Com o propósito de dividir nossa experiência com os colegas do Ministério Público, particularmente com os que se angustiam diante de processos morosos, infindáveis e de resultados inócuos, tornamos público o modo como temos administrado a 13ª e a 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília.
Tal angústia muitos a sentem. É a aflição de ver anos e anos de investigações policiais jogados à lama e de instruções criminais tornadas imprestáveis. É a vergonha de mostrar ao público as deficiências da Justiça (aqui entendida como englobando todos os órgãos incumbidos de sua Administração), impotente diante de dificuldades criadas ora pela burocracia, ora pela falta de boa-vontade dos operadores jurídicos, ora pela insensibilidade dos legisladores ou pelo fetichismo legalista dos acomodados.
Pressuposto indispensável dos resultados que adiante mencionaremos é, acima de tudo, um salutar entrosamento e um permanente diálogo entre os signatários e o Juiz titular da 7ª Vara Criminal, João Batista Teixeira, Magistrado de notável disposição para o trabalho, sobre quem deve recair o mérito de haver reorganizado aquele juízo, limpando escaninhos, regularizando livros cartorários, estimulando os serventuários, impondo, enfim, sob sua batuta, o ritmo de trabalho daquele ofício judicial.
Assim é que uma das principais conseqüências desse esforço conjunto tem sido a rapidez com que tramitam os processos e os resultados satisfatórios que temos alcançadoBasta dizer que o julgamento de acusados soltos, entre a data de oferecimento da denúncia e a sentença, não tem ultrapassado - salvo raras exceções - o prazo de 30 dias. Quanto aos acusados que se encontram presos, aquele prazo geralmente não excede 15 dias, já tendo ocorrido um caso em que no quarto dia após o oferecimento da denúncia o Meritíssimo Juiz prolatou sentença, que, na espécie, foi condenatória.
O leitor poderá imaginar, então, que, para se alcançarem esses números, realizamos dezenas de audiências por semana para desobstruir a pauta. Todavia, embora tenha sido essa a rotina inicial antes mesmo de assumirmos nossas promotorias, realiza-se hoje uma reduzida quantidade de audiências por semana, o que permite, na mor das vezes, concluir-se a instrução criminal na semana seguinte ao oferecimento da denúncia.
Qual seria, então, a "mágica" desses números? Nenhuma. Em verdade, o que há é a conjugação de esforços criativos e racionais para a utilização dos instrumentos legais e funcionais postos à nossa disposição, através de vários procedimentos concretos, a saber:
1. O exame, o diagnóstico e a solução de uma patologia social que se definiu como violadora de um tipo penal passa, necessariamente, pela adoção de critérios de razoabilidade e de bom senso no uso das alternativas possíveis diante do ordenamento jurídico. Para tanto, no enfrentamento dos permanentes problemas que se põem nos casos confiados ao nosso exame, priorizamos a interpretação sistemática e teleológica da lei, atentos às peculiaridades do caso concreto, por entendermos que lex non est textus, sed contextus.A técnica do Direito tem a sua importância como mecanismo de desenvolvimento científico, na busca de meios para a otimização da prestação jurisdicional. O processo há de ser entendido, pois, como um simples veículo que conduz o profissional do Direito ao seu objetivo, que é a solução justa do litígio. A atuação funcional, assim, não pode jamais perder de vista que o processo não se justifica por si mesmo, sendo apenas um instrumento de atendimento ao consumidor do Direito.
1.1. Essa concepção se aplica nas duas fases da persecução penal. No inquérito policial, o Promotor de Justiça limita-se a buscar a materialidade do crime e os indícios de que o indiciado ou suspeito foi o seu autor, sem a preocupação de esclarecer todos os detalhes da dinâmica do evento criminoso, sob pena de transformar o procedimento investigatório em verdadeiro processo. Já na persecução in iudicio, a atividade probatória deve limitar-se ao estritamente necessário para a obtenção do resultado justo, seja a condenação, seja a absolvição do acusado.
2. Visto o processo como instrumento para a obtenção de um provimento justo e eficaz, não se justifica a instauração de ações penais cujos resultados, certamente, serão inócuos. Como exemplos, podemos mencionar os casos em que a pena a ser eventualmente imposta em sentença condenatória não ultrapassaria determinado quantitativo, suficiente para gerar a prescrição retroativa da pretensão punitiva (deixando claro que tal avaliação há de ser responsável, sob pena de incorrer-se em mero exercício de futurologia), ou, ainda, nas hipóteses em que, existindo somente a prova testemunhal do fato - muitas vezes limitada à palavra isolada da vítima, desacompanhada de qualquer outro indício - dificilmente ela se repetirá em juízo com a necessária idoneidade para respaldar um decreto condenatório. Nessas situações, para preservar o sistema de ações inúteis, que apenas ocupariam, desnecessariamente, o precioso tempo das partes, do juiz e dos protagonistas do crime, com efeitos nefastos à credibilidade e à eficiência da Justiça, é preferível arquivar o inquérito policial, aduzindo faltar justa causa (falta de lastro probatório mínimo de autoria e materialidade delitiva) ou interesse processual (entendido sob a ótica do binômio necessidade-utilidade do futuro provimento jurisdicional), mediante a devida fundamentação.
2.1.. Ainda no terreno da instrumentalidade do processo, buscamos alcançar o discernimento, qualidade que nos auxilia a distinguir, de um lado, quando devemos ser breves, e, doutra parte, quando devemos esmiuçar jurisprudência e doutrina, aprofundar argumentos e expor todo o nosso saber jurídico para convencer o Magistrado a respeito de nossa posição. Deveras, a sobrecarga de trabalho de todos os protagonistas da Justiça exige objetividade e, sempre que possível, simplicidade e brevidade nas manifestações processuais. Peças enxutas é o que se almeja, evitando-se rodeios inúteis, clichês batidos, reproduções e citações inseridas com o único propósito de avolumar a peça. Exemplo dessa anomalia é constatarmos, ainda, alegações finais com relatório excessivamente minucioso, muitas vezes mais extenso que o próprio relatório da sentença, este sim, garantia do jurisdicionado.
3. Um especial cuidado tem sido adotado quando do exame preliminar de iniciais de queixa-crime, uma vez que somente devem ser levadas ao conhecimento do judiciário criminal aquelas questões que realmente estejam a exigir o amparo do Direito Penal. Nestas hipóteses, exige-se do querelante, por meio de seu procurador, o preenchimento cabal de todas as condições da ação e pressupostos processuais, para que desde o início do feito se possa vislumbrar resultado outro que não mera sentença declaratória de extinção de punibilidade por perdão, perempção, prescrição, etc.
4. Também sob a influência da razoabilidade e do bom senso, procuramos ter presente que o Direito Penal há de ser entendido como ultima ratio para a solução dos litígios humanos. Adotando-se como praxe a idéia da intervenção mínima do Direito Penal, relega-se para outros ramos da ciência jurídica a medicação para a cura do conflito humano que inicialmente se supôs pertencente ao Direito Penal.
5. Devemos, outrossim, estar conscientes de que somos um seleto grupo de servidores que dispensaram anos de estudos para vencer um rigoroso concurso de provas e títulos, o que nos credencia, em tese, como agentes políticos capazes e inteligentes, dotados de prerrogativas e poderes sem par em outros países. Porém, não é a mera aprovação em concurso público que nos legitima perante a sociedade, mas a procura do valor "justiça" em todas as nossas intervenções, orais e escritas. Justiça nem sempre encontrável na letra fria da lei, mas sim nos princípios que subjazem a todo sistema jurídico baseado na dignidade da pessoa humana. Acreditamos que o uso dos instrumentos que o Direito (e não apenas a lei, parte do todo) nos oferece, e com o auxílio dos vários métodos de interpretação da norma jurídica, bem assim com uma visão ético-instrumentral do processo e multidisciplinar do fenômeno criminoso, é-nos possível realizar a nobre função de promover a verdadeira Justiça.
6. Os prazos postos à disposição dos sujeitos processuais são limites para a prática dos atos do processo, cumprindo-nos envidar todos os esforços para não utilizá-los inteiramente. Assim, o inquérito policial de indiciado preso em flagrante não necessita de 10 (dez) dias para ser remetido à Justiça (melhor seria diretamente ao Ministério Público, após inicial distribuição aleatória no Judiciário, como já ocorre no âmbito federal e em alguns Estados-membros), pois, na maior parte das vezes, lavrado o auto de prisão em flagrante, praticamente nada mais se faz, na esfera policial, a título de investigação. De igual modo, uma denúncia relativa a indiciado preso, inobstante o prazo legal de 5 (cinco) dias, deve ser oferecida no primeiro dia em que o Parquet tem vista dos autos. Até a eliminação de prazos se justifica eventualmente, como, e.g., por ocasião do prazo inscrito no art. 499 do Código de Processo Penal, que na maior parte das vezes pode ser dispensado pelas partes tão logo encerrada a audiência de instrução, momento em que já se sabe, normalmente, quais diligências devem ser requeridas, principalmente se já o foram com a apresentação da acusação.
7. A concentração dos atos processuais - subprincípio da oralidade chiovendiana - há de ser buscada ainda quando a lei não o determina. Para tanto, basta a anuência das partes e a certeza de que nenhum prejuízo advirá da eliminação de um prazo estabelecido em garantia do acusado. Ad exemplum, nada impede que, sob a concordância do acusado e de seu defensor, se realize uma única audiência para a oitiva das testemunhas de acusação e de defesa. Ainda com o consenso das partes, por que não se produzirem, oralmente, as alegações finais, ao encerramento da audiência de instrução, naquelas situações em que os fatos restaram induvidosamente demonstrados, de tal modo a ensejar a brevidade nas derradeiras alegações?
8. Quanto aos processos, procuramos iniciá-los com denúncias concisas, inclusive no que respeita ao rol de testemunhas, o qual deve ter sua abrangência limitada às pessoas cujos depoimentos sejam efetivamente relevantes. Por que arrolarmos todas as pessoas ouvidas no inquérito policial se apenas uma parte delas tem algo de útil a dizer em juízo? Ainda no terreno da prova testemunhal, insistências em ouvir determinada testemunha que não compareceu à audiência somente se justifica pela absoluta imprescindibilidade de seu depoimento. No tocante aos prazos processuais, como já salientado linhas atrás, procuramos não esgotá-los e até mesmo eliminá-los eventualmente. Já por ocasião das alegações finais, a postulação há de ser responsável e bem avaliada, porquanto de nada adianta requerer condenação se o conjunto probatório é totalmente inidôneo para tanto. Por fim, a interposição de recursos se justifica quando se está convicto do desacerto da decisão judicial, e da possibilidade de que o provimento da impugnação traga alguma alteração relevante na situação das partes. Se recorremos por vaidade, disputa acadêmica de posição doutrinária, ou para postular resultado que, na prática, será inócuo, com certeza nos caberá uma parcela de culpa no estrangulamento do sistema.
9. No exame minucioso que deve ser feito de todo inquérito policial que nos é distribuído, não podemos, comodamente, esperar para exercer nosso mister apenas a partir do momento em que o procedimento é concluído. Quem deve dizer se o inquérito policial está pronto ou não para a formação da opinio delicti (positiva ou negativa) é o Ministério Público. Temos arquivado inúmeros inquéritos que, a despeito de buscarem a apuração de condutas penalmente atípicas ou já prescritas, tramitavam há meses ou mesmo há anos, com baixas sucessivas, certamente justificadas pelo volume de feitos para exame. Por sua vez, várias denúncias temos oferecido inobstante pedidos de baixa, desnecessários ante a suficiência de dados para iniciar a ação penal. Em verdade, se nos conscientizarmos de que o tempo gasto hoje será recompensado amanhã, vale a pena folhearmos todos os inquéritos com pedido de baixa, indicando diligências a serem cumpridas, ou mesmo, se for o caso, já oferecendo denúncia ou pedido de arquivamento.
10. Postura outra que, conquanto não interferindo diretamente na celeridade da Justiça, acreditamos deva nortear nossa atuação, diz respeito ao tratamento dispensado aos sujeitos processuais. Juiz, advogado, acusado, vítima e testemunhas devem merecer não somente a nossa cordialidade - compatível com a firmeza de propósito, e que não se confunde com a desenfreada paixão - mas a transparência de nosso trabalho. Notadamente no que interessa à vítima, às testemunhas e ao acusado, personagens estranhos ao meio jurídico, convém fornecer, sempre que possível, as informações que lhes permitam entender o funcionamento do aparato judicial e ter conhecimento de seus deveres e direitos diante da Justiça. Com essa idéia em mente, elaboramos folheto que são entregues, na medida do possível, aos citados partícipes do cenário processual, contribuindo para otimizar-lhes a cidadania, outra das missões constitucionais do Ministério Público.
Essas são, em apertada síntese, algumas das iniciativas que temos buscado desenvolver no exercício de nosso ofício, confiantes de que somos apenas uma pequena célula desse emaranhado burocrático que é a Justiça Criminal. Nossa esperança é que a semente germine em outros terrenos, rendendo os esperados frutos em prol da sociedade a que servimos.
Promotor do MPDFT. Doutor em Direito Processual Penal, pela Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (Largo de Sao Francisco). Tese intitulada "A PROIBIÇAO DE DUPLA PERSECUÇAO PENAL (ne bis in idem): limites no Direito Brasileiro", defendida e aprovada em 18 de junho de 2007, perante Banca Examinadora composta pelos professores Antônio Magalhaes Gomes Filho, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes, Oswaldo Duek e Sérgio Shimura. Mestrado em Direito Processual Penal, pela Faculdade de Direito da Universidade de Sao Paulo (Largo de Sao Francisco) - Dissertaçao intitulada "GARANTIAS PROCESSUAIS NOS RECURSOS CRIMINAIS: IGUALDADE, AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO", defendida e aprovada em 24 de abril de 2002, perante Banca Examinadora composta pelos Professores Doutores Antônio Magalhaes Gomes Filho, Antônio Scarance Fernandes e David Azevedo Teixeira. Home page: http://www.metajus.com.br/
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CRUZ, Rogério Schietti Machado. CELERIDADE-QUALIDADE: um binômio possível Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jun 2009, 07:27. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17539/celeridade-qualidade-um-binomio-possivel. Acesso em: 23 dez 2024.
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