O financiamento para compra de bens imóveis no âmbito do SFH - Sistema Financeiro da Habitação tem como garantia o próprio imóvel adquirido. O comprador torna-se proprietário do imóvel, ficando como devedor do financiamento. A garantia é constituída por meio de hipoteca incidente sobre o imóvel. Se o comprador não pagar o financiamento, o imóvel responderá pela dívida, ainda que seja moradia da família, pois a proteção concedida ao bem de família não é aplicável.
A hipoteca não torna o imóvel um bem fora do comércio, ou seja, é regra elementar do direito civil que um bem hipotecado pode a ser vendido, o que, aliás, consta expressamente no art.1.475 do novo Código Civil. Ocorre, contudo, que o bem continuará respondendo pela dívida.
No âmbito do SFH a situação é distinta. Embora possa o comprador de um imóvel hipotecado como garantia de um financiamento quitar à vista o saldo devedor para liberar o bem da hipoteca, na prática, tal situação não é freqüente. E é assim porque, na prática, as pessoas não têm recursos para comprar imóveis à vista. O financiamento imobiliário existe exatamente por isso! Desse modo, o comprador necessita não apenas celebrar um contrato de compra e venda com o proprietário do imóvel, mas também receber dele sua posição contratual em face do banco, ou seja, o comprador precisa obter do vendedor a condição de financiado. Regulamentando essa situação, o art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.004/90, que disciplina o SFH – Sistema Financeiro da Habitação, exige a intervenção do banco para a venda do imóvel hipotecado.
Como se vê, o art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.004/90, estabelece regra especial aplicável no âmbito do SFH. Embora, em princípio, o bem possa ser vendido, o negócio só pode ser realizado com a anuência do banco.
O art.18 da Lei nº 10.150, de 21 de dezembro de 2000, que alterou a Lei nº 8.004/90, manteve a exigência de participação obrigatória da instituição financeira nas hipóteses de venda ou de promessa de venda de imóveis financiados no âmbito do SFH para os contratos que não tenham cobertura do FCVS - Fundo de Compensação de Variações Salariais e, para os que têm essa cobertura, estabeleceu diversas exigências, que deverão ser aferidas pela instituição financeira, que, em última análise, é quem vai proceder à alteração do mutuário. Ou seja, na prática, a Lei nº 10.150/2000 não modificou substancialmente a exigência de participação da instituição financeira por ocasião da venda do imóvel.
Essa é a situação jurídica. Na prática, o que se observa é a negativa dos bancos em concordarem com a venda do imóvel hipotecado sem uma repactuação do saldo devedor ou do valor das parcelas mensalmente pagas. Isso inviabiliza a operação de compra e venda com assunção do financiamento.
Poderíamos imaginar que o fundamento para a existência do art. 1º, parágrafo único, da Lei nº 8.004/90 é a necessidade de aferição do preenchimento por parte do novo comprador dos requisitos exigíveis para ingresso no SFH. Afinal de contas, o sistema é regido por normas cogentes, em razão do seu cunho social. Não é qualquer pessoa que pode ser mutuário no âmbito do SFH. Porém, na prática, o dispositivo existe para beneficiar a instituição financeira, pois ela recusa a participação na venda do imóvel financiado para pessoas que preenchem os requisitos do SFH... É bem verdade que, em princípio, a instituição financeira poderia escolher quem seria seu devedor, pois vige o direito de liberdade contratual no nosso sistema jurídico. Dentro de um contexto liberal, de direito privado, o banco não poderia ser compelido a manter um contrato de financiamento com quem não desejasse. Contudo, o financiamento imobiliário no âmbito do SFH não pode ser considerado como um contrato regido pelo direito privado, razão pela qual uma outra solução legislativa poderia ser admitida. Por ora, porém, a regra atual é a possibilidade arbitrária, na prática, do banco impedir a venda do imóvel hipotecado no âmbito do SFH.
Para contornar essa situação, a solução encontrada pelas pessoas que desejam comprar e vender o imóvel nessas condições é a celebração, por meio de um instrumento particular, de um compromisso de compra e venda, que exatamente por não contar com a anuência formal do banco não pode ser registrado. Além do compromisso de compra e venda, o vendedor outorga uma procuração a pessoa de confiança do comprador com poderes para proceder junto ao banco a quitação do financiamento com a baixa na hipoteca e para outorgar a escritura pública definitiva, o que deverá ser feito quando financiamento for pago. Porém, a situação mais comum é o novo comprador decidir por vender o imóvel antes da quitação do financiamento. Por não ser o proprietário, mas simples compromissário comprador, sem qualquer registro em cartório, não pode ele vender o imóvel, mas apenas por meio de um novo instrumento particular ceder seus direitos de compromissário comprador. Esse instrumento de cessão é normalmente acompanhado de um substabelecimento da procuração mencionada acima. Com a sucessão das cessões de direitos forma-se uma grande cadeia. O compromisso de compra e venda e o contrato de cessão são popularmente chamados de “contratos de gaveta”.
Há precedentes judiciais permitindo o registro de contratos de gaveta. Em regra, essas decisões sustentam que a concordância do banco com o negócio não precisaria ser expressa, mas sim tácita, sendo presumida pelo recebimento das prestações do novo comprador. Só que normalmente o comprador não obtém um provimento na Justiça para o registro do compromisso de compra e venda, pois, não bastasse a lentidão do trâmite processual, as despesas com advogado e com o processo judicial podem ser elevadas e o resultado da ação é incerto, pois no Brasil o juiz não está vinculado às decisões das cortes supremas. O acesso à justiça no nosso país ainda é difícil.
Desse modo, temos hoje milhares ou talvez até milhões de "contratos de gaveta". São milhares ou milhões de cadeias de compromissos de compra e venda e contratos de cessão não registrados!
A aquisição do imóvel por “contrato de gaveta” tem gerado uma série de problemas. De início, cumpre notar que o adquirente de um imóvel por meio de um contrato de gaveta não poderá registrar seu título e não se tornará proprietário. Desse modo, continuará sendo proprietário do imóvel o primitivo mutuário. E o registro imobiliário continuará espelhando essa situação.
Por continuar figurando no registro imobiliário como o proprietário do imóvel, o primitivo mutuário “poderá” até vender o imóvel para outra pessoa, que poderá quitar o débito restante, adquirido a propriedade do imóvel, em prejuízo do direito da pessoa que tem apenas um “contrato de gaveta”!
Não é só: um eventual credor do primitivo mutuário poderá penhorar o imóvel! A jurisprudência tem tentado minorar os efeitos danosos dessa situação. Um outro exemplo disso é a possibilidade, já sumulada no STJ, do compromissário comprador ou cessionário sem registro do seu instrumento ajuizar embargos de terceiro para a defesa da sua posse, quando o proprietário do imóvel está sendo executado por uma dívida qualquer. Mas isso, além de prejudicar o credor do proprietário, que não sabe que o imóvel está na posse de outra pessoa, uma vez que o registro público não lhe informa, não resolve e não protege o compromissário comprador ou cessionário totalmente. Com efeito, além de obrigá-lo à propositura da ação judicial, cujo resultado é incerto, toda vez que o bem for responder por uma dívida que não é sua, se houver na cadeia qualquer venda realizada em fraude de execução, o compromissário comprador ou cessionário não terá a proteção possessória. Na verdade, a pessoa que adquire um imóvel por meio de um contrato de gaveta é um simples posseiro, deixando de ter toda a proteção jurídica conferida a propriedade. São séculos de evolução jurídica desperdiçados!
Outrossim, embora o seguro por morte esteja incluído no financiamento, se o compromissário comprador ou cessionário morrer o financiamento não será quitar, pois no contrato de financiamento que figura como titular não é o atual compromissário comprador ou cessionário, mas sim o primitivo mutuário.
O titular de um contrato de gaveta não poderá vender o imóvel, mas somente ceder seus direitos por um outro contrato de gaveta, o que é um outro problema.
Enfim, são inúmeros os problemas que tem ou pode vir a ter a pessoa que adquire um imóvel por meio de um "contrato de gaveta".
Mas não é só o compromissário comprador e os cessionários que têm prejuízos. Para o vendedor, que consta com mutuário do financiamento imobiliário, a situação também é ruim, pois é o seu nome que ficará "sujo" na praça se o compromissário comprador ou cessionário não pagar as prestações.
Como se vê, a existência de inúmeros "contratos de gaveta", que decorre da legislação atual, provoca grandes prejuízos para o primitivo mutuário que deseja vender o imóvel, para todos que vierem a celebrar o contrato de aquisição de direitos sobre esse imóvel, para os credores dessas pessoas e para toda a sociedade que não terá no registro imobiliário um espelho seguro da situação jurídica do imóvel. Portanto, é urgente uma modificação legislativa. Não faz sentido manter a exigência da concordância do banco para a venda do imóvel financiado na nossa legislação, haja vista os graves problemas sociais que isso tem causado.
Advogado em Brasília e Consultor Legislativo do Senado Federal. Autor dos livros "Compra de Imóveis" (Ed. Atlas), "Prequestionamento, Recurso Especial e Recurso Extraordinário" (Ed. Forense) e "Direito de Empresa (Ed. Atlas). Site: www.brunosilva.adv.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SILVA, Bruno Mattos e. "Contratos de gaveta": um problema social Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 fev 2009, 07:40. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/16839/quot-contratos-de-gaveta-quot-um-problema-social. Acesso em: 23 dez 2024.
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