As dificuldades que a sociedade brasileira enfrenta costumam ser analisadas por microscópio, isoladamente, sem a conexão que as sustenta, sem as causas que as provocam. Por isso é que, às vezes vista a doença, não se descobrem os germes da sua ambiência. Sem visão mais ampla, sem o telescópio que liga Saturno às suas luas, pode passar despercebido aquele elemento que parece menor, mas que cria um traço cultural decisivo e determinante de comportamentos hostis à legalidade, ao comportamento ético, à postura fraterna.
Se o Direito tem abstrações, tem concretudes. Se tem norma e valor, tem fato, dizia Reale. Muita norma padece de raiz na realidade. E muita realidade, mudada em piora, abandona a boa norma que antes produzira. Quer secar uma planta? Envenene sua terra! É o que, aos pouquinhos, vai acontecendo na sociedade contemporânea, com o arbusto do Direito, que um dia já foi árvore. Chamo a atenção a seguir para um fato, uma coisinha, diriam alguns.
Nestes dias surpreendi nas ruas a superação tanto do debates sobre o final da novela A Favorita, quanto das discussões em torno da Guerra no Oriente Médio. Surgiu um assunto novo: Começou o BBB! Aquele programa que, com perdão das más palavras, alguns intitulam de “bigbundas”... ou o “bigbrocha”... o “bigbródi”... o “bêbêbê”... esse terrível bê-á-bá, essa cartilha de construir no Brasil uma sociedade rasteira. Vejamos.
Não leiam este texto como comentário sobre o atual programa da TV Globo. De reality shows, me bastou, bicar episódios de Casa dos Artistas, naquela esperteza em que o Silvio Santos driblou a Rede Globo plagiando o programa da Endemol descaradamente. Mas era novidade e o Supla, uma figura. Quando veio o primeiro Big Brother Brasil, da Globo, vi que era mais do mesmo. Nunca mais perdi tempo.
Trata-se de pseudonovela de pseudo-realidade com atores medíocres, com os mesmos personagens de sempre, e aqui rogo novamente o perdão do leitor pela ênfases na descrição: a boazuda vagaba, a gostosa santinha, o esquentadão sarado, o sábio gente boa, o crianção chato, o diferente discriminado: gordo, negro, gay ou ancião... E... o indefectível Pedro Bial, claro, que ele tem que exercitar também seu tão-lento dramático de desistente poeta.
A filosofia é: -finja! Seja artificial, viva uma fantasia, faça de conta que é altruísta, afinal... “é um jogo”, né? E isso justifica tudo. Conchavos, namoros, paqueras, traições, edredons, confessionários, ficar de quatro em frente às câmeras, pra mostrar o tamanho do “talento” e sonhar com a capa da Playboy de dezembro, ou da G de fevereiro, quem sabe? É um jogo. Resta saber quem é a “bola”.
Aquilo é um misto de balcão de açougueiro com as carnes expostas, com exibicionismo calculado para o voyerismo eletronicamente cultivado. Crises ridículas, desavenças de pulgas, viram manchete... Espie à vontade... é a senha! E há gente que assina canais que transmitem aquilo 24 horas por dia! Quem é natural, sendo “espiado à vontade”? Onde a verdade num ser, o “BBB”, que assim passam a se chamar os membros da confraria, que é um artefato eletrônico, alegórico,audiovisual?
Quantos já viveram aquela situação de ir ao zoológico, doidos pra mostrar a imponência do mundo animal para os filhos e dar de cara com um leão modorrento babando deitado na sombra, ou com uns tigres escondidos num canto distante. Isso é realidade! Vai ficar 24 horas acompanhando? Bom, aí, se cabe ibope, o tratador é orientado a mudar a dieta pra deixar o animal mais esperto, até deixá-lo com fome pra aguçar seus instintos predadores, ou dar-lhe umas espetadas pra ele desfilar sua África miserável pela jaula. Agora, se o animal é aparentemente racional, tipo humano, o tratador-emissora recomenda que andem sempre com os microfones (exceto no banheiro, por favor!), que se exibam para as câmeras, que inventem draminhas e promovam escaramuças, que se atraquem em pequenas disputas para diversão do público olheiro. Mais ou menos como parece ocorrer nas cabines de sexo em que uma mulher numa vitrine, se despe e geme profissionalmente seus falsos prazeres. Há pornografia, lá e cá. Toda venda do corpo sem afeto é prostituição. E a pornografia é a propagação da prostituição. No BBB vendem-se corpos, sem afeto, e o programa os divulga.
Sabendo-se a televisão como lançadora de moda e comportamentos, isso já deveria nos preocupar.
Mas há outro aspecto interessante. Aquela “Casa” é um criadouro de celebridades. Somos um país cuja história oficial – até que resgatemos aos seus muitos méritos, Pedro II e João Cândido, por exemplo - nos deixou sem nobreza ou heróis. Como não podemos falar mal do Príncipe Charles ou bisbilhotar a Duquesa de York, temos... “celebridades”! Como não mandamos gente à Lua, temos... “celebridades”! E precisa-se delas à farta, porque o exercício do mandato fugaz de celebridade é breve, bem menos que os 15 minutos de Andy Warhol. Um suspiro. O mercado pede mais. Sempre mais. Dão-se, a personalidades enfadonhas como aquele “Alemão do BBB”, ares épicos, da mesma forma que se alimentam gansos à força pra extrair patê. Da mesma forma que se bombam aves para que tenham mais carne branca. Afinal, não se criam rãs, peixes, crocodilos, porcos para abate? O pessoal fica ali, em ambiente controlado, temperatura monitorada, alimentados, tratados... (E bem tratadíssimos, que a responsabilidade civil está aí mesmo!). Como em todo rebanho, alguns dão arroba melhor, outros menos, mas tudo serve ao mercado de instantâneas celebridades. BBB é como boi, dele tudo se aproveita.
E a telinha está lá, disponível, com suas tantas câmeras, para a maquiagem que a eletrônica proporciona. Ver a vida real não importa. Importa ver a vida supostamente real que, pela telinha, embora ficta, parece mais autêntica Ou mais divertida. Ou melhor maquiada, sei lá... Daí aquele ser medíocre, que nada fez nessa vida que mereça sequer um monossílabo numa nota de pé de página nos diários do universo, quando eletrônico se torna, convertido em feixes de elétrons que rebatem nos telões das TV’s, adquire magia. Assim surgem Sérgios Malandros. O chato comum que se torna pitoresco e acaba virando... celebridade!
Talvez seja o encanto com a criação do criado, porque o homem criou a televisão, máquina de criar ilusões. O homem, ser criado, que cria um boneco de barro e o adora como arremedo de deus, quando Deus, este sim, não cabe em bonecos ou barros, posto que é o Criador. Por isso, a maldição bíblica aos idólatras. Porque é ridículo. Maravilha-se a pobre formiga que se descobre capaz de cortar uma renda na folha. Mas se esquece de olhar a maravilha-formiga que é ela mesma, maravilha divina, a olho nu, vivenciada e acontecida.
Você que é fã do programa, me desculpe: tanta gente mais interessante, aí do seu lado! Olha bem, no sentido do drama comum e frugal, o big brother acontece aos seus olhos diáriamente. Só que as pessoas estão aí do seu lado, com seus achaques, gemidos, dores, mau hálito, perfume, testa brilhosa de suor... nada limpo ou ajeitado pela eletrônica. Na vida real é mesmo tudo real. Mundo real. Gente real. A casa delas não tem piscina bacana.
Mas é preferida a matrix da caixinha eletrônica. A tentação funciona, fazer o quê? As pessoas gostam de se deixar enganar. Num tempo de simulacros, é só mais um artifício. Fazer do que já nasce com script e personagem, uma aparência de vida surpreendente, quando na verdade aquilo é previsível vida, pré-fabricada pra garantir os ibopes necessários. Nada mais. Por isso os shopping-centers ganham das lojas de rua. O mundo lá dentro é asséptico, sem mendigos, sem pipoqueiros, camelôs, acidentes, bueiros. É falso, mas o povo prefere. E o shopping-center é uma ética, ao final. A ética da exclusão, naturalmente. A mesma do BBB nefasto.
Aquelas pessoas que puxaram o tapete uma da outra, que conchavaram, que excluiram... depois: aos prantos, abraços, e tristezas diligentemente calculadas para as telas de TV, afinal, pega mal não dar uma choradinha, né? Mas o ritual da porta de saída é uma forma de redenção. Aliviam-se culpas. O que sai, “compreende”, abraça as pessoas que o chutaram fora, as mesmas que vertem umas lágrimas para as câmeras e assim buscam inocências. Que em geral são concedidas.
O paredão do BBB ensina: Não tem lugar pra todo mundo. Você tem que excluir o seu igual. Ele não é seu irmão, é seu concorrente. Elimine-o! E isso se transfere para o dia a dia, não tenham dúvida. Tempos neoliberais, crise ascendente, empregos que morrem. A luta pela sobrevivência é selva. Somos predadores. Necessário atacar. Atacar é sobreviver. Sobram os mais aptos. Ou... os que melhor “jogarem o jogo”. E vira tudo um jogo: no amor, na vida, no trabalho! Gente jogando pra platéia. Trabalhando pra ser visto... amando por conveniência...
Aos que vencerem, o milhão, o topo, as capas de revistas, quem sabe, as novelas!!! Aos que perderem, a triste insígnia na biografia: “ex-BBB”!!!! Já garante umas idas nos programas periféricos dos canais concorrentes da matriz global.
Orwell falava, na sua grande crítica ao stalinismo, descrita na obra “1984”, de um Big Brother em que um totalitarismo controlava cada passo e respiro de seus súditos. As pessoas eram vigiadas o tempo todo. O Big Brother da TV Globo, uma franquia do original, nascido em 1999, na Holanda, tenta passar às pessoas a impressão inversa, de que controlam algo. Afinal, acompanham, divertem-se, debatem, torcem e... votam!!! Ô tristeza essa, do voto que é confundido com participação, do voto que se vende como concessão de poder. Mas na verdade, o poder não é do espectador. Ele apenas fica ali, sendo adestrado, condicionado, e na hora que lhe é reservada, aperta um botão e produz o trabalho esperado. E ainda se orgulha de ter eliminado o fulano ou o sicrano, ou de ter sido decisivo na vitória do “Alemão do BBB”! Vejam: No Big Brother de Orwell o espectador era o governo, embora o cidadão controlado assistisse aos discursos e normas transmitidas pela TV da ditadura. Agora, a ilusão é de que “o governo” são os espectadores, que decidem futuros, milhões, capas da Playboy.
E o que acontece na Casa do BBB, acontece na Casa Brasil. Tudo mais acentuado agora, neste tempos de jornalismo espetáculo e de campanhas políticas de sabonete e margarina. Fica o eleitor ali, acompanhando a novelinha política e na hora “h”, vai lá, põe seu voto na urna. Depois esquece. Iludido, acha que já “participou”.
Devíamos observar o Big Brother pela ótica da Constituição Federal, cujo preâmbulo e primeiros artigos apontam para a sociedade brasileira o caminho da fraternidade, da ética, da inclusão, da erradicação da pobreza e da cidadania. E, mais, pela ótica específica do Art. 221 da Carta Maior, que exige da emissoras de rádio e televisão a preferência pelas programações educativas, artísticas, culturais e informativas, a promoção da cultura nacional e regional, o estímulo à produção independente e regional e, por último, mas garantia maior importância: o “respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família”.
Um programa que faz acompanhar dramas artificiais mal interpretados, deixando esquecidos os dramas reais que moram do lado de fora da porta, não pode fazer bem à psique de uma sociedade. Um programa que consagra o jeitinho, a esperteza e o “jogo”, não pode fazer bem à construção dos valores de jovens. Um programa que consagra a valorização da mulher pelas carnes que possa mostrar sem pudor, não ajuda à definição do papel feminino na cabeça de nossos adolescentes.
Hoje vemos, nas escolas brasileiras, tanto essa ética da exclusão, quando esse sexismo, respondendo à chamada, diariamente. Resultado: indisciplina, violência, bullying, episódios sexuais cada vez mais frequentes. O que se aprende na escola vai para a vida, não? Por isso, uma rusga de balcão de boate vira briga campal e logo, assassinato. Meninas que aprenderam que rebolar para as câmeras é um caminho para o sucesso, buscam ser misses, modelos, e acabam desviadas para a prostituição infanto-juvenil.
O que defendo, então? Censura? Claro que não! Defendo e clamo pela responsabilidade de governo e emissoras de TV, para que cumpram a Constituição. Se dão o veneno, que dêem o antídoto! E o antídoto para o BBB não é a Favorita, convenhamos. O antídoto está lá, na Constituição: educação, cultura, regionalização, valores! Essa história de “dar ao público o que ele quer” é conversa de publicitário. O que o público quer não é o que dá mais ibope. O que o público quer é o que a Constituição definiu. Se você começar a exibir execuções reais pela TV, haverá público. Para pornografia também. Até para as coisas indizíveis, público haverá. Não faz muito tempo, antes da mancada do Gugu com a falsa entrevista com atores disfarçados de líderes do PCC, a disputa Faustão x Gugu era um lixo. E a audiência, ávida, atrás da baixaria maior.
A Constituição não admite a baixaria. Pelo menos não num veículo de utilidade pública, que deve ser usado para o bem comum e para cumprimento dos objetivos do Estado brasileiro.
Logo, concluindo, o Big Brother, ao divulgar a ética da exclusão, ao privilegiar a mulher-objeto, ao indicar que “pelo jogo” vale tudo, ao ajudar a alimentar a alienação da população com a sedução da ilusória participação telefônica, não ajuda, nesta quadra perigosa da vida nacional, não ajuda na formação de um povo consciente e cidadão. Com o histórico de formação do povo brasileiro, de consolidação do sincretismo de tantas hipocrisias, de edificação do “jeitinho” como modo de sobrevivência, estimular a alienação e incentivar a secundarização da boa fé, o “bom-mocismo” de circunstância, parece ser jogar pólvora no incêndio. Com o carvão que resulta, se escreve num retalho de Constituição que sobra do fogo: -Uma nação alienada, big-brotherizada, não sustenta um Estado de Direito.
Serventuário de Justiça do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, http://denilson_araujo.blog.uol.com.br/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DENILSON CARDOSO DE ARAúJO, . Porque o Big Brother enfraquece o estado de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 abr 2009, 10:22. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17205/porque-o-big-brother-enfraquece-o-estado-de-direito. Acesso em: 22 nov 2024.
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