O surgimento do direito administrativo é freqüentemente associado à concretização do Estado de direito. MEDAUAR apresenta os argumentos de GIANNINI extraídos de seu texto “Profili Storici della scienza del diritto amministrativo” :
“a) se considerada a noção de que o Estado de direito teria como característica a disciplina jurídica das relações entre indivíduo e Estado, se concluiria que no Estado de polícia tais relações também se apresentam juridicamente disciplinadas, no sentido de que às autoridades públicas cabem poderes e aos súditos, permanente e institucional sujeição; b) partindo da concepção de que no Estado de Direito a relação poder-sujeição vem substituída pela relação deveres-direitos, isso não elimina a existência do primeiro tipo de relação, só a reduz, sem que se explique a origem do direito administrativo, pois deveres e direitos poderiam decorrer de atos de autonomia privada e não necessariamente de manifestações disciplinadas por ramo específico do direito; c) se por Estado de direito se entender aquele em que a atividade administrativa observa a lei ou não pode se expressar diversamente da lei, daí não se deduz a existência do direito administrativo, pois as leis poderiam prever atuação no âmbito da esfera privada, com atos inominados, sem que falhasse a tutela de direitos dos particulares e a observância dos princípios do Estado de direito, como ocorre na Inglaterra; d) alguns autores caracterizam o Estado de direito pela existência do direito administrativo, o que para Giannini configura tautologia; tais autores identificam os dois termos da questão, sem explicá-la e sem mostrar a conexão entre ambos, valendo somente como verificação de sua coexistência.”[1]
Também vários são os autores que identificam a aparição dos três poderes, ou a separação de poderes ao surgimento do direito administrativo. MEDAUAR destaca as opiniões de Otto MAYER, segundo a qual o surgimento do direito administrativo coincide com a existência de dois poderes atuantes, quais sejam o executivo e o legislativo[2].
Já para SANDULLI, para existir direito administrativo:
"Perchè esista un diritto amministrativo - e cioè un diritto proprio della pubblica Amministrazione - è dunque, prima di tutto, indispensabile che esistano più Poteri statali - uno dei quali si caratterizzi come Potere amministrativo (pubblica Amministrazione) -, e che esista inoltre una certa divisione di attribuizioni tra tali Poteri."[3]
O que se pode notar, como o faz MEDAUAR[4], é que certas preocupações orientaram os pensamentos dos primeiros formadores quando do surgimento do direito administrativo. Os objetivos relativos ao ponto em questão foram traçados na reação que se travou contra a concentração de poderes na pessoa do monarca. Buscava-se freiar, limitar o poder do Rei, de forma que fossem preservados os direitos dos cidadãos. Visivelmente se tentou descentralizar os poderes existentes até então.
Acaba por concluir MEDAUAR que:
“Indubitável, assim, que o princípio da separação de poderes configura pressuposto da formação do direito administrativo.”[5]
O Professor José Alfredo de Oliveira BARACHO em trabalho sobre a função pública também demonstra que:
“A administração é examinada em sua relação com o Poder Político. A teoria clássica do direito público colocava a administração na dependência o poder político, com destaque para a concepção de separação de poderes, expressas por Locke e Montesquieu.”[6]
MEDAUAR cita a opinião de ZANOBINI e explica da seguinte forma:
“a existência do direito administrativo subordina-se a duas condições: que a atividade administrativa seja disciplinada por normas jurídicas exteriormente obrigatórias e que tais normas sejam distintas daquelas que regulam outros sujeitos, especialmente os cidadãos; estas duas condições ocorrem somente no Estado moderno, a segunda não em todas as formas desse”.[7]
Analisa MEDAUAR que a primeira condição no caso acima poderia ser equiparada ao pressuposto da tripartição ou separação dos poderes. Isto porque a compreensão que se tem como conseqüência é de que se encontra implícita a existência de um poder que produza as normas a serem cumpridas pela Administração Pública. Quanto à segunda condição, esclarece a autora o seguinte:
“...as normas específicas para as atividades da Administração começam a emergir depois da Revolução Francesa em alguns Estados da Europa continental e com mais impulso na França, que instituiu conjunto amplo e complexo de órgãos administrativos, disciplinou a posição dos mesmos, a situação dos funcionários, os meios de ação administrativa; disciplinou a atuação do Conselho de Estado e dos juízos administrativos inferiores. Circunstâncias, portanto, bem propícias à formação do direito administrativo.”[8]
ZANOBINI na sua obra[9] trata do desenvolvimento histórico do direito administrativo a partir do estabelecimento das condições de existência e origens do mesmo em geral. Logo depois fala sobre o direito administrativo italiano, primeiramente no Reino e logo depois durante o seu desenvolvimento sucessivo.
Assim como o direito constitucional, o direito administrativo tem origem relativamente recente devido ao tempo longo na realização de condições históricas que foram pressupostos ao seu surgimento.
O autor italiano comenta que nenhum Estado sobrevive sem uma função administrativa, porém existiam Estados que não conheciam o direito administrativo. Nas suas próprias palavras:
“A existência deste é subordinada a duas condições: que a atividade administrativa seja regulada por normas jurídicas exteriormente obrigatórias, e que tais normas sejam distintas daquelas que regulam os outros sujeitos e particularmente os cidadãos. Estas duas condições se verificam sobretudo no Estado moderno, e a segunda não em todas as suas formas.”[10]
Esclarece o autor que as condições para o surgimento do direito administrativo se deram com a instauração dos governos constitucionais. Para ZANOBINI, contrariamente aos governos que se submetiam às leis editadas nos estados a que pertenciam, os estados absolutistas só se vinculavam às leis para a manutenção de assuntos financeiros e patrimoniais privados. A partir do Século XIX, tal vinculação legal passou a ser reconhecida para algumas leis de direito público, reconhecidas como o “direito de polícia”. Conclui então que este último é o precedente histórico do direito administrativo. O “direito de polícia” era largamente condicionado às razões de Estado, ou seja da política. Somente após a Revolução francesa, porém, é que, pela afirmação do princípio da divisão dos poderes e da integral sujeição do poder executivo às normas editadas pelo poder legislativo é que foi possível constatar a eficácia vinculante das leis que tratavam da organização e atividade dos órgãos da administração pública e o surgimento de relações jurídicas entre o Estado e os cidadãos. No ano que podemos chamar de 1800 deu-se então na França, o nascimento do direito administrativo com a lei 28 pluvioso do ano VIII. A lei de 28 de pluviose deu para a administração francesa uma organização juridicamente garantida e exteriormente obrigatória. A partir daí outras leis vieram e tratam de vários institutos e serviços particulares. Nos outros países, o direito administrativo se afirmou com a introdução da dominação francesa ou com a adoção espontânea dos princípios do governo constitucional. [11]
“Este sistema de subordinação do Estado...”, finaliza o autor, “...como administração pública ao império do direito e da jurisdição, é conhecido na doutrina alemã e italiana com o nome de “Estado segundo o direito” ou “Estado de direito” (Rechtsstaat)”.[12]
Os antigos Estados italianos possuíam ordenamentos jurídicos próprios e até consideráveis, mas mesmo assim não conheceram um direito administrativo propriamente dito senão após a introdução da legislação francesa. ZANOBINI informa que os antigos reinos piemontês, das Duas Sicílias e o ducado de Parma permaneceram largamente informados pelo ordenamento administrativo francês. A partir da formação do novo Estado italiano iniciada com a anexação das diferentes províncias ao reino de Piemonte, mais tarde distanciado do modelo francês de direito administrativo, foram adotados sistemas deduzidos de outros países estrangeiros - principalmente a Bélgica – e criações próprias e originais.
A partir da proclamação do Reino da Itália, o poder legislativo concentrou-se na unificação administrativa das várias províncias. As leis piemontesas foram usadas para os novos territórios, além da edição de novas leis para todo o reinado italiano. ZANOBINI exemplifica o dito acima com as leis de número 1037, 1483, 3731 e 3725 de 5 de junho de 1850, de 23 de março de 1853, 30 de outubro de e 13 de novembro de 1859, respectivamente.[13]Já entre as novas leis, o autor cita como as mais notáveis ou importantes as de números 752, de 3 de agosto de 1862, 800, de 14 de agosto do mesmo ano e a de 25 de junho de 1865, que tratavam respectivamente das obras de caridade, da instituição de nova Corte de Contas e da desapropriação por utilidade pública. A de fundamental importância, porém, na opinião de ZANOBINI, foi a de número 2248, de 20 de março de 1865 que tratava da unificação administrativa do Reino italiano. Considera o autor tal lei como verdadeiro código de direito administrativo. Composta esta última de seis leis fundamentais, respectivamente: a lei comunal e provincial, a de segurança pública, a de sanidade pública, a lei sobre o Conselho de Estado, a sobre contencioso administrativo e a sobre trabalhos públicos.[14] Aponta o autor, ainda, que somente esta última lei, a sobre trabalhos públicos restou em vigor, apenas sobretudo em parte, e que a unificação administrativa não foi completa.[15]Conclui o autor dizendo:
“Com isto não pode dizer-se que a unificação administrativa tenha sido completa: multissimas, ao invés disso, foram as materias, nas quais continuaram a haver aplicação por muitos anos as leis dos antigos Estados.”[16]
Notas
[1] Medauar, Odete. “O Direito Administrativo em Evolução” São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1992. p. 21.
[2] Mayer, Otto. “Derecho administrativo alemán”, tomo I, p. 19. Apud Medauar. Ob. Cit. p. 22.
[3]Sandulli. “Manuale di diritto amministrativo”, 1974, p.19. - “...é preciso que haja vários poderes estatais, um dos quais caracterizado como poder administrativo (Administração pública) e que exista certa divisão de atribuições entre tais poderes.”
[6] Baracho, José Alfredo de Oliveira. “Teoria Geral da Função Pública do Estado: A Despublicização do Direito da Função Pública. Jornal “O Sino do Samuel”, abril de 1998: FDUFMG, p.11.
[9] “Corso di diritto amministrativo”. Volume I Milão: A. Giuffrè Editore,1958.
[10] “L’esistenza di questo è subordinata a due condizioni: che l’attività amministrativa sia regolata da norme giuridiche esteriormente obbligatorie, e che tali norme siano distinte da quelle che regolano gli altri soggetti e particolarmente i cittadini. Queste due condizioni si verificano soltanto nello Stato moderno, e la seconda non in tutte le forme di esso”. p.38.
[11] Zanobini. Ob. cit. ant. pp.40 – 41.
[12]Zanobini. Ob. cit. ant. p. 41.
[15] “Di tutte queste, solo le ultime due hanno resistito alle successive riforme e restano in vigore, sia pure, specialmente l’ultima, soltanto in parte.” p.42.
[16] “Con ciò non può dirsi che l’unificazione amministrativa sai stata completa: moltissime, anzi, furono le materie, in cui continuarono ad avere applicazione per molti anni le leggi degli antichi Stati.” p. 42.
Prof. Dr. Francisco de Salles Almeida Mafra Filho. Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFMT. Avaliador de Cursos de Direito (INEP). Supervisor de Cursos de Direito (SESu/MEC). Avaliador de Curso de Direito "ad hoc" da ANEAES - Paraguai.<br>Contato: [email protected]. <br>http://lattes.cnpq.br/5944516655243629.<br><br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Francisco de Salles Almeida Mafra. Direito Administrativo e Estado de Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 fev 2009, 08:37. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16777/direito-administrativo-e-estado-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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