Sumário: 1. Introdução. 2. Estrutura jurídica. 2.1. Conduta e resultado de perigo. 2.2. Perigo direto e iminente. 2.3. Dolo de perigo. 2.4. Novos delitos 2.5. Princípio da subsidiariedade. 2.6. Aumento de pena. 3. Divergências interpretativas. 4. Visão crítico-metodológica.
Introdução.
Por sua generalidade e amplitude, e porque preservado, em sua pureza, de nenhum resquício de dano, nem mesmo sob forma qualificada, o crime do art. 132 do Código Penal em vigor constitui o protótipo e paradigma de um delito tipicamente de perigo. Merece, pois, uma atenção especial, pelo fato de fornecer subsídios didáticos para a compreensão dos demais delitos de sua categoria.
Eis o texto legal:
Art. 132 — Expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente:
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, se o fato não constitui crime mais grave.
Parágrafo único. A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço) se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais (Parágrafo único: Lei n° 9.777, de 29 de dezembro de 1998).
Vejamos algumas características de sua estrutura jurídica.
2. Estrutura jurídica
2.1. Conduta e resultado de perigo.
Comete-se o delito em análise quando se expõe a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente. A conduta é a de “expor”, mais precisamente, a de “expor a vida ou a saúde de outrem” a um determinado resultado, qual seja, “perigo direto e iminente”. Trata-se, portanto, de perigo individual, isto é, perigo limitado a alguém, a alguma pessoa, distinto do perigo comum ou coletivo, concernente a um número difuso e indeterminado de vítimas.
Exsurge assim do texto legal uma importante informação acerca dos bens jurídicos tutelados: a vida ou a saúde de outrem, nada mais. Conclui-se que não basta o perigo de lesão a toda e qualquer parte do corpo humano. A lesão teria que afetar a vida ou a saúde de outrem, ficando excluída a tipicidade se o risco se prende a partes destacáveis do organismo. O corte das unhas e dos cabelos, por exemplo, longe de ofender a saúde, é recomendado como regra de higiene. E ainda que se fale, corretamente, em cabelos e unhas “saudáveis”, o fato é que no art. 129 o Código Penal menciona expressamente, além da saúde, a integridade corporal. Pelo método lógico-sistemático descobre-se que o legislador restringiu o alcance do dispositivo (art. 132).
E com razão. Há, no crime do art. 132, dolo e resultado de perigo. E este – o perigo – não alcança “dignidade” jurídico-penal se denota, por si mesmo, relevo e conteúdo insignificantes.
Vale o raciocínio, desta feita, para o próprio “perigo” à saúde, mas de natureza mínima. O perigo circunscrito, por exemplo, à probabilidade de pequena lesão na pele (escoriação, equimose superficial) deixa de caracterizar o crime exatamente por sua insignificância. A pena mínima de 3 meses de detenção não comporta dúvida quanto à exigência de um certo grau de perigo, compatível, pois, com a natureza delituosa da conduta preconizada. Como lembra Carlos Vico Mañas, todo juízo de tipicidade há que “ser entendido, na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo”. E continua: “Por isso, dando validade sistemática à conclusão político-criminal de que o direito penal não se deve ocupar de bagatelas, é possível considerar materialmente atípicas as condutas lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade” (O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal, 1994, p. 80).
A Exposição de Motivos reforça o entendimento acima: refere-se a uma vítima exposta a “grave perigo” (grifei).
Em compensação, deve-se levar em conta a saúde em sentido amplo: saúde física, orgânica e mental.
Trata-se de crime comum. E de forma livre. Qualquer pessoa pode cometê-lo, seja por ação, seja por omissão. É preciso, no entanto, atentar-se para a regra da especialidade. Se conduta e resultado correspondem à estrutura jurídica de outro crime de perigo, individual ou coletivo, é este que prevalece, em detrimento do crime em análise, que tem caráter genérico.
2.2. Perigo direto e iminente
O que significa, na hipótese, “expor”? Não há muito segredo. Expor significa, de início, “dar causa”, “provocar”, “submeter”. Com mais clareza, ensejar uma situação de perigo.
Que espécie de perigo? Um perigo atual ou, pelo menos, um perigo muito próximo, um perigo que já está surgindo (iminente). Mais: um perigo direto, ou seja, imediatamente vinculado à vítima. As duas expressões da lei (direto e iminente) devem ser entendidas dialeticamente, como que formando uma unidade explicativa da natureza do crime. Um perigo iminente, mas indireto, não é o bastante; um perigo direto, mas não iminente, também se mostra atípico. Se dirijo meu carro com excesso de velocidade e coloco em risco a vida de uma criança que atravessa a rua, sob os olhares atônitos de seu pai, um cardiopata, meu delito se limita ao infante (perigo direto e, além disso, iminente). A par da inexistência de dolo, registre-se que o perigo à saúde do pai, ainda que iminente, não se passa de modo direto, mas através da criança, deixando assim de caracterizar, em sua plenitude, o tipo do art. 132.
A identificação do crime implica, destarte, um juízo lógico de probabilidade de lesão à vida ou saúde de outrem, que sofre pessoalmente, e de modo concreto, o resultado de perigo imanente à conduta do sujeito ativo. Em resumo, a simples possibilidade de perigo (perigo remoto), ainda que direto, não constitui resultado bastante para a existência do delito. E o perigo iminente, mas indireto, deixa igualmente de caracterizá-lo.
2.3. Dolo de perigo
Trata-se, além disso, de crime doloso. Nenhuma dúvida quanto a isso, diante da clareza do sistema normativo (CP, art. 18, parágrafo único). E nenhuma dúvida, igualmente, no que concerne à natureza desse dolo, que é de perigo, e perigo individual. Não basta a culpa em sentido estrito. Se o motorista do automóvel, por desatenção, não percebe o sinal vermelho e quase mata o pedestre, mas sem atingi-lo, deixa de praticar qualquer delito.
Diz-se o crime doloso, nos termos do Código, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo (art. 18, I). Inevitável, assim, que o agente, com sua conduta, queira o perigo ou assuma o risco de produzi-lo. Nada mais, nada menos. No mais, haveria outro crime, de dano; no menos, delito algum.
Exemplos: em via privada, detonar o revólver contra os pneus de um automóvel em movimento, havendo pessoas em seu interior; no meio de uma floresta, atirar na direção de alguém para assustá-lo e, assim, livrar-se da prisão em flagrante; negar a seu empregado, na construção de um edifício, indispensável equipamento de segurança pessoal, provocando-lhe situação concreta de perigo (vigas ou pedras a cair por perto; andaime sem proteção, prestes a arrebentar etc.); atravessar, como pedestre, em local proibido, uma via movimentada de trânsito rápido, a ponto de forçar motorista de automóvel a desviar para o calçamento, quase atropelando a terceiros; com um passageiro a bordo, dirigir conscientemente o veículo em visível excesso de velocidade, inclusive numa curva, que aponta, sem proteção, para um precipício; “furar” o sinal vermelho, aceitando a hipótese, que ocorre, de quase atropelar um transeunte, a transitar ironicamente na faixa de segurança; numa rodovia, abstraído o dolo eventual de dano, fazer ultrapassagem proibida (faixa dupla), obrigando propositadamente o motorista do outro veículo a invadir o acostamento, sob pena de choque inevitável.
Em todos esses exemplos fica subentendido que o agente, mais do que a simples consciência ou percepção da probabilidade de perigo, quer ou assume o risco desse resultado (o perigo). Daí, no plano teórico, a subsistência da tentativa (art. 132 c/c art. 14,II ). É notória, porém, a dificuldade prática (e desinteresse) de enquadramento jurídico-penal, podendo então cogitar-se, nas circunstâncias, se for o caso, de contravenção ou infração de ordem administrativa, hipóteses que podem igualmente subsistir na falta de algum outro requisito do crime, afora o perigo em si.
2.4. Novos delitos
Observo ainda que a grande maioria dos casos reais – foro criminal – até recentemente enquadrados no art. 132 ou, subsidiariamente, no art. 34 da Lei das Contravenções Penais, se resolve agora com legislação própria: Lei n° 10.826, de 22 de dezembro de 2003 (armas de fogo) e Lei n° 9.503, de 23 de setembro de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro).
Assim, por exemplo, dentre outras condutas, o disparo de arma de fogo ou o acionamento de munição em lugar habitado ou em suas adjacências, em via pública ou em direção a ela, constitui delito específico, com penas de reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa (Lei n° 10.828/2003, art. 15). Esse tipo delituoso prevalece com exclusividade sobre o crime do art. 132, que descarta expressamente a hipótese de crime mais grave (concurso aparente de normas).
A ressalva constante do referido art. 15 – desde que a conduta “não tenha como finalidade a prática de outro crime” – não interfere no acerto da solução apontada. Constituiria um despropósito beneficiar o réu numa situação em que ele, a par da consciência do local dos fatos, pusesse dolosamente em perigo a vida ou saúde de outrem. Não é à toa que Fernando Capez invoca o princípio da proporcionalidade para declarar prevalente o delito mais grave da Lei do Desarmamento (Curso de direito penal, v. 2, 2007, p. 191).
Diga-se o mesmo, em termos de prioridade, do fato de “conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor (Lei nº 9.503/97, art. 306, com a redação da Lei nº 11.705/2008); do fato de “participar, na direção de automotor, na via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, desde que resulte dano potencial à incolumidade pública ou privada: Penas – detenção, de seis meses a dois anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor” (art. 308); do fato de “dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano: Penas – detenção de seis meses a um ano, ou multa” (art. 309); e ainda do fato de “trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano. Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa” (art. 311).
Curiosamente, escapou da previsão legislativa (CTB) a hipótese do motorista habilitado e sóbrio que dirige numa rodovia, com passageiros a bordo, em velocidade bastante superior ao máximo permitido (a 160 km/h, por exemplo), mesmo que, no trajeto, faça ultrapassagens proibidíssimas e quase provoque um ou mais acidentes de graves proporções com outros veículos em movimento. O trânsito de qualquer natureza, nas vias terrestres do território nacional, abertas à circulação — lê-se no art. 1o — “rege-se por este Código”. E como “este Código” já tratou exaustivamente dos crimes de trânsito (Capítulo XIX), a que se aplicam as normas gerais do Código Penal (art. 291), não caberia ao intérprete acrescentar à lista, mediante analogia, qualquer outra conduta.
De acordo com o § 1° do art. 256, “a aplicação das penalidades previstas neste Código não elide as punições originárias de ilícitos penais decorrentes de crimes de trânsito, conforme disposições de lei”. Essa delimitação concernente apenas aos “crimes de trânsito, conforme disposições de lei”, parece afastar a supletividade do art. 132, que tem caráter visivelmente genérico, bem mais amplo. E agora? Impunidade do motorista?
Entendo que persiste, para enquadramento da hipótese mencionada, a subsidiariedade inerente àquele dispositivo, a que corresponde (sem nenhuma razão aparente) punição de menor severidade. É que pedestres e ciclistas, que não receberam carta branca em termos de imunidade penal, incidem nas penas do art. 132 caso exponham, no trânsito, a perigo direto e iminente, a vida ou a saúde de outrem. É claro então que os motoristas de veículos automotores não foram absurdamente liberados de idêntica responsabilidade criminal, assim como não foram liberados do art. 132, em certos casos, os que deflagram perigosos tiros de revólver em local desabitado ou suas adjacências, longe das vias públicas.
2.5. Princípio da subsidiariedade.
Já vimos que o texto do art. 132 revela um delito tipicamente de perigo. Quer dizer, um delito que se estrutura com um resultado de perigo associado igualmente a uma subjetividade de perigo. Inexiste, nele, o menor resquício de dano. Ainda assim, dependendo da espécie de dano superveniente (por exemplo, lesão corporal de natureza leve) pode ocorrer alguma dúvida quanto ao exato enquadramento da conduta respectiva.
Convém assinalar, além disso, que se está diante de uma figura delituosa de caráter subsidiário, no sentido de que só pode ser invocada se o evento perigoso que a caracteriza corresponde, com exatidão, à vontade (dolo direto) ou consentimento (dolo eventual) do agente. Se há dolo de dano à vida ou saúde da vítima, que não é atingida, subsiste com exclusividade o crime principal, quer dizer, a tentativa de homicídio ou de lesões corporais. Daí o caráter subsidiário: eliminado o dolo de dano nem por isso deixa de existir supletivamente o crime do art. 132, se estão preenchidos os demais requisitos de lei.
Essa faceta subsidiária vem mencionada expressamente no texto legal: pena de detenção de 3 (três) meses a l (um) ano, se o fato não constitui crime mais grave. A Exposição de Motivos também toca no assunto: “Trata-se de um crime de caráter eminentemente subsidiário. Não o informa o animus necandi ou o animus laedendi, mas apenas a consciência e vontade de expor a vítima a grave perigo” (item 46).
Entendo, contudo, que inexiste razão suficiente ou absoluta clareza na ressalva da lei. Dizer ao intérprete que o art. 132 cede seu lugar, por exemplo, à tentativa de homicídio, é introduzir no sistema palavras desnecessárias. No art. 132 só se vislumbra dolo de perigo, nada mais do que dolo de perigo (Código Penal, art.18, I). Como confundi-lo, então, com uma tentativa de homicídio?
Note-se que se esse tipo de ressalva fosse mesmo importante ele deveria aparecer na grande maioria dos crimes, de dano ou de perigo: homicídio simples, lesões corporais, perigo de contágio venéreo, perigo de contágio de moléstia grave, constrangimento ilegal, furto, roubo, prevaricação etc. E por que nesses casos não aparece? Porque ninguém, em sã consciência, sente dificuldade para advogar a tese de que o homicídio é simples “se o fato não constitui crime mais grave”(homicídio qualificado); de que o constrangimento ilegal se esvanece como figura delituosa “se o fato constitui crime mais grave” (estupro, por exemplo); de que a apropriação indébita só subsiste “se o fato não constitui crime mais grave” (peculato), e assim por diante.
Dessa forma, o registro da exceção (“se o fato não constitui crime mais grave”) só faria sentido em relação a delitos da mesma natureza, quer dizer, delitos de perigo, e, é claro, mais graves. Com os crimes de perigo é que existe, em tese, risco de confusão ou conflito. Exemplo: art. 133 (abandono de incapaz) e art. 134 (exposição ou abandono de recém-nascido), apenados mais severamente. Só que esses delitos, por suas peculiaridades, já atraem para si, exclusivamente, o enquadramento jurídico-penal (lex specialis). Com efeito, o abandono reportado nesses artigos se encaixa na fórmula geral do crime do art. 132, mas este não prevalece no conflito por força precisamente daquele detalhe especializante (abandono).
Por outro lado, o princípio da subsidiariedade não consta dos arts. 130 e 131, referentes ao perigo de contágio venéreo e de contágio de moléstia grave, respectivamente. Mesmo assim, ninguém deixa de invocar a figura da tentativa de homicídio se ocorre, no caso concreto, ato idôneo para matar e dolo de homicídio.
Conclui-se que essa norma expressa de subsidiariedade acaba valendo como simples reforço ao princípio hermenêutico da regra especial. Acaba valendo como reforço, repita-se, e não como marco delimitativo do princípio da especialidade. Este é mais abrangente. Afinal, o crime do art. 132 também deixa de existir diante de fato “menos grave”. Assim, o crime do art. 130, caput, praticado com dolo de perigo, e o crime do art. 135 (omissão de socorro) não se vêem alijados do sistema só porque no art. 132 se fala exclusivamente em delito “mais grave”. Não, aqueles crimes permanecem por si mesmos, por suas características próprias, especiais (lex specialis), como a demonstrar que, no fundo, tudo o mais é secundário ou superfetação, inclusive a regra da subsidiariedade.
Considerando, porém, a aparente clareza do texto (“salvo se o fato constitui crime mais grave”) sempre se corre o risco de se concluir apressadamente que o delito em estudo tem presença garantida no confronto com delitos de perigo de menor gravidade. Damásio E. de Jesus chega até a ensinar que “se ocorrer dano à vítima, o sujeito não responderá por crime de lesão corporal, mas pelo próprio crime de perigo para a vida ou saúde de outrem. Isso porque as penas previstas para os crimes dos arts. 129, caput, e 132 do CP, são idênticas” (Direito penal, v. 2, 1991, p. 140; Código penal anotado, 2006, p. 461). O equívoco – simples descuido – é flagrante, data venia. Só responde pelas penas do art. 129, caput, quem age com dolo de lesões corporais, direto ou eventual. O dolo do art. 132 é de perigo, tão somente de perigo, como o reconhece, aliás, o próprio Damásio em várias oportunidades.
2.6. Aumento de pena.
A Lei n° 9.777, de 29 de dezembro de 1998, determinou aumento de pena, de 1/6 a 1/3, “se a exposição da vida ou da saúde de outrem a perigo decorre do transporte de pessoas para a prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza, em desacordo com as normas legais”.
Trata-se de perigo direto e iminente vinculado ao transporte em si mesmo. O resultado material do crime coincide com a situação de risco provocada pelas circunstâncias do deslocamento (excesso de passageiros; velocidade incompatível; precariedade do veículo em termos de segurança etc.).
Não se fala, na lei, em veículo a motor, ou em normas do Código de Trânsito Brasileiro. Mas a doutrina (ou, pelo menos, considerável parcela) menciona esses detalhes indicativos de que não caberia a majorante na hipótese, por exemplo, de transporte lacustre, marítimo ou fluvial.
Discordo. Preenchidas as condições do caput e os requisitos do parágrafo único (transporte de pessoas; o objetivo de prestação de serviços em estabelecimentos de qualquer natureza) não vejo razão para concentrar os trabalhadores (as vítimas) em veículos rigorosamente motorizados, a circular nas vias terrestres.
3. Divergências interpretativas
Constitui lugar comum na doutrina esclarecer que a superveniência de morte desloca os fatos para a figura do homicídio culposo. Existem ao contrário divergências quanto à hipótese de lesões corporais subseqüentes. Ouçamos Heleno Fragoso: “Se sobrevém o dano, haverá crime culposo (lesões corporais culposas ou homicídio culposo), desde que tenha havido apenas dolo de perigo. Dado o caráter subsidiário deste crime, fica excluída, nesses casos, a possibilidade de concurso de crimes, devendo proclamar-se o concurso aparente de normas, que se resolve pelo princípio da subsidiariedade” (Lições de direito penal: parte especial, v. 1, 1983, p. 151). Dentre outros, aludem igualmente ao homicídio e lesão corporal culposos: Aníbal Bruno (Direito penal, v. 4, 1966, p. 237) e Paulo José da Costa Jr. (Comentários ao código penal, v. 2, 1988, p. 57).
Nenhuma dificuldade quanto ao crime de homicídio culposo. Suas penas em abstrato, de l (um) a 3 (três) anos de detenção, são mais elevadas que as do art. 132. E deste, diferentemente do que ocorre com os arts. 133 a 136, não consta a previsão de evento qualificador (morte ou lesão corporal grave). Em tese, portanto, haveria dois crimes: o de perigo para a vida ou saúde de outrem e o de homicídio culposo, em concurso formal (CP, art. 70, primeira parte).
Mas a lei, se antecipando ao problema, descarta a aplicação do art. 132 se o fato constitui “crime mais grave”. Subsidiariedade explícita: crime de homicídio culposo, exclusivamente, diante da prevalência da regra principal ou primária. Ou, se se preferir, princípio da consunção: o crime maior (de dano) absorve o crime menor (de perigo), notadamente porque se percebe um desdobramento natural da conduta, em termos de probabilidade. Com efeito, mais do que o perigo, o legislador quer evitar o dano. Se este, na seqüência, vem a ocorrer, serve por si só de roteiro exclusivo para a indicação do único delito praticado, exatamente o de maior gravidade.
Note-se que neste caso, em que inexiste dolo de dano, a regra legal da subsidiariedade faz algum sentido, ao impedir expressamente o concurso de crimes (art. 132 e homicídio culposo).
Euclides Custódio da Silveira (Direito penal: crimes contra a pessoa, 1973, p. 180) fala, na hipótese, em lesão corporal seguida de morte (art.129, § 3º), mas o equívoco é manifesto, data venia. Ele próprio já havia dissertado sobre o dolo de perigo, que nada mais significa do que “o dolo próprio dos crimes de perigo”. Mais adiante: “Vale dizer que o perigo de dano, como conteúdo específico do dolo, representa simplesmente o resultado sobre o qual incide a vontade do agente” (ob. cit., p. 163).
Ora, a lesão corporal seguida de morte pressupõe dolo de dano (dolo de lesão corporal). Logo, se o dolo do art. 132 é apenas de perigo não pode, subitamente, transformar-se em dolo de dano só porque a vítima sofreu lesão corporal seguida de morte. Na falta, pois, da forma qualificada, subsiste apenas o enquadramento na figura do homicídio culposo.
Se resulta, no entanto, somente lesão corporal (dano à saúde) já não fica tão fácil, à luz do sistema, apontar a preponderância e exclusividade do art. 129, § 6° (lesões corporais culposas). A lei, afinal, na sua mensagem de subsidiariedade explícita, preserva e garante o art. 132 “se o fato não constitui crime mais grave”. E as penas do art. 129, § 6°, de 2 (dois) meses a l (um) ano de detenção, se mostram quantitativamente menos graves!
Atento a esse detalhe, entende Celso Delmanto que “se a vítima vem a morrer em razão da exposição descrita neste artigo, o crime será de homicídio culposo (art. 121, § 3°); todavia, em caso de lesão culposa, a figura será a do próprio art. 132, já que a do art. 129, § 6°, é mais levemente apenada" (Código penal comentado, 1988, p. 253). No mesmo sentido: Cezar Roberto Bitencourt, Manual de direito penal, v. 2, 2001, p. 239; Fernando Capez, Curso de direito penal, v. 2, 2007, p. 185; Rogério Greco, Código penal comentado, 2008, p. 455.
Damásio E. de Jesus também se manifesta pelo predomínio e exclusividade do art. 132, enganando-se, contudo, conforme já registrado, quando menciona o dispositivo em confronto, ou seja, o art. 129, caput. Na mesma falha incide Paulo Lúcio Nogueira, e com maior intensidade: se o agente “causar lesão corporal leve, responderá pelo próprio crime de perigo já que as penas são idênticas (art. 129, caput, e art. 132, CP); mas, se a lesão for grave ou gravíssima, pelas penas correspondentes a estes crimes" (Questões penais controvertidas, 1994, p. 61).
Em verdade, o dispositivo em concurso aparente é mesmo o art. 129, § 6°, alusivo à culpa em sentido estrito, cuja pena mínima se mostra, por sinal, mais baixa. É que na seqüência de um crime tipicamente de perigo – dolo de perigo – só se pode admitir, no plano da lógica, um resultado culposo de dano. No dolo de perigo, como ensina Edmundo José de Bastos Júnior, há tão-somente a vontade de criar uma situação de perigo. Trata-se de espécie de dolo em que se vislumbra necessariamente “a previsão do dano, que, entretanto, não é querido nem aceito pelo agente” (Código penal em exemplos práticos, 2006, p. 70).
Daí a pergunta: qual o critério de aferição da gravidade de uma conduta delituosa? O maior ou menor grau de dano? A natureza ou quantidade das penas respectivas? Sua repercussão no interior do grupo social, em função da ideologia predominante?
O mais seguro dos critérios é o da pena em abstrato, em sua natureza e quantidade. Por esse paradigma, no entanto, chega-se à conclusão de um desacerto na doutrina predominante, que abraça ao revés outro esquema, de ordem racional, ligado à escala perigo/dano. De ordem racional porque o dano, é claro, encerra maior gravidade que o perigo. Conseqüentemente – diriam os jurisconsultos – prevalece a lesão corporal e, não, o simples delito de perigo. Era essa inclusive a orientação corriqueira dos nossos tribunais, sobretudo nos casos de lesões de trânsito com culpa consciente (CP). Importa o dano imediato, a lesão culposa, e não o dolo direto ou eventual de perigo. O art. 132 só é invocado, em regra, quando a vítima não sofre dano em sua integridade corporal.
Os que têm visão crítica começam então a perceber, mais uma vez, a ambigüidade não só das palavras da lei, objeto de exegese, mas dos próprios instrumentos técnicos apontados para a solução dos impasses. Mais do que isso, notam o caráter camaleônico (e às vezes autofágico) dos discursos dogmáticos, válidos por um momento, esquecidos mais adiante.
Se houvesse um aprofundamento do exame da matéria se veria que, de certo modo, cabe distinguir. O crime do art. 132 engloba duas situações distintas: perigo para a vida (mais grave) e perigo para a saúde (menos grave). É mais grave, aliás, em termos de conduta social, colocar dolosamente em sério risco a vida de alguém (perigo) do que, por exemplo, produzir-lhe uma equimose no braço ou nas costas (dano), mas de forma culposa. A doutrina parece não se preocupar com esse pormenor, assim como denota não vislumbrar a ressalva do legislador: “se o fato não constitui crime mais grave”. Dir-se-ia que o intérprete se dá por missão adaptar o sistema legal à sua própria racionalidade, a seus valores, a suas idiossincrasias – o que não deixa de ser verdade, ao menos parcialmente.
Descobre-se o inevitável: se os números punitivos são flagrantes (dois meses, de um lado; três meses, de outro) e se a preferência é acordada ao número menor, correspondente às lesões corporais culposas, então fica evidente a interferência ideológica do intérprete com poder normativo.
Por outro lado, não deixa de ser curioso constatar que, para o Código Penal, é mais grave expor a perigo a saúde de outrem (dano potencial) do que efetivamente ofendê-la (dano real). Eis o comentário de Frederico Marques: “A progressão criminosa, no iter delicti do mundo físico, não encontra correspondência na esfera normativa, pois que maior rigor existe na punição do crime de perigo para a saúde de outrem, que no de lesão corporal culposa simplex.” E arremata: “Por essa razão, a lex consumens, no caso, é o art. 132, enquanto que o art. 129, § 6o, figura como lex consunta” (Tratado de direito penal, v. 4, 1961, p. 308). Em se tratando de lesão corporal culposa qualificada (art. 129, § 7o) é que desaparece a prevalência do art. 132 (idem, ibidem).
E o que dizer de tiro de revólver (antes da vigência da Lei. n° 9.437/97, revogada pela Lei n° 10.826/2003) ou de perigoso arremesso de outros objetos eventualmente letais contra a vítima, ou em sua direção, mas sem atingi-la? A doutrina já se antecipava e os tribunais, em regra, entenderam a lição: em havendo dolo de dano, crime tentado – de homicídio ou de lesão corporal; em havendo dolo de perigo, crime consumado (art. 132). Quase ninguém se importa com o tratamento privilegiado para quem age com dolo mais grave, o de lesão corporal, pois a pena do art. 129, caput, é diminuída de l (um) a 2 (dois) terços, por determinação legal (CP, art. 14, II). Se o dolo é de perigo – e perigo à saúde, não necessariamente à vida – a punição é mais rígida: no mínimo, 3 (três) meses de detenção, conforme a lei (art. 132).
Mais um descompasso normativo que se resolve, como sempre, aleatoriamente, por necessária opção dogmática ou judicial. Entregue a questão à doutrina, ela tem que argumentar e escolher, no plano teórico. Entregue ao juiz, no entanto, sua decisão materializa o direito. Como ensina com acerto Hamilton Akel, “o poder de criar regras jurídicas é uma competência implícita de toda função jurisdicional” (O poder judicial e a criação da norma individual, 1995, p. 122).
E se os tribunais divergem nem por isso impedem – ao reverso, consolidam – a contradição formal e material no plano de um direito que se constrói passo a passo, histórica e circunstancialmente.
4. Visão crítico-metodológica
Em linhas gerais, com relação à exegese de qualquer delito, é natural que haja desencontros, muitos desencontros. O art. 132, que acabamos de analisar, também não escapa dessas características.
Esse tipo de constatação nos remete à consciência crítica de uma realidade normativa a ser construída e completada pelo intérprete com poder decisório. No correto ensinamento de J.J. Calmon de Passos não há um direito “dissociado do ato de sua criação, dissociado do processo que o materializa como um prescrever dotado de coercitividade inelutável” (“Reforma do Poder Judiciário”, Revista Brasileira de Ciências Criminais nº 71, 2008, p. 361).
De modo semelhante, Paulo de Souza Queiroz: o direito não está previamente dado, pois “é parte da construção social da realidade” e, portanto, não é desvelado pela interpretação. A interpretação, esta sim, é que produz o próprio direito (“O que é o direito penal?”, Boletim IBCCrim nº 178, set. 2007, p. 4).
Conforme registrado em Curso crítico de direito penal, 2ª edição, Florianópolis: Conceito Editorial, 2008, as leis jurídicas retratam as virtudes e vícios da linguagem natural, linguagem essa que reveste, com os mesmos vícios e virtudes, as inúmeras e inconciliáveis tentativas de harmonização hermenêutico-dogmática.
Nem sempre a clareza de uma norma acalma e satisfaz o jurista igualmente comprometido com outros valores. De seu cardápio de argumentações constam alguns tópicos de natureza multifacetada: analogia, bom senso, eqüidade, razão, preconceito, cultura, bem comum, política social, tradição, progresso, espírito da lei, interesse comunitário, segurança jurídica. Além disso, como lembra Gladston Mamede, o tema também envolve a questão da luta por poder, legítimo ou ilegítimo: “Não se pode sequer afastar as hipóteses em que se utiliza da exegese para forjar sentidos inexistentes para a norma” (Semiologia do direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura, 2000, p. 131).
Os intérpretes acabam projetando e refletindo as limitações e contradições inerentes a todo e qualquer ser humano, limitações e contradições divididas, portanto, com alguma parcela do grupo social. O direito, por isso, não se resolve através da lei ou dos argumentos expendidos, mas do grau de vontade e liberdade de quem dispõe concretamente, no contexto das circunstâncias históricas, do poder de mando e decisão.
Na vida real, e sobretudo na vida forense, o jurista é convocado a manifestar-se concretamente através e a partir de si mesmo, de sua maneira pessoal e intransferível de ver e raciocinar. A subjetividade do intérprete completa e corporifica um direito ainda em formação, sem embargo de eventual clareza do texto normativo preexistente.
Mal posicionado em campo, um árbitro de futebol pode inverter o significado dos fatos. Mal informado, o juiz de direito pode, também, modificar normativamente a realidade. Pouco importa. Ambos se encontram no exercício do poder, e sua decisão, à semelhança de Midas, a tudo transforma em fato jurídico.
De seu turno, os doutrinadores e jurisconsultos, com o prestígio e magia de seus discursos, servem de consolo e apoio retórico – argumento de autoridade – para o desempenho desse poder normativo.
A verdade é que esses discursos e teorizações dogmáticas já não mais escondem sua função decorativa no contexto de um direito intrinsecamente confuso e contraditório, porque atrelado ao efetivo desabrochar de forças igualmente confusas e contraditórias, em busca, se possível, de legitimação e sedimentação históricas.
Florianópolis (SC), 11 de agosto de 2008
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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BASTOS, João José Caldeira. Curso crítico de direito penal, 2ª ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2008.
BASTOS JÚNIOR, Edmundo José de. Código penal em exemplos práticos, 5ª ed. Florianópolis: OAB/SC, 2006.
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COSTA JR., Paulo José da. Comentários ao código penal, v. 2. São Paulo: Saraiva, 1988.
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FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte especial, 7a ed., v. 1, Rio de Janeiro: Forense, 1983.GRECO, Rogério. Código penal comentado. Niterói, RJ: Impetus, 2008.
JESUS, Damásio Evangelista de. Direito penal, 13a ed., v. 2. São Paulo: Saraiva, 1991.
Código penal anotado, 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
MAMEDE, Gladston. Semiologia do direito: tópicos para um debate referenciado pela animalidade e pela cultura, 2ª ed. Porto Alegre: Síntese, 2000.
MAÑAS, Carlos Vico. O princípio da insignificância como excludente da tipicidade no direito penal. São Paulo: Saraiva, 1994.
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito penal, v. 4. São Paulo: Saraiva, 1961.
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QUEIROZ, Paulo de Souza. “O que é o direito penal?”, Boletim IBCCrim nº 178, ano 15. São Paulo, setembro/2007.
SILVEIRA, Euclides Custódio da. Direito penal: crimes contra a pessoa, 2a ed. São Paulo: RT, 1973.
Professor de Direito Penal da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina, professor de Direito Penal (aposentado) da Universidade Federal de Santa Catarina.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BASTOS, João José Caldeiras. Crime de perigo para a vida ou saúde de outrem: estrutura jurídica e divergências interpretativas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jan 2009, 10:44. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16441/crime-de-perigo-para-a-vida-ou-saude-de-outrem-estrutura-juridica-e-divergencias-interpretativas. Acesso em: 23 dez 2024.
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