"Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo.
Transbordei-me, não fiz senão extravasar-me.
Despi-me, entreguei-me.
E há em cada canto de minha alma
Um altar a um deus diferente."
Fernando Pessoa
Alguns ainda acreditam que o juiz, tão-só por formação e dedicação, possa ser o redentor da crise brasileira.
A crise social é a situação grave em que os acontecimentos da vida social, rompendo padrões tradicionais, perturbam a organização de alguns ou de todos os grupos integrados na sociedade.
A sociedade brasileira está em crise e é crítica. Resta-nos o consolo de suspeitar que o seu desenvolvimento só possa decorrer de um processo crítico: felizmente está em crise, pois pior seria se permanecesse infensa ao turbilhão de conflitos que carrega em seu seio.
São vertentes da crise brasileira:[1]
a) no plano sócio-econômico, a crise de hegemonia dos setores dominantes, irresponsavelmente atrelados ao intuito predatório, herdado do período colonial;
b) no plano político, a crise de legitimação do regime democrático representativo, evidenciada pela pouca credibilidade da classe política; e,
c) no plano jurídico-institucional, a crise da matriz organizacional do Estado, que viu esgotada a capacidade de imposição de seu modelo centralizador e corporativo, cooptador e concessivo, intervencionista e atomizador quer dos conflitos sociais, quer das contradições econômicas.
Crise implica em crítica e em julgamento, mas a segurança no julgamento decorre da certeza de percepção da realidade, o que parece impossível pela própria instabilidade da situação.
Daí porque surgem as contradições no estabelecimento de estratégias que possam vencer a própria crise: tais contradições estão na sociedade e permeiam o produto do esforço social, como, por exemplo, a própria Constituição de 1988.
Produto da sociedade, elaborada em longo e tumultuado processo constituinte, a Carta da República não pode deixar de conter as contradições do poder que a elaborou.
Com o idêntico fervor do fiel ao proclamar o "vade retro, Satanás", procuremos exorcizar a tentação de exigir que a Constituição, pelo mágico fetichismo de sua expressão gráfica, seja a redenção da sociedade, sobranceira às forças que a criaram, em olímpica neutralidade:
"A Constituição, legitimada pela aceitação da maioria, não é só um fenômeno restrito ao interesse dos juristas: antes de ser o Código Político, é o estuário em que se precipitam as dúvidas, as crises, os sonhos e a realidade de toda a sociedade.
A Constituição é a criatura cujo criador, consciente de suas imperfeições, tenta mudar a História, aspirando a um ato tão perfeito que suplante seus caracteres humanos.
Depositam-se na nova Constituição todas as esperanças.
Dela se pretende que, em um só mágico movimento, o destino seja alterado pela libertação de todas as cadeias; nela suspeitam-se as artimanhas do inimigo e escamoteiam-se os pecados que refletem a própria alma - alguns apenas vislumbram os próprios direitos e privilégios, esquecidos de que os mesmos só existem porque todos temos deveres e obrigações.
Ela não é somente uma neutra enumeração dos órgãos públicos, fins do Estado, direitos e deveres individuais e coletivos ou um nebuloso programa de atuação - o que nela importa, prepondera sobre todas as outras facetas, é o modo de funcionamento, pelo qual se realiza, transforma a realidade e cumpre o fim esperado.
. . .
O aspecto funcional da Constituição, no entanto, nela não se esgota, pois encontra seus limites nas instituições que por ela são reconhecidas e nos homens que, embora não os possa escolher, com ela devem conviver. A Constituição somos nós."[2]
A contradição sócio-econômica da Constituição está na sua própria essência.
De um lado, saudosa do modelo de Estado-absenteísta e correspondendo ao recrudescimento mundial do sistema de livre-empresa, intenta garantir o status quo pela inócua afirmação do indivíduo perante as forças sociais, reservando-lhe uma área de atuação infensa ao poder público, através da proclamação dos direitos liberais, algumas vezes denominados "liberdades". Tais direitos têm, por conteúdo, a reserva ao indivíduo de uma área livre de atuação, intangível ao poder, como se vê no princípio da irretroatividade da lei, a garantia do direito de propriedade, a liberdade da atividade comercial e produtiva etc.
O individualismo filosófico, e suas derivações, o liberalismo político e o capitalismo econômico, todos pressupõem a igualdade dos integrantes da sociedade.[3]
Por outro lado, aspirando a eliminação, ainda que lenta e gradual, da discriminação social (art. 3º), a Constituição institui mecanismos de transformação pela proclamação de direitos de atendimento às necessidades diárias e permanentes, correspondendo a um programa para fazer e conservar a igualdade entre os membros da sociedade política, no dizer de Pontes de Miranda. Os direitos "sociais" (art. 6º) ou "novos direitos", têm o conteúdo positivo de prometer prestação de serviço público concreto e divisível: educação, saúde, justiça, lazer, trabalho e outros; decorrem da desigualdade, natural ou criada, existente entre os seres sociais e ensejaram, de alguns, a crítica de ser a Constituição "utópica-idealista".
A contradição política da Constituição está no dilema entre os modelos de democracia representativa (ou indireta) e direta (por alguns chamada "participativa").
O art. 1º, parágrafo único, proclama a nossa democracia mista, em que predomina o modelo representativo, pois diz que, em regra, cabe ao representante eleito o exercício do poder, ficando as formas de participação restritas à previsão constitucional.
A democracia indireta é instrumento do liberalismo e visa permitir a predominância do interesse majoritário (ao menos do ponto de vista eleitoral) na tomada da decisão; a democracia direta assegura a dispersão do poder decisório entre órgãos estatais, entidades da sociedade civil e cidadãos.[4]
A contradição jurídico-institucional da Constituição decorre do reconhecimento do fato da dispersão do poder do Estado, cujo centralismo autoritário correspondia às necessidades do Estado colonial mas hoje é incompatível com a legitimidade do exercício do poder. Daí porque a Constituição, cada vez mais, prevê a existência de núcleos setoriais de poder, assegurando autonomia a entes públicos, nem sempre estatais: sindicatos, universidades, Ministério Público, Poder Judiciário, partidos políticos, corporações profissionais e entes de produção econômica.[5]
Responsável primário pela aplicação do Direito e, assim, o primeiro assegurador da eficácia constitucional, o juiz está neste turbilhão de contradições.
O juiz defronta-se com os efeitos da crise sócio-econômica ao tentar resolver causas que decorrem das mazelas sociais, em país de dimensões continentais e classes sociais nitidamente diferenciadas; aí constata que o brocardo "dar a cada um o que é seu" não se aplica quando inexiste distribuição justa das rendas, o que mais se agrava pelo processo inflacionário crônico, a punir excessivamente o assalariado.
As crises política e institucional não passam ao largo do Judiciário, que, cada vez mais, julga causas transindividuais, na ótica da defesa de direitos públicos, difusos e coletivos, quando o autor se legitima extraordinariamente para defender, em nome próprio, relevantes interesses comuns a grupos ou a toda a comunidade.
A matéria de trabalho do juiz é o conflito, que é a oposição e a luta entre diferentes forças.
Mais avulta o papel do juiz, neste contexto, pelo fato de que nosso sistema jurídico-constitucional praticamente não lhe interditou, ao menos formalmente, qualquer área de atuação.
Pouquíssimos sistemas jurídicos exigiram tanto do juiz, em verdadeira universalidade de cognição.
Perante a Toga, submetem-se o indivíduo, os grupos sociais organizados, o Estado, seus órgãos e entidades, todos proclamando a condição de titulares do direito subjetivo de exigir a resolução do conflito.
Corolário do poder-dever de julgar e de tudo conhecer, está o sempre reclamado dever de prestar justiça, como correspectivo ao direito de ação, que é o poder de qualquer ente de exigir a resolução do conflito.
Exercendo a atividade estatal especificamente voltada para a resolução dos conflitos (jurisdição), que é deflagrada pela ação, o juiz dirige o processo, que é a relação social, prevista pelo Direito, instrumentada para a resolução do conflito.
Jurisdição, ação e processo constituem a trilogia voltada para a resolução do conflito, na qual o juiz é o centro e principal responsável, a despeito da essencialidade de funções também voltadas para a administração da justiça, como a Advocacia, a Defensoria Pública, o Ministério Público, a Polícia Judiciária e os sistemas fazendário e penitenciário.
As restrições formais ao exercício da jurisdição podem ser de caráter temporal, como a que se vê no art. 217, § 2º, referente à instância disciplinar desportiva, ou decorrentes do sistema presidencialista de governo, aí abrangendo os atos supremos de cada Poder, como a declaração de guerra, a feitura da paz, a decretação de suspensão das garantias constitucionais, os atos internacionais. Mesmo assim, resta o controle judicial sob os aspectos formais, quando houver, ainda que potencialmente, lesão a direito (art. 5º, XXXV).
Bem mais extensas são as restrições materiais à jurisdição, todas reflexos da ineficácia do poder estatal em determinados setores sociais.
Há grupos sociais aparentemente imunes ao poder do Estado, como os "banqueiros" do jogo do bicho, o narcotráfico, os fazendeiros escravizadores e, em outro nível, as grandes corporações e empresas, que relutam em apresentar, em processo judicial público, determinados aspectos de sua atuação, optando, cada vez mais, por formas alternativas de composição dos litígios, como, por exemplo, a arbitragem.
O processo tradicional também tem sido insuficiente para a resolução de determinados conflitos, como aqueles decorrentes de ocupações coletivas da propriedade, em que a tutela jurisdicional exige, de início, a citação de número indeterminado de pessoas e, a final, em sua execução, da atividade de assistência social do Poder Executivo, que, muitas vezes, prefere o singelo emprego da força policial. O
A grande restrição material à jurisdição está, desgraçadamente, no fato da marginalização de dois entre três brasileiros, que, pela pobreza ou miséria, não têm direitos a pleitear ou, se os têm, não dispõem de consciência para fazê-lo.
Daí a crise transborda para as expectativas do papel do juiz.
Sujeito do poder estatal e social, alguns somente vislumbram na imparcialidade do juiz a neutralidade fria e olímpica, incompatível com aquele que tem o dever primário de resolver o conflito, para tal, levar o processo ao momento da decisão.[6]
O protótipo do juiz, como observador do fragor da batalha entre as partes, em que seria não só neutro, mas alheio e distante, vai corresponder ao padrão do Estado liberal-capitalista, absenteísta, que somente pode regular as atividades individuais por lei formal, necessariamente genérica e abstrata e, assim, desatenta aos caracteres pessoais (veja-se o disposto no art. 5º, inciso II, da Constituição, exigindo lei genérica e abstrata para regular as condutas individuais).[7]
Os autores antigos até mesmo diziam que o juiz seria, no processo, o "conviva de pedra".
Mas o juiz tem o dever moral e jurídico de não ser o "conviva de pedra", mesmo porque não se despe de seus caracteres humanos.[8]
Na função de diretor do processo, cabe ao juiz assegurar às partes a igualdade de tratamento (Código de Processo Civil, art. 125, I) o que lhe exige, em determinados momentos, tratar os iguais com igualdade e os desiguais com desigualdade, atuando na busca de maior igualdade.
Dirigir o processo é sempre lhe impulsionar o curso, ainda que seja necessário vencer a resistência da parte; é perceber a realidade fática que, muitas vezes, não está expressa nos limites dos autos, determinando as provas necessárias à instrução do processo, indeferindo as diligências inúteis ou meramente protelatórias (Código de Processo Civil, art. 130); é apreciar livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pela parte (Código de Processo Civil, art. 131); é expressar na sentença o sentimento, indicando os motivos que lhe formaram o convencimento (Constituição, art. 93, IX).
Os cidadãos não têm direito adquirido à sabedoria do juiz, mas têm direito adquirido à independência, à autoridade e à responsabilidade do magistrado.[9]
A lei é genérica e abstrata e não poderia, por si só, propiciar a solução mais adequada nos casos individuais e concretos que o juiz examina.
Desconfia-se da lei, porque, segundo alguns, seria anacrônica, incapaz de acompanhar as mudanças sociais.[10]
Também se inquina a lei de refletir os interesses momentâneos de grupos que, nem sempre, estariam a atender a outros interesses que não fossem os seus; esquecem-se os críticos da característica do sistema representativo, em que o legislador eleito não pode deixar de se influenciar pelo eleitorado.
Além do mais, a regra genérica e abstrata não pode prever todas as soluções que os novos tempos exigem.
Daí o conflito para o julgador: Lei ou Justiça?
Muitos confundem a Lei (Lex) com o Direito (Ius) e com a Justiça (Justitia), embora cada um deles tenha sentido próprio e ofereçam aspectos multifários.
Para alguns, a Lei é o direito positivo, o conjunto de normas genéricas e abstratas impostas pelo legislador; para outros, a Lei se confunde com o Direito, que é mais que o direito positivo, pois abrange os costumes e os princípios gerais.
Outros vislumbram que, no Direito, se esgota a Justiça, a qual poderia oferecer, também, a perspectiva de visão do mundo que se considera a mais adequada para determinada sociedade em dado momento histórico.[11]
Direito é vocábulo empregado com sentidos diferentes, como se vê na lição de André Franco Montoro:[12]
1 - como a lei ou norma jurídica (direito-norma), na frase "o Direito brasileiro proíbe o duelo";
2 - como a faculdade ou poder de agir (direito-faculdade ou direito-poder), na expressão "o Estado tem direito de cobrar impostos":
3 - como expressão de justiça (direito-justo), na frase "o salário é direito do trabalhador":
4 - como fenômeno social (direito-fato social), na expressão "o Direito é um setor da realidade social"; e
5 - como disciplina científica (direito-ciência), na expressão "o estudo do Direito requer métodos próprios".
Não existe, pois, somente um significado para o Direito, mas diversas realidades distintas, que devem ser apuradas para se perceber o conteúdo.
Em decorrência, visando adaptar o Direito às mudanças sociais, sem que perdesse o seu caráter dogmático, novas correntes oferecem soluções para o que denominam "imobilismo jurídico".
Necessariamente, as transformações deveriam decorrer, inicialmente, de profunda alteração da estrutura judiciária e do papel do juiz, pois a ele cabe o papel de aplicação do Direito no caso concreto e em torno dele giram todos os personagens do processo. Por isso, tais correntes parecem fazer a oposição dilemática entre "legislação/jurisdição" ou "lei/sentença" ou "legislador/juiz", como se fossem opções de antíteses insuperáveis e não estivessem, como estão, em intensa relação dialética, pois somente serão eficazes se complementares entre si.
Temos a Escola do Direito Alternativo, surgida na Europa há mais de vinte anos e que, no Brasil, é divulgada principalmente pelos juízes do Rio Grande do Sul, em cuja escola da magistratura ganhou foros de matéria curricular.
Em tese de mestrado, o juiz catarinense Lédio Rosa de Andrade bem examina o enfoque alternativo à magistratura, tendo sua obra o ponto culminante no capítulo IV, intitulado "Magistratura como instrumento de transformação social", onde afirma:
" Com o uso alternativo do direito não se trata de fazer a revolução com o direito, mas de reconduzir as interpretações jurídicas progressistas ao desenvolvimento das contradições sociais, não para a sobrevivência das instituições, senão para restituir à classe obreira a capacidade criadora da história, diz Barcellona.
. . .
Entende-se possível a tranformação social por formas pacíficas, podendo, os magistrados, participar dessa liça com destaque, desde que entendam o lugar por eles ocupado, percebam a quem tem servido sua forma de atuar e modifiquem sua prática judicial. Portanto, quando se fala de revolução, não se está pregando, de forma alguma, a luta armada, pois não é essa a única, nem a melhor, opção para a mudança da sociedade. Ao contrário, entende-se ser o processo dialético da procura da hegemonia de uma nova visão, guerra de posição, conforme conceitua Antonio Gramsci, a firma mais eficaz de alterar as relações de poder, sem grandes traumas, sofrimentos ou hecatombes, e, também, a mais justa, pois permite à população escolher seu próprio caminho. Atitude revolucionária, todavia, por visar a modificar as instituições, tornar o uso do poder eqüitativo, transferir o comando da sociedade, entregando ao próprio povo a direção de seu destino, transformado em autor de sua história."[13]
O movimento apresenta outras denominações, como, por exemplo, o Direito Insurgente[14] ou Direito achado na rua. [15]
O uso alternativo do Direito não implica, no entanto, em rompimento absoluto com a legalidade, como se observa, por exemplo, em trabalho versando sobre o papel do Ministério Público, instituição voltada para a legalidade estrita, onde se concluiu:
"1. A evolução histórica do Ministério Público revela o seu deslocamento institucional na superestrutura do Estado, passando a integrar e a representar a sociedade civil. O Ministério Público é um órgão da sociedade civil.
2. Como órgão integrante da sociedade civil, cumpre ao Ministério Público incrementar o processo de democratização da sociedade brasileira, canalizando os valores reinantes no seio das classes populares e contribuindo, na sua esfera de atuação, para a superação da alienação política e econômica dessas classes.
3. Como canal de demandas sociais e coletivas, o Ministério Público alarga o acesso à Justiça e contribui para a democratização do aparelho jurisdicional do Estado.
4. O Ministério Público atua, assim, como agente criador e aplicador do direito, adequando-o à realidade social e subjacente, permeada de conflitos complexos e diversificados, irredutíveis a um tratamento unitário e formal pelo direito posto."[16]
Vê-se, pois, que tais correntes não aspiram a criação de um novo Direito, mesmo porque o Direito que vislumbram não perdeu o contato com o Direito que aí está; não revolucionam o Direito, simplesmente pretendem a reforma de seu uso.
O Direito é sempre o mesmo, independentemente de seu uso.
O Direito não se resume ao apego excessivo ao texto legal, porque já ensinavam os clássicos que o Direito náo se esgota na Lei; no entanto, não se esqueça o juiz das palavras de Eduardo Couture: "o juiz é um homem que se move dentro do Direito como o prisioneiro dentro de seu cárcere" - somente com o Direito e através do Direito pode ser alcançado a Justiça.
Também o juiz, como ser humano que é, tem o direito subjetivo, o dever jurídico e o dever moral de lutar pela Justiça, de fazer do trabalho o produto de seu espírito.
Seu ofício também exige técnicas que somente serão criadas e desenvolvidas pela projeção de seu espírito ao produto do trabalho; para tal, deve se socorrer de sua formação e de sua ciência, mas não pode perder de vista de que o brocardo "fiat Justitia pereat mundus" ("faça-se Justiça, ainda que o mundo pereça") não corresponde mais à necessidades do mundo moderno e que o ato de poder não pode se traduzir em injustiça.
A dogmática tradicional ou as correntes alternativas nada mais são que tentativas de abrir caminhos mais amplos para o juiz no seu ofício de realizar o Direito; são instrumentos e não o fim de sua missão. Delas deve se socorrer, mas não pode fungi-las, de instrumentos, em fim.
Ao juiz basta incorporar seu espírito à sentença, pois ela expressa seu sentimento de Justiça.
Ao juiz basta julgar para realizar o Direito; não realizará o Direito se denegar a Justiça.
Julgar é preciso.
[1]José Eduardo Faria, Justiça e conflito - os juízes em face dos novos movimentos sociais, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1992, 2a. ed., p. 17.
[2] Nagib Slaibi Filho, Anotações à Constituição de 1988 - aspectos fundamentais, Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1992, 3a. ed., apresentação.
[3] "As garantias jurídicas, ou seja, vincular as funções do Estado a normas gerais, protegem, junto com as liberdades codificadas no sistema de Direito Privado burguês, a ordem do "mercado-livre". Intervenções estatais sem autorização através de uma lei não são, da perspectiva de seu sentido sociológico, primariamente condenáveis por ferirem princípios de justiça estatuídos por direito natural, mas simplesmente porque seriam imprevisíveis e, por isso, quebrariam a espécie e a extensão de racionalidade que há no interesse das pessoas privadas operando capitalisticamente. Senão faltariam exatamente aquelas "garantias da previsibilidade" que já Max Weber descobriu no capitalismo industrial: o cálculo das chances de lucro exige um intercâmbio que transcorra de acordo com as expectativas de probabilidade. Por isso é que estar no âmbito da competência e de acordo com uma justiça formal se tornaram critérios do Estado de Direito burguês: administração "racional" e justiça "independente" são, a nível da organização, os seus pressupostos. A própria lei, a que o Executivo e a Justiça precisam se ater, tem de ser igualmente obrigatória para todos: não deve, em princípio, permitir nenhuma dispensa ou privilégio." (Jürgen Habermas, Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa (Strukturwandel der vffentlinchkeit), tradução de Flávio K. Kothe, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1984).
[4] Nagib Slaibi Filho, Povo e poder; meios de integração, artigo no Livro de Estudos Jurídicos nº 2, coordenação de James Tubenchlak e Ricardo Silva de Bustamante, Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Jurídicos, 1991.
[5] Após lembrar a visão liberal de que os direitos fundamentais representam uma área interdita à atuação estatal, Zippelius afirma que tal conceito seria mais adequado ao Estado típico do século XVIII e hoje proporcionaria uma garantia incompleta da liberdade individual "a qual pode ser ameaçada também a partir de outros pontos, como, por exemplo, a partir daqueles grupos e associações que têm a capacidade de fixar normas profissionais e de conduta e de as impor aos seus membros". O mesmo mestre transcreve a lição de Nawiasky-Leusser: "a pessoa está colocada perante não só a força da comunidade encarnada no Estado, mas também perante as forças econômicas próprias de indivíduos e de associações e que, em atenção a isso, uma das mais sérias tarefas da lei constitucional é a proteção contra o abuso da força que pode ser praticado por aqueles indivíduos e associações". Contudo, "não é possível tirar rigorosamente a conclusão de que todos os direitos fundamentais, como direitos subjetivos públicos, sejam oponíveis também contra todo e qualquer indivíduo no plano geral das relações jurídicas privadas. Importa não simplificar excessivamente. 'A aplicação indiscriminada dos direitos fundamentais às relações jurídicas privadas restringiria a projeção livre da personalidade de modo intolerável, anularia a liberdade em nome da mesma liberdade'(G. Dahm). Só o Estado paternalista é que se atribui a si próprio a missão de defender os cidadãos contra si próprios numa extensão tão grande quanto possível" (Reinhold Zippelius, Teoria Geral do Estado (Allgemeine Staatlehre), 2ª edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1984, p . 173).
[6] Anedoticamente, dizem que o juiz, se fosse sempre e irredutivelmente imparcial, julgaria todas as lides empatadas e condenaria o escrivão nas custas...
[7] "Historicamente la cualidad preponderante que parece inseparable de la idea misma del juez, desde sua primera aparición en los albores de la civilización, es la imparcialidad. El juez es un tercero extrano a la contienda que no comparte los intereses o las passiones de las partes que combatem entre sí, y que desde el exterior examina el litígio con serenidad y con despego; es un tercero inter partes, o mejor aún, supra partes." (Piero Calamandrei, Proceso y democracia, tradução de Hector Fix Zamudio, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1960, p. 60.
[8] "Como julgador, a primeira coisa que faço, ao defrontar-me com uma controvérsia, é idealizar a solução mais justa de acordo com a minha formação humanística, para o caso concreto. Somente após recorro à legislação, à ordem jurídica, objetivando encontrar o indispensável apoio" ( Supremo Tribunal Federal, Min. Marco Aurélio, relator da AOE no. 13-DF). "A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil. ... Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando "contra legem", pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum"(Ministro Sálvio de Figueredo, Revista do Superior Tribunal de Justiça n° 26, p. 384)."A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar à injustiça"(Revista do Superior Tribunal de Justiça, n° 4, p.154).
[9] Eduardo J. Couture, Fundamentos del derecho procesal civil, Buenos Aires, Ediciones Depalma, 1988, 3ª ed., ps. 41/42.
[10] O Código Civil de 1916, no art. 1246, não poderia nunca suspeitar do tormento inflacionário em que vivemos, há décadas. No entanto, decidindo contra lege, não há julgador que aplique literalmente tal dispositivo.
[11] Sintoma da confusão de conceitos, foi a afirmação de juiz de Direito, que se dizia incapaz de dar à lide outra solução que não fosse a legal, afirmando: "Eu sou juiz de Direito, o Tribunal é que é de Justiça..."
[12] André Franco Montoro, Introdução à Ciência do Direito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1º volume, 12a. edição.
[13] Lédio Rosa de Andrade, Juiz Alternativo e Poder Judiciário, São Paulo, Editora Acadêmica, 1992, pp. 85/86.
[14]Michel Pressburger, Direito Insurgente, Rio de Janeiro, Instituto do Apoio Jurídico Popular, 1987.
[15] José Geraldo de Souza Santos (organizador), o Direito achado na rua, Brasília, Universidade de Brasília, 1987.
[16] Antonio Alberto Machado e Marcelo Pedroso Goulart, Ministério Público e Direito Alternativo, São Paulo, Editora Acadêmica, 1992.
Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Conferencista na Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, onde coordena a área de Direito Constitucional. Professor Titular da Universidade Salgado de Oliveira - Universo. Membro honorário do Instituto de Advogados Brasileiros. Livre-docente em Direito do Estado, pela Universidade Gama Filho. Especialista em Metodologia do Ensino Superior em nível de pós-graduação lato sensu. Membro Benemérito da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Autor de vários livros jurídicos. Home page: www.nagib.net.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Nagib Slaibi. O conviva de pedra e a insurgência alternativa do direito achado na rua Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 abr 2009, 07:05. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17317/o-conviva-de-pedra-e-a-insurgencia-alternativa-do-direito-achado-na-rua. Acesso em: 23 dez 2024.
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