência ao nosso processo civil. Cumpre ressaltar que essa “Mini-reforma” que ainda não foi finalizada.
Mas além dessa reforma formal nos deparamos com uma situação em que todas as normas processuais precisam estar em constante análise. Essa situação decorre de que a Constituição Federal não é estática, o que significa que desde 1988 ela está sofrendo mutações[1][2], que no conceito de Uadi Lammêgo Bulos significa é um “processo informal de mudança das constituições que atribui novos sentidos aos seus preceitos significados e conteúdos dantes não contemplados”[3], ou seja além da forma direta de alteração da norma constitucional que ocorre por meio das emendas constitucionais, nos deparamos com a interpretação que está alterando as normas constitucionais, e como conseqüência toda a estrutura jurídica também está sofrendo essas alterações, atingindo assim de forma direta todos os ramos do direito.
Assim, como as constituições são organismos vivos que estão em constante alteração, acompanhando o evoluir dos diversos segmentos da sociedade, seja político, dentre outros, assim, não há necessidade de sempre alterar de forma expressa a norma constitucional já que conforme a mutação podemos modificar na substância, no seu significado, passando a norma constitucional a ter outro alcance e sentido.[4]
As mutações constitucionais têm como característica básica que elas ocorrem de forma lenta, sendo assim, nesse período de 20 anos da Constituição é que elas foram acontecendo e continuarão a acontecer. Apesar de ser um processo que ocorre de forma lenta, já é possível aos doutrinadores constitucionais analisarem as diversas formas em que pode ocorrer a mutação constitucional, assim conforme a classificação apresentada por Uadi Lammêgo Bulos as mutações podem ocorrer da seguinte forma:
a) Em razão da interpretação da Constituição onde o Judiciário irá conferir novos sentidos, além daquele expresso na norma constitucional. Assim, irá ser alterada a substância, mas não a forma.
b) Em razão da construção constitucional. Ocorre quando o Judiciário irá suprir as deficiências da ordem jurídica.
c) Em razão das praxes constitucionais, onde diante das convenções, usos e costumes podemos alterar o significado e o alcance das normas, sem necessidade de fazer revisões ou emendar a Constituição Federal.
d) Em razão da influência dos grupos de pressão. Diante dessas pressões exercendo influência sobre os Poderes Públicos, pode-se realizar a mutação constitucional[5].
Assim é certo que a mutação constitucional altera o significado das normas constitucionais e, portanto faz-se necessário estar sempre repensando as normas infraconstitucionais para que elas possam se atuar em razão das alterações ocorridas. E em específico as normas processuais.
Reconhecer a existência das mutações é primordial para que possamos fazer toda a releitura do ordenamento jurídico. Dessa forma, a Carta de 1988 já não é mais a mesma de 1988, ela sofreu mutações diversas e assim precisamos analisar como ficaram as diversas garantias ali inseridas e em específico a garantia da estabilidade das relações jurídicas, haja vista que alterando o significado dessa garantia teremos como conseqüência alteração nas normas processuais.
Conforme Rodrigo Klippel é preciso
“olhar a Constituição Federal como um instrumento plural, advindo dos movimentos e pressões sociais econômicas, legitimada pela participação das diversas camadas da sociedade, naturalmente cresceu e tomou corpo um movimento de constitucionalização do direito, ou seja, de estudo do direito infraconstitucional à luz dos princípios e garantias prescritos na Carta Magna. Esse foi o primeiro passo para que se criasse uma postura crítica com relação ao direito infraconstitucional, que passou a ser visto como mais uma peça da engrenagem regida pelo elemento central – a Constituição Federal”[6]
Essa visão é extremamente importante para que possamos atualizar as normas infraconstitucionais, sem necessariamente passar pelo processo legislativo.
Dentre as diversas hipóteses a serem trabalhadas escolhemos analisar a garantia da estabilidade das relações jurídicas, e em específico a garantia da coisa julgada diante das alterações constitucionais e verificar se houve alteração na concepção de coisa julgada ou se ela continua com o mesmo entendimento de antes. E para tanto é preciso olhar a constituição e as normas infraconstitucionais com novos olhos sempre atento a essas mudanças.
3. A Segurança Jurídica
Para que possamos falar em garantia da estabilidade das relações jurídicas faz-se necessário primeiro verificar o porque dessa necessidade.
3.1 A necessidade humana da segurança jurídica
Analisando o ser humano apesar de vivermos em constante necessidade de mudanças, e essas mudanças foram e continuam sendo necessárias para o desenvolvimento do ser humano e da espécie humana, o homem tende a se acomodar. Essa necessidade de acomodação, de estabilidade humana, como não poderia deixar de ser, acaba refletindo em nosso ordenamento jurídico.
A necessidade da segurança jurídica coincide com uma das mais profundas aspirações do ser humano, que é buscar a segurança em si mesma, a de ter certeza das relações que o cerca, a de ter o controle sobre o que acontece. O ser humano está sempre buscando esta estabilidade para poder prever o futuro. O ser humano precisa controlar e para que ele possa controlar é necessário assentar na estabilidade para que possa ser previsível.[7]
Assim, conforme entendimento esposado pelo mestre Canotilho temos que:
O homem necessita de uma certa segurança para conduzir, planificar e conformar autônoma e responsavelmente a sua vida. Por isso, desde cedo se consideraram os princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança como elementos constitutivos do Estado de direito.
Estes dois princípios – segurança jurídica e protecção da confiança – andam estreitamente associados, a ponto de alguns autores considerarem o princípio da protecção da confiança como um subprincípio ou como uma dimensão específica da segurança jurídica.(...)
A segurança e a protecção da confiança exigem, no fundo : (1) fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência dos actos do poder; (2) de forma que em relação a eles o cidadão veja garantida a segurança nas suas disposições pessoais e nos efeitos jurídicos dos seus próprios actos. (...)
O princípio geral da segurança jurídica em sentido amplo (abrangendo, pois, a idéia de protecção da confiança) pode formular-se do seguinte modo: o indivíduo têm do direito poder confiar em que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos, posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas por esses actos jurídicos deixado pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos previstos e prescritos no ordenamento jurídico. (...)
As refracções mais importantes do princípio da segurança jurídica são as seguintes: (...) relativamente a actos jurisdicionais – inalterabilidade do caso julgado[8]
Apesar de termos essa necessidade de estabilidade e segurança a segurança jurídica em termos absolutos é um ideal inatingível. As mudanças jurídicas, que decorrem do interesse de aperfeiçoamento do Direito, criaram um coeficiente natural de insegurança[9].
Essa idéia da necessidade de segurança remonta a tempos históricos e podemos já vislumbrar a defesa da segurança quando Sócrates convidado a fugir de sua prisão e do resultado que lhe esperava – a pena de morte informa que não poderia assim proceder, já que era necessário que os homens bons cumprissem as leis, mesmo elas sendo más ou inadequadas, para assim ser possível que os homens maus pudessem cumprir as leis boas. Essa clássica passagem do filósofo grego demonstra a crença que ele tinha na necessidade da segurança jurídica.
Quando analisamos a segurança jurídica percebemos que para que ela se concretize faz-se necessário um conjunto de princípios e que esses princípios sejam respeitados. Para Paulo Nader[10] podemos classificar esses princípios em três gêneros distintos, vejamos:
a) Os princípios relativos à organização do Estado: O primeiro aspecto a ser considerado na segurança jurídica refere-se a necessidade que o Estado tem de ser estruturado e divido em funções principais entre os seus poderes. Assim cada um dos poderes irá ter uma área de atuação e abrangência expressos na norma constitucional de tal sorte que não irá interferir nos demais. A divisão clássica em poder legislativo, judiciário e executivo reflete essa segurança, já que cada um dos poderes irá atuar dentro de seu limite de competência estipulada pela Carta Magna. Essa forma de atuação, conhecida como sistema de freios e contrapesos, também é conhecido como o Princípio da Separação dos Poderes.
Mas, além de separar os poderes faz-se necessário que cada um deles possuam condições de atuar de forma completa, tendo assim, pessoas capacitadas para exercer essas funções. No caso específico do Poder Judiciário as garantias da inamovibilidade, vitaliciedade e irredutibilidade de subsídios vem a corroborar com essa segurança jurídica, já que os membros do Poder Judiciário irão atuar de forma independente.
b) Princípios Relativos ao Direito, enquanto um conjunto de normas jurídicas: A segunda vertente que se faz necessário é analisar as normas jurídicas do ordenamento jurídico. Assim é preciso:
b.1 Princípio da Positividade do Direito: Por esse princípio temos que é preciso buscar a positivação do direito. Assim, visualiza-se que com a positivação teremos a construção da própria existência do Direito. Essa positivação pode ocorrer por meio de normas codificadas ou por meio das normas costumeiras. O que se precisa é que essas normas efetivamente orientem a conduta social. Com a positivação temos a divulgação do Direito.
b.2 Princípio da Segurança da Orientação: Apesar da positivação do direito e de sua divulgação faz-se necessário ainda atender a mais um princípio que é o da segurança da orientação, isso significa que devemos saber compreender a norma jurídica, para tanto é necessário que atenda os critérios de clareza, simplicidade, univocidade e suficiência. Ou seja, é preciso que as normas sejam escritas de forma clara e simples, tem que ser unívocas, isto é, elas não podem apresentar incoerências ou antinomias e ainda as normas jurídicas precisa ser dotadas de suficiência, onde a ordem jurídica deve ser plena para solucionar quais problemas da vida social.
b.3 Princípio da Irretroatividade das Leis: Por esse princípio temos que as novas leis ao serem criadas deverão respeitar os fatos passados, não devendo lhes atingir. A exceção que temos é quando for para beneficiar o réu, já que a lei nova é mais benéfica então deverá ser aplicada ao réu – processo penal.
b.4 Princípio da Estabilidade Relativa do Direito: Não podemos negar a necessidade de evolução do ordenamento jurídico, já que ele acompanha a evolução da sociedade. Assim faz-se necessário equilibrar duas forças opostas, a necessidade de evolução e a necessidade de se conversar o que já existe, Enquanto que a estabilidade responde aos anseios tanto dos juristas como de todos, também se faz necessário buscar a evolução já que o direito positivo deve acompanhar as mudanças sociais existentes. Sendo a sociedade dinâmica, o direito também precisa ser dinâmico.
c) Princípios Relativos à Aplicação do Direito: Na terceira vertente temos os princípios a que se referem às decisões judiciais, já que deixou de ser simplesmente uma norma jurídica geral e abstrata e se tornou uma norma jurídica individual e concreta. Dentre eles podemos relacionar:
c.1 Princípio da decisão dos casos pendentes e sua execução: Por esse princípio temos que o juiz não poderá deixar de julgar (princípio da indeclinabilidade) e além disso deverá exercer o poder de coerção que tem para executar as suas decisões.
c.2 Princípio da Prévia Calculabilidade da Sentença: Como os elementos das decisões devem ser embasadas na ordem jurídica, então existe a possibilidade de se calcular qual será o resultado. Tal princípio decorre do princípio dispositivo em que o juiz deverá se ater ao que foi alegado e provado pelas partes, bem como pelo princípio da motivação das decisões judiciais em que o juiz deverá demonstrar o raciocínio lógico que desenvolvem para chegar aquele resultado e ainda deverá ser utilizado o princípio da correlação entre a demanda e a sentença, onde o juiz deverá se ater ao que foi pleiteado pela parte autora do processo, sendo-lhe vedado pronunciar uma decisão de forma diferenciada daquilo que foi pedido, nem pode ser além do que foi solicitado e ainda deverá se manifestar a cerca de todos os pedidos formulados.
c.3 Princípio do respeito à coisa julgada: Por esse princípio temos que uma decisão que já transitou em julgado e que não caiba mais recurso, não admite modificação, a não ser nos casos de exceção da ação rescisória. Esse princípio será analisado de forma mais detalhada no item específico.
c.4 Princípio da Uniformidade e Continuidade Jurisprudencial: Por esse princípio temos que as decisões judiciais precisam apresentar uma uniformidade e uma continuidade. Essa busca pela uniformidade é constante e hoje temos o entendimento que determinados processos por serem repetitivos devem ter o mesmo resultado. Assim, cria-se mecanismos para que isso ocorra como a criação de súmulas, súmulas vinculantes, uniformização da jurisprudência e repercussão geral.
Conforme analisado a segurança jurídica se desdobra em diversas vertentes, buscando sempre resguardar o que já temos, mas evoluir em conformidade com a sociedade.
3.2 O Princípio da Segurança Jurídica em nosso ordenamento Jurídico.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello o princípio da segurança jurídica não se encontra somente assentado em normas constitucionais, mas sim ele reflete o Estado Democrático de Direito como um todo, dessa forma faz parte de todo o sistema constitucional. Decorrente então que ele se encontra inserido entre os princípios gerais de Direito, sendo então um dos vetores normativos do sistema jurídico-positivo. Afirma ainda esse ilustre mestre que o princípio da segurança jurídica se não for o mais importante dos princípios deve ser entendido como um dos mais importantes. [11]
Em voto do Ministro Ricardo Lewandowsky, analisando o Mandado de Segurança no. 26.602 do Distrito Federal, de relatoria do Ministro Celso de Mello, assim se manifestou:
Em primeiro lugar cumpre assentar que no ápice da hierarquia axiológica de todas as constituições figuram alguns princípios, explícitos ou implícitos, identificados pelo festejado jurista alemão Otto Bachoff como preceitos de caráter pré-estatal, supralegal ou pré-positivo, que servem de paradigmas às demais normas constitucionais, que não podem afrontá-las sob pena de nulidade. Dentre tais princípio sobressai o “valor” segurança, que alicerça a gênese da própria sociedade. Com efeito, pelo menos desde meados do século XVII, a partir da edição do Leviatã de Thomas Hobbes, incorporou-se à Teoria Política a idéia de que, sem segurança, não pode existir vida social organizada, passando a constituir um dos pilares sobre os quais se assenta o pacto fundante do Estado, inclusive para legitimar o exercício da autoridade.[12]
Traduzindo esse anseio pela estabilidade a nossa Carta Magna consubstanciou essa necessidade inserindo da seguinte forma no art. 5º, XXXVI, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. A doutrina tem se referido a ele como sendo a garantia da estabilidade das relações jurídicas ou o Princípio da Segurança Jurídica. Assim de forma geral “a constituição busca tutelar situações consolidadas no tempo, dando segurança e certeza às relações jurídicas”[13].
Para o ilustre mestre português, J.J. Gomes Canotilho, a segurança jurídica se desenvolve em duas idéias centrais, quais sejam:
a) a estabilidade ou eficácia ex post da segurança jurídica dado que as decisões dos poderes públicos uma vez adoptadas, na forma e procedimento legalmente exigidos, não devem poder ser arbitrariamente modificadas, sendo apenas razoável a alteração das mesmas quando ocorram pressupostos materiais particularmente relevantes; e
b) previsibilidade ou eficácia ex ante do princípio da segurança jurídica que, fundamentalmente, se reconduz à exigência de certeza e calculabilidade, por parte dos cidadãos em relação aos efeitos jurídicos dos actos normativos.[14]
Percebe-se então que para que possamos compreender o referido princípio faz-se necessário levar em considerações as idéias desses diversos juristas, bem como analisar como o referido princípio aparece na nossa Carta Magna, e assim, além da forma expressa mencionada anteriormente, verificamos a existência de mais dois outros enfoques. Cuida-se então de analisar a segurança jurídica como sendo um valor, como sendo um princípio e como sendo um direito fundamental.
Podemos localizar a idéia de segurança jurídica como sendo um princípio no preâmbulo da Carta Magna, bem como podemos encontrá-lo no caput do art. 5º. Nessas duas hipóteses nos deparamos como a segurança de forma expressa, porém é de forma genérica[15].
Já a idéia de segurança jurídica como sendo um valor, já que junto com a justiça elas devem ser analisados como sendo “valores que se completam e se fundamentam reciprocamente: não há Justiça materialmente eficaz se não for assegurado aos cidadãos, concretamente, o direito de ser reconhecido a cada um o que é seu aquilo que, por ser justo, lhe compete”[16]
Com relação a visão da segurança jurídica como sendo um direito fundamental temos a exposição de Evandro Silva de Barros que nos traz que
É necessário lembrar que o texto constitucional ao introduzir a segurança jurídica como um de seus princípios, empreendeu-lhe conotação de direito fundamental, uma vez que detém a função de garantir, tutelar e proteger os direitos conferidos aos sujeitos de direito.[17]
Mas além dessa corrente que visualiza a segurança jurídica como se desdobrando em valor, princípio e direito fundamental, outros doutrinadores defendem que se trata de uma garantia constitucional e outros defendem que se trata de um superprincípio ou um sobreprincípio. Assim, a nossa doutrina não é unânime na compreensão do que vem a ser a segurança jurídica, mas entre os doutrinadores podemos perceber o grau de relevância que esse tema apresenta.
Conforme analisado anteriormente podemos verificar a segurança jurídica em diversos aspectos de nossa Carta Magna, mas para o presente trabalho iremos nos ater ao inciso no art. 5º, XXXVI, “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada” e para compreender esse inciso precisamos decompor o seu significado observando que lei deve ser aqui compreendida como sendo tanto no sentido formal quanto no sentido material. Dessa forma temos que lei deve compreender todos os atos previstos pelo art. 59 da Constituição Federal[18].
Cumpre ressaltar que o presente trabalho irá focar exclusivamente na análise da coisa julgada, apesar desse inciso apresentar três formas de garantia constitucional. E para compreender o que vem a ser exatamente esse inciso constitucional e a garantia que ele nos traz precisamos buscar na norma infraconstitucional e em sua interpretação o que significa esses conceitos inseridos no âmbito constitucional.
Já que se faz necessário buscar o conceito do que vem a ser coisa julgada iremos analisar o que a norma infraconstitucional nos traz para auxiliar nessa empreitada. E quando nos deparamos com o § 3º, do art. 6º da Lei de Introdução do Código Civil, verificamos a existência de uma norma infraconstitucional que se preocupa em conceituar o que vem a ser a coisa julgada, dessa forma temos que:
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.[19]
Analisando de forma detida a previsão constante na LICC coisa julgada refere-se à decisão judicial que já não mais admite recurso. Analisando o inciso XXXVI do art. 5º a nossa corte suprema remete ao conceito expresso na Lei de Introdução ao Código Civil, tendo assim o Supremo Tribunal Federal se manifestado:
A coisa julgada a que se refere o art., XXXVI, da Carta Magna é, como conceitua o § 3º, do art. 6º da Lei de Introdução do Código Civil, a decisão judicial de que não caiba mais recurso, e não a denominada coisa julgada administrativa[20]
Ao fazer suas considerações a cerca do presente artigo Vitor Frederico Kümpel se posiciona no sentido de que se trata de
um princípio jurídico-positivo equiparando a sentença ou decisão final a uma norma inter partes cuja validade e eficácia não poderão ser alteradas nem por norma superveniente nem por sentença posterior, implicando presunção juris et de jure (absoluta) de inalterabilidade, gerando força vinculante entre as partes.[21]
Diante dessa posição entendemos que a coisa julgada irá gerar a segurança às relações jurídicas na medida em que elimina de forma absoluta a lide existente. Porém, convém ressaltar que solucionar a lide que é o conflito intersubjetivo qualificado por uma pretensão resistida é um dos escopos da jurisdição, mas não o único, hoje adotamos a teoria da instrumentalidade positiva da jurisdição, sendo assim a jurisdição apresenta três objetivos distintos, que são o escopo jurídico, o escopo político e o escopo social.
Mas esse entendimento nem sempre foi assim, já que para os romanos a coisa julgada é
...O bem da vida que o autor deduziu em juízo (res in iudicium deducta) com a afirmação de que uma vontade concreta da lei o garante a seu favor ou nega ao réu, depois que o juiz o reconheceu ou desconheceu com a sentença de recebimento ou de rejeição da demanda, converte-se em coisa julgada (res iudicata). A res iudicata outra coisa não é para os romanos do que a res in iudicium deducta depois que foi iudicata.[22]
A Lei de Introdução ao Código Civil pela sua natureza assume um caráter genérico e deixou de especificar as formas de coisa julgada que nós temos, dessa forma, precisamos analisar de forma mais detalhada como se apresenta no âmbito processo civil.
Ocorre que a idéia de segurança jurídica “é multifacetado, desdobrando-se em vários segmentos ou sub-princípios que ampliam a margem de sua compreensão, de maneira que assume aspectos e contornos diversos específicos conforme o ramo do direito”.[23] Faz-se essencial analisar esse princípio sob a ótica da coisa julgada no ramo específico do direito processual civil.
4. A Coisa Julgada no âmbito do Direito Processual Civil
Para podermos analisar a coisa julgada faz-se necessário compreendermos alguns aspectos essenciais a serem analisados a seguir.
4.1 Conceituação da Coisa Julgada
A compreensão do conceito de coisa julgada é fundamental para a compreensão do problema ora em análise, ocorre porém, que apesar de buscar esse conceito a doutrina ela não se apresenta pacificada, assim temos:
Para Chiovenda[24] a coisa julgada é o status da relação jurídica após ser julgada trata-se da concepção material de origem romana.
Para Carnelutti[25] a coisa julgada refere-se à eficácia geral da sentença, ou seja da imperatividade.
Para Liebman[26] a coisa julgada como sendo uma qualidade do conteúdo e dos efeitos da sentença.
Além da divergência doutrinária a LICC, no seu art. 6o, § 3o identifica a coisa julgada com a própria sentença, ou seja aponta um novo conceito para coisa julgada.
Como se não bastasse essas as divergências apresentadas temos que são diversas as expressões utilizadas para designar a coisa julgada, tais como: res iudicata, coisa julgada material, coisa julgada substancial, autoridade da coisa julgada e autoridade da coisa julgada. Assim todas essas expressões servem para designar a coisa julgada e têm como significado a idéia de imutabilidade do comando decisório de um pronunciamento judicial de mérito[27].
Quando verificamos a evolução histórica do entendimento do que vem a ser a coisa julgada então no primeiro momento nos deparamos com a conceituação romana que adotava a concepção materialista defendendo assim, que a coisa julgada referia-se a própria decisão judicial proferida na lide.
Com o passar do tempo, essa concepção romana foi substituída pela teoria processual da coisa julgada que visualizava que a coisa julgada é na realidade, uma força, uma autoridade da decisão. Dessa forma, a coisa julgada não é a própria decisão, mas sim uma característica da decisão que é a imutabilidade.
Com Liebman esse entendimento sofreu alterações, assim, esse jurista italiano nos traz que a coisa julgada material é a qualidade da imutabilidade do conteúdo e dos efeitos de uma decisão judicial de mérito, uma vez que se esgotarem todos os recursos cabíveis.[28]
O nosso artigo 467 do Código de Processo Civil em um primeiro momento nos leva a acreditar que Alfredo Buzaid não adotou a teoria de Liebman em seu anteprojeto. Ocorre que no texto original a teoria de Liebman encontra-se de forma expressa, mas em razão das alterações sofridas pelo projeto em seu percurso, ao final, acabou trazendo a redação que pode gerar dúvidas, mas a doutrina majoritária, não se fez de acanhada e manteve a interpretação conforme previsto inicialmente. Porém, essa posição não é aceita por todos os doutrinadores, sendo que Barbosa Moreira diverge dessa idéia se posicionando no sentido de que não é possível que a coisa julgada possa imutabilizar esses efeitos.[29]
4.2 Espécies de Coisa Julgada
Apesar da Lei de Introdução ao Código Civil não ter feito a distinção entre coisa julgada formal e coisa julgada material, existe essas duas espécies de coisa julgada.
a) Coisa julgada formal: A coisa julgada formal refere-se assim da impossibilidade de discussão do tema no mesmo processo em que foi proferida a decisão transitada em julgado. A coisa julgada formal faz com que não será mais possível nenhum outro julgamento no bojo do processo em que ocorreu o trânsito em julgado. O trânsito em julgado significa que a decisão atingiu a característica de imutabilidade.
b) Coisa Julgada Material: Enquanto que no caso da coisa julgada material refere-se a impossibilidade de reexame da matéria em qualquer outro processo. Ocorre quando não mais é possível discutir e modificar o preceito contido na sentença de mérito. São aquelas decisões que foram analisadas sob o aspecto do art. 269 do Código de Processo Civil.
Para Pontes de Miranda a distinção apresenta-se da seguinte forma:
A coisa julgada é formal quando não mais se pode discutir no processo o que se decidiu. A coisa julgada material é a que impede discutir-se, noutro processo, o que se decidiu.
Para Leo Van Holthe temos que
Coisa julgada é a decisão judicial imutável e indiscutível (coisa julgada material), da qual não cabe mais recurso (coisa julgada formal). Assim, o princípio da segurança jurídica impede que uma lei nova desfaça ou anule uma segurança jurídica transitada em julgado.[30]
O Código de Processo Civil nos traz um conceito de coisa julgada material
Art. 467 Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.
Quando analisados no nosso sistema processual percebemos que algumas situações são insuscetíveis de coisa julgada material. Dentre essas situações podemos exemplificar como por exemplo a sentença terminativa, a jurisdição voluntário, o processo cautelar, a sentença com impossibilidade material e a sentença com impossibilidade jurídico-constitucional.
Não há que se falar em coisa julgada material diante de uma sentença terminativa já que se trata de uma decisão processual que extingue o processo sem resolução do mérito, não extinguindo assim o direito de ação.
Também não há que se falar em coisa julgada material quando nos deparamos com uma sentença com impossibilidade material. É o caso da ação de investigação de paternidade, quando descobrindo o verdadeiro pai, não há como se manter a decisão anterior. Nesse caso estaríamos ofendendo valores ético-morais ou valores socialmente relevantes.
Diante da jurisdição voluntária não há que se falar em coisa julgada material onde embora haja um objeto as decisões podem ser modificadas em razão de decisão superveniente, por exemplo a ação de separação consensual apesar de ter sido homologada pode ser reatado o casamento e essa homologação ser revista.
No caso do processo cautelar também não há que se falar em coisa julgada material haja vista que o se pretende é instrumentalizar um processo, para poder ajuizar, ou em razão de um ajuizamento do processo principal.
No caso da sentença com impossibilidade jurídico-constitucional, diante dessa situação também não há que se falar em coisa julgada material já que a decisão proferida foi assentada em norma inconstitucional.
Como verificado então não é somente nessa última hipótese em que se fala que não será possível ter os efeitos da coisa julgada material.
5. A relativização da coisa julgada material
Apesar de atualmente estar em discussão a chamada relativização da coisa julgada, esse tema não é novo entre os nossos juristas e podemos buscar em Pontes de Miranda uma afirmativa de que as sentenças poderiam ser consideradas nulas e inexistentes dispensando assim até mesmo a necessidade de ingressar com uma ação rescisória, já que a sentença nula não tem necessidade de ser rescindida, sendo possível ao juiz que proferiu a sentença desconstitui-la de ofício[31]. Para ele existia a possibilidade de ter uma sentença nula de pleno direito podendo ser por vício formal ou ainda por afrontar a ordem jurídica nacional, sendo assim objeto de uma nova ação sem o obstáculo da coisa julgada material que foi formada diante da referida sentença nula.[32]
O nosso ordenamento jurídico já apresenta situações em que a coisa julgada material pode ser relativizada assim não se há de alegar ofensa à segurança jurídica diante de uma sentença terminativa ou diante de um processo cautelar ou da jurisdição voluntária, nessas três hipóteses o que temos é o aspecto processual sendo analisado e assim o aspecto do direito material sendo deixado de lado.
Com relação específica à coisa julgada na visão de Uadi Lammêgo Bulos, “há a presunção absoluta de que o direito foi aplicado corretamente ao caso subjudice”.[33] Mas e se isso não aconteceu ?
Quando atacamos a coisa julgada material referindo-se a sentença com impossibilidade material ou com impossibilidade jurídico-constitucional estamos diante de uma grande discussão jurídica, já que afeta de forma direta o “direito” propriamente dito.
No caso específico da sentença com impossibilidade material que decorre dos valores éticos e sociais, a reação não é assim tão forte já que diante da presença do pai verdadeiro, não se deve manter uma situação em que o pai “da ação” não reconhecia como seu aquele filho. A sociedade brasileira consegue aceitar essa situação de forma tranqüila, apesar de ter modificado uma decisão judicial já transitada em julgada, não há que ser mantida aquela paternidade já que ela não é a real. Busca-se assim a prevalência da verdade real sobre os direitos indisponíveis. O processo é analisado como uma forma de se fazer justiça, de se buscar justiça, e não meramente aplicar a norma[34]. É a predominância do Princípio da Verdade Real sendo utilizada no processo civil.
CIVIL E PROCESSO CIVIL. FAMÍLIA. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. COISA JULGADA. REGISTRO PÚBLICO. 1. A busca da verdade há de se confundir com a busca da evolução humana, sem pejo e sem preconceitos. Não tem sentido que as decisões judiciais possam ainda fazer do quadrado, redondo, e do branco, preto. Nesse descortino, a evolução dos recursos científicos colocados à disposição justificam a possibilidade de se rediscutir a paternidade, pois ilógica toda uma seqüência de parentesco e sucessão com origem sujeita a questionamentos. Por outro lado, imperativo que os registros públicos traduzam a efetiva realidade das coisas, sempre havendo tempo e infindáveis razões para que a verdade prevaleça ou seja restabelecida. 2. A "coisa julgada" não pode servir para coroar o engodo e a mentira. O caráter de imprescritibilidade e de indisponibilidade da investigatória revela-se incompatível com qualquer restrição decorrente da coisa julgada. O interesse público, no caso, prevalece em face do interesse particular ou da estabilidade das decisões judiciais. 3. Apelo improvido. Unânime. (TJDFT. Apelação Cível 4640097/DF, 1ª Turma Cível. Rel. Desembargador Valter Xavier. Publicado no DJU 23/04/1998).
A possibilidade que temos de interpretar dessa forma decorre do entendimento do conceito de família, do princípio da dignidade da pessoa humana e a importância que se é atribuído a esse princípio, coisa que não ocorria em 1988, no momento do nascimento da atual Constituição Federal.
mudou a época, mudaram os costumes, transformou-se o tempo, redefinindo valores e conceituando o contexto familiar de forma mais ampla que, com clarividência, pôs, o constituinte de modo a mais abrangente, no texto da nova Carta. E nesse novo tempo não deve o Poder Judiciário, ao qual incumbe a composição dos litígios com olhos na realização da justiuça limitar-se à aceitação de conceitos pretéritos que não se ajustam à modernidade[35]
Verifica-se assim que quando estamos diante dessa situação a doutrina e a jurisprudência tem se manifestado no sentido contrário em se manter uma situação que não é real. Cumpre ressaltar ainda que encontra-se tramitando no Congresso Nacional um projeto de lei cujo objetivo é deixar claro que diante das ações relativas à paternidade não há que se falar em coisa julgada material.
Localizamos outra situação em nosso ordenamento jurídico em que existe uma feroz discussão doutrinária no sentido de se modificar ou não uma sentença com impossibilidade jurídico-constitucional a tão falada “relativização da coisa julgada”.
Essa discussão nasceu da alteração do Código de Processo Civil em que prevê de forma expressa que diante da inexigibilidade do título judicial que foi fundamentado em lei ou em ato normativo que foram declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal ou ainda quando a aplicação ou interpretação da lei ou de ato normativo foram considerados pelo Supremo como sendo incompatíveis com a Constituição Federal[36]
O ideal é que a decisão não tivesse sido embasada em uma lei que foi considerada inconstitucional, mas não vivemos no mundo ideal e dentro de nossa realidade precisamos verificar o que se pretende efetivamente resguardar.
Caso a decisão tenha sido embasada em uma lei inconstitucional manter essa decisão, mesmo com o trânsito em julgado e tendo feito cousa julgada material, é manter a segurança jurídica ou é ofendê-la ?
Enquanto vivemos uma vida de aparências, tornar o falso verdadeiro e se acostumar com o falso sendo verdadeiro poderemos então entender que a segurança jurídica está sendo realizada e querer modificar essa ilusão seria uma ofensa.
Desta forma, defende-se que a segurança jurídica pressupõem que para que se possa falar em coisa julgada material deve-se primeiro ter certeza de que o resultado fez realmente coisa julgada material.
Em outras palavras, quando nos depararmos com uma decisão que a lei ou o ato normativo que venha a ser considerado inconstitucional, como poderemos manter uma situação de falsa realidade, uma falsa segurança jurídica.
O nosso ordenamento jurídico alterado pela Constituição Federal e suas mutações vêm demonstrando que não se quer mais viver da verdade formal, mas que se busca a verdade real. Se mantivermos a coisa julgada material estaremos desprezando então a afronta que existe à constituição federal o que não pode ocorrer.
Para Jorge Miranda, jurista português, temos que
O princípio da intangibilidade do caso julgado não é um princípio absoluto, devendo ser conjugado com outros e pode sofrer restrições. Eke tem de ser apercebido no contexto global[37]
Cândido Rangel Dinamarco de forma brilhante expressa a sua posição quando afirma que
A ordem constitucional não tolera que se eternizem injustiças a pretexto de não eternizar litígios. (...) a linha proposta não vai ao ponto insensato de minar imprudentemente a auctoritas rei judicatae ou transgredir sistematicamente o que a seu respeito assegura a Constituição Federal e dispõe a lei. Propõe-se apenas um trato extraordinário destinado a situações extraordinárias com o objetivo de afastar absurdos, injustiças flagrantes, fraudes e infrações à Constituição – com a consciência de que providências destinadas a esse objetivo devem ser tão excepcionais quanto à ocorrência desses graves inconvenientes. Não me move o intuito de propor uma insensata inversão, para que a garantia passasse a operar em casos raros e a sua infringência se tornasse a regra geral[38]
Assim, não há que se falar em ofensa à segurança jurídica, mas sim uma das formas de manutenção da segurança jurídica, já que não se almeja que a segurança jurídica seja embasada em uma situação que não é real e ainda que afronta a Constituição Federal.
Deve-se perceber inclusive que somente se pode pensar que ocorreu a coisa julgada material quando o processo em que ela ocorreu foi embasada em normas constitucionais e não tendo como fundamentação a decisão uma lei considerada inconstitucional.
6. Conclusão
A necessidade da segurança jurídica é fundamental para o ser humano e durante certo tempo aceitamos que diante de uma decisão transitada em julgada que não cabia mais recurso, não adiantava mais questionar ou esperar que algo viesse a modificar essa situação.
Mas com o passar do tempo, entende-se que essa ficção criada para dar uma falsa noção de segurança jurídica, foi sendo desconstruída na medida em que não podemos conviver com essas criações e tornar o irreal em real.
Percebendo que a segurança jurídica “aparente”, nada mais fazia do que mascarar a realidade, o nosso ordenamento começa a verificar a possibilidade de rever essas situações em que não estão de acordo com a realidade. Não queremos mais transformar o “branco em preto ou o preto em branco”, mas queremos estar em consonância com o que realmente é a verdade. A busca pela verdade real perpassa então o universo dos fatos e passa a analisar aquelas normas constitucionais declaradas inconstitucionais.
Não podemos ofender o universo jurídico permitindo que normas declaradas inconstitucionais venham a surtir efeitos desestabilizando assim a segurança jurídica que tanto almejamos.
É inconcebível que uma afronta constitucional continue gerando conseqüências, assim, essa decisão que fez coisa julgada material que se encontra assentada na norma inconstitucional é inconcebível de continuar produzindo efeitos, de gerar conseqüências na ordem nacional.
Manter a coisa julgada material estando ela assente em uma lei inconstitucional é ofender a ordem e a segurança jurídica. Essa ofensa decorre de que o que se busca com a segurança jurídica é a garantia das relações jurídicas, mas desde que elas estejam conforme a norma jurídica e em específico com a norma constitucional. Porém, aceitar a manutenção dessa coisa julgada material embasada em lei inconstitucional é ofender o princípio da segurança jurídica e com isso ofender um princípio constitucional.
Assim é uma garantia constitucional que temos de que a segurança jurídica a ser mantida é aquela que é embasada em leis constitucionais e não em normas inconstitucionais. Ou seja parte-se do pressuposto de que para que haja realmente a coisa julgada material é preciso que não apresente nenhum vício ou nenhuma afronta à norma constitucional.
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[1] A mutação pode ser classificada tanto em constitucional quanto em inconstitucional.
[2] A expressão “mutação constitucional” não é uma terminologia única, sendo que no âmbito constitucional existem diversas expressões para designar essa idéia, tais como processos indiretos, processos não formais, processos de fato e mudança material. Com o intuito de padronizar o presente texto iremos utilizar somente a expressão mutação constitucional.
[3] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, 2ª. edição,321.
[4] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, 2ª edição, 321.
[5] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, 2ª edição, 322-324.
[6] KLIPPEL, Rodrigo. A coisa julgada e sua impugnação – relativização da coisa julgada. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2008, p. 2.
[7] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2002, p. 106.
[8] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Portugal: Livraria Almedina, 2003, p. 257.
[9] SICHES, Recaséns Nueva Filosofia de La interpretacion Del derecho. México: Editorial Porrua, 1973, p. 294 apud NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 121.
[10] NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 122-128.
[11] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 2002, p. 104-105.
[12] BRASIL: Supremo Tribunal Federal. MS 26602. Rel. Ministro Celso de Mello. Voto de Ricardo Lewandowsky. In SHUCHT, Larissa. O princípio da segurança jurídica num estado democrático de direito frente à hermenêutica constitucional. Disponível em http://www.iuspedia.com.br.23fev.2008. acesso em 20 de setembro de 2008.
[13] CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito Constitucional – Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2007, p.641-642.
[14] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Portugal: Livraria Almedina, 2003, p. 264.
[15] BARROS, Evandro da Silva. Coisa Julgada Inconstitucional e Limitação temporal para a propositura da ação rescisória. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 12, n. 47. Abril-junho, 2004, 55-57.
[16] SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Segurança Jurídica e Jurisprudência. São Paulo: Editora LTr, 1996, p 17-18.
[17] BARROS, Evandro da Silva. Coisa Julgada Inconstitucional e Limitação temporal para a propositura da ação rescisória. Revista de Direito Constitucional e Internacional. Ano 12, n. 47. Abril-junho, 2004, 85.
[18]Entendimento esse também adotado pelo STF no julgamento da ADIn 3.105-8/DF: “Quando a Constituição emite o discurso de que ´a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada ´(...) ela está dizendo direito/lei, qualquer ato da ordem normativa constante no art. 59 da Constituição”
[19] BRASIL: LICC – Decreto-Lei no. 4.657/1942.
[20] BRASIL: Supremo Tribunal Federal. RE 144.996 Rel. Min. Moreira Alves, DJ 12/09/1997.
[21] Kümpel, Vitor Frederico. Introdução ao estudo do direito – Lei de introdução ao Código Civil e Hermenêutica Jurídica. São Paulo: Editora Método, 2007, p. 151.
[22] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil vol.I. Os conceitos fundamentais, p. 369.
[23] SIQUEIRA, Cláudio Drewes José de. Segurança jurídica no direito tributário. Revista de Estudos Tributários. São Paulo: Editora Síntese, n. 32, julho/agosto, 2003, p. 140.
[24] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de direito processual civil. São Paulo: Editora Bookseller, 2000, v. 1, p. 446.
[25] CARNELUTTI, Francesco. Sistema de direito processual civil. São Paulo: Editora Classicbook, 2000, v. 1, p. 412.
[26] LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1984, p. 54.
[27] KLIPPEL, Rodrigo. A coisa julgada e sua impugnação: Relativização da coisa julgada. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Juris, 2008, p. 20.
[28] LIEBMAN, Enrico Tullio. Eficácia e autoridade da sentença Rio de Janeiro: Editora Forense, 1984, p. 50.
[29] BARBOSA Moreira, José Carlos. Eficácia da sentença e autoridade da coisa julgada. In Temas de direito processual – terceira série. São Paulo: Editora Saraiva, 2008,113.
[30] HOLTHE, Leo Van. Direito Constitucional. Bahia: Editora Juspodivm, 2008, p. 340.
[31] PONTES DE MIRANDA. Tratado da Ação rescisória das sentenças e outras decisões. 5ª. edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976, p. 194.
[32] PONTES DE MIRANDA. Tratado da Ação rescisória das sentenças e outras decisões. 5ª. edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1976, p. 259.
[33] BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Editora Saraiva, 2008, 2ª. edição, 492.
[34] BRASIL: Superior Tribunal de Justiça. REsp 4987/RJ, Min Relator Sálvio de Figueiredo Teixeira, publicado no DOU 28/10/91: “na fase atual da evolução do Direito de Família é injustificável o fetichismo de normas ultrapassadas em detrimento da verdade real, sobretudo em prejuízo de legítimos interesses de menor. Deve-se ensejar a produção de provas sempre que ela se apresentar imprescindível à boa realização da justiça”.
[35] STJ, AC 3ª. Turma, j. 03/04/90, Rel. Min. Waldemar Zveiter In FARIAS, Cristiano Chaves. Um alento ao futuro: novo tratamento da coisa julgada nas ações relativas à filiação. In Relativização da Coisa Julgada – Enfoque Crítico. Coordenação Fredie Didier Jr.. Bahia: Editora Juspodivm, 2008, 2ª Edição, PP.65-81.
[36] Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre:
II – inexigibilidade do título;
§ 1o Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. (Incluído pela Lei nº 11.232, de 2005)
[37] NASCIMENTO, Carlos Valder. (Coord.) Coisa Julgada Inconstitucional. 2ª Ed. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2003, p. 139.
[38] DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material in Coisa Julgada Inconstitucional. Rio de Janeiro: editora América Jurídica, 2003, p. 33-34.
Advogada. Mestre em Direito pela UFPE. Professora na Graduação e na Pós-graduação de disciplinas tais como: Teoria Geral do Processo, Direito Processual, Introdução ao Estudo do Direito, dentre outras. Ex-Diretora do Curso de Direito da Universidade Católica de Brasília
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RENATA MALTA VILAS-BôAS, . Repensando o Processo Civil em face da Constituição de 1988: "Relativização" da Coisa julgada - Ofensa à Segurança Jurídica ou uma Garantia Constitucional? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 dez 2008, 00:29. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16196/repensando-o-processo-civil-em-face-da-constituicao-de-1988-quot-relativizacao-quot-da-coisa-julgada-ofensa-a-seguranca-juridica-ou-uma-garantia-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: Roberto Rodrigues de Morais
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