Resumo: A presente discussão visa discorrer sobre os rumos que nossas reações guiadas por uma manipulação adjacente dos meios de comunicação, estão nos levando. Buscar-se-á, sobremaneira, elucubrar as bases de nosso Estado, um Estado Democrático que vem sendo erradicado de seus fundamentos em prol da construção de um Estado Policialesco perpetrado por medidas insalubres e impulsivas.
“Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um.” (Fernando Sabino)
Sumário: 1. Introdução. 2. O Papel da Mídia na Sociedade Brasileira. 2.1. A Problemática da Literatura e Cinematografia Dissolventes. 2.2. Batismo de Sangue: Um Paradoxo Entre a Ditadura Militar e a Atual Ditadura do Consumo. 2.3. O Caso Cesare Battisti. 3. A Lei dos Crimes Hediondos. 3.1. Contrapartida: Declaração de Inconstitucionalidade do §1º, Art. 2º. 3.2. Crime, Mídia e Condenação. 3.2.1. Dossiê Daniella Perez. 3.2.2. A Chacina da Candelária e do Vigário Geral. 4. Processo de Administrativização do Direito Penal. 4.1. Manutenção da Credibilidade Social no Sistema Penal. 4.1.1. Imprensa e Políticas de Segurança Pública. 5. Estado de Polícia. 5.1. O Estado Policialesco de Direito. 5.2. Descriminalização dos Movimentos Sociais. 6. As Bases do Estado Democrático de Direito. 6.1. Democracia e Uma Educação Para a Cidadania. 6.2. Justiça Restaurativa e a Defesa do Estado Democrático. 6.2.1. Os Círculos Restaurativos. 7. Conclusão.
1. Introdução
A mídia tem desempenhado novas “funções” perante o sistema penal, entoando constantemente um processo e respectivo julgamento público que não defere a devida satisfação à Constituição ou às leis. Mas o problema vai ainda mais além.
Partes de uma sociedade destinada ao consumo, que relega seus cidadãos ao total despreparo com relação aos seus direitos e deveres e efetiva incapacidade de reflexão, as decisões impetradas por nossos órgãos governamentais parecem cada vez mais imediatistas e desproporcionais, não sendo exequível quem consiga obstá-las.
O crime, sendo o lado patológico do convívio social, torna-se gradativamente uma doença infecciosa, e a falha capital em nosso país, a raiz da grande maioria senão de todos os distúrbios, inclusive deste, encontra seu cerne na falibilidade educacional de nosso sistema. Somente através da implantação de uma educação para a cidadania será possível cessar a polemização dos problemas sociais.
O apelo estético, emocional e sensacionalista da mídia é capaz de direcionar o pensamento humano, transformando o processo racional em mera absorção de idéias. Idéias pré-concebidas e aceitas por indivíduos privados daquilo que de mais meritório lhe deveria se garantido: a liberdade. Liberdade para pensar, agir e ser.
Há de se combater a criminalização dos movimentos sociais através de uma educação para cidadania, para que tantas condenações e injustiças não continuem a serem cometidas.
Preâmbulo da Constituição da República Federativa do Brasil 1988
“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
2. O Papel da Mídia na Sociedade Brasileira
“A igualdade de armas não existe na mídia. Ela oferece um prêmio àquele que não só conta a melhor história, mas também a conta melhor. Ela reforça o efeito da verdade em detrimento da verdade; a sedução em detrimento da argumentação.” Antoine Garapon
“Sem lei ou justiça, sem proteção contra a taxação arbitrária, incertos quanto à vida de nossos filhos e quanto à liberdade e aos nossos direitos, vítimas impotentes do poder despótico, faltando à nossa existência unidade e espírito nacional... esta é a situação de nossa nação”.
O fragmento acima, dito por uma testemunha da situação caótica vivida pela Alemanha na passagem do século XVIII para o XIX, não me surpreenderia em nada se tivesse sido dita por alguém que viva em meio a essa contemporaneidade desordenada a qual já estamos familiarizados.
“Vítimas impotentes”. Pois bem, alguém pode argüir sobre como aceitar que, diante de toda informação a que temos acesso, é possível sermos considerados vítimas impotentes?
Vivemos uma época em que os circuitos elétricos derrubam o regime do tempo e espaço, trazendo a substituição imediata das informações por outras mais recentes, com uma rapidez que dificulta a assimilação dos fatos novos[1].
A mídia hoje, tornou-se uma das armas mais perigosas e eficazes que se poderia ter para dominar e submeter uma nação. E talvez os meios de comunicação venham influenciando de forma tão inócua e negativa devido justamente ao despreparo que todos nós, cidadãos, possuímos perante a evolução tecnológica incontrolável que nos acomete.
Veja, se não há uma base que possibilite ao ser humano pensar por si mesmo, ter suas próprias idéias, ideais e formação, como esperar que este não se aliene e se corrompa por um bombardeamento de notícias sensacionalistas e distorcidas, que veiculam não a realidade, mas receios preconcebidos, formas como se quer que seja e aja o homem descartável, homem este que só serve enquanto se enquadrar no padrão exigido pela sociedade cativa.
As informações veiculadas, se por um lado são indispensáveis para se poder subsistir e estar integrado, também podem ter, entre outros, o efeito de provocar insegurança em face de acontecimentos que se passam próxima ou longinquamente. Tal sentimento de insegurança pode levar à angústia e esta, à descarga agressiva que provoca um senso de culpa, a qual por sua vez gera angústia, que repete o processo.
Não há negar que o povo em si, ao longo de todo processo histórico, sempre gostou de condenações. Dos gladiadores, enforcar e queimar “bruxas” em praças públicas, até as formas mais modernas de sentar no sofá e efetivamente condenar e julgar ser digno de pena perpétua ou de morte (penas essas nem permitidas em nosso ordenamento) aquele que está aparecendo no plantão da TV, é muito mais aprazível encarcerar aquele que destoa de protótipos impostos, do que educar e se aprofundar na causa da grande maioria reprimida, e de tantos outros, que clama por assistência.
Em relação à criminalidade, principalmente, esse é o ingente papel a que se propõe a mídia: atacar os efeitos, sem preocupação com as causas.
A realidade é que bem poucos se preocupam com essas causas, e os órgãos de repressão mal dão conta desta tarefa. Esquece-se o ser humano e seu valor intrínseco. E, ao invés de órgãos de proteção somos resguardados por órgãos de repressão.
Nos dizeres de Nilo Batista[2], ex-secretário de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e professor de Direito Penal, a mídia segue diariamente uma espécie de tendência criminológica, que parte da irrestrita legitimação da pena como modelo eficaz da solução de conflitos. Essa posição que a mídia vem assumindo visa reduzir o horizonte de análise dos problemas criminais, e ignora a situação dos contingentes humanos marginalizados pela economia neoliberal.
Nosso processo penal assumiu o princípio de que o acusado tem o direito de conhecer real - e não ficticiamente - a acusação para defender-se ( Lei 9.271, de 17.O4.96). Mas, esse direito, como tantos outros, é relegado a uma quimera a qual não damos a mínima para que se concretize.
De acordo com as teorias da subcultura delinquente, definitivamente consagradas pela obra Delinquent Boys de A. Cohen, o crime resulta da interiorização e da obediência a um código moral ou cultural que torna a delinquência imperativa[3].
Só para ter-se uma idéia da dimensão do problema da violência em nosso país, em recente estudo feito pelo Laboratório de Análise da Violência da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro), em parceria com o Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) e com o Observatório de Favelas, que foi apresentado no dia 21 de julho de 2009, pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, concluiu que Pelo menos um em cada 500 adolescentes brasileiros será morto antes de completar 19 anos. O levantamento, baseado nas informações sobre jovens de 12 a 19 anos de 267 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, calcula pela primeira vez o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), que mede a probabilidade de um adolescente ser assassinado. O valor médio do IHA brasileiro é de 2,03. Ou seja, 2,03 jovens em cada mil serão vítimas de homicídio.
Com uma difusão cada vez mais expressiva de violência e práticas ineficazes e sansacionalistas de repressão, os crimes continuam a ser perpretados. E o povo? Bem, nos limitamos a consentir tudo que é transmitido pelos meios de comunicação, cuja parcela usada de maneira positiva, com finalidades educativas, é escassa.
Citando novamente Nilo Batista, observa ele que Hitler afirmara que "quando a propaganda já conquistou uma nação inteira para uma idéia, surge o momento exato para a organização, por um punhado de homens, retirar as conseqüências práticas".
Ao nos deixarmos guiar pelo que nos é transmitido, nos desviamos do que é real, do que é justo. E fazemos isso através de uma perspectiva bucólica de que nada nos irá atingir. Mas há de chegar o dia em que nossa aversão e inatividade se voltará contra nós mesmos e, aí sim, quem sabe, buscaremos recorrer aos direitos que ora olvidamos…
2.1. A Problemática da Literatura e Cinematografia Dissolventes
Os intelectuais fomentam a criminalidade através do costume de restringir em três aspectos suas causas: miséria, pobreza e culpa das elites.
No nosso país, a mais de 60 anos, os nossos escritores e artistas produzem uma cultura de idealização da malandragem, do vício e do crime.
Nos dizeres de Olavo de Carvalho “humanizar a imagem do delinqüente, deformar, caricaturar até os limites do burlesco e da animalidade o cidadão de classe média e alta, ou mesmo o homem pobre quando religioso e cumpridor dos seus deveres - eis o mandamento que uma parcela significativa dos nossos artistas tem seguido fielmente, e a que um exército de sociólogos, psicólogos e cientistas políticos dá discretamente, na retaguarda, um simulacro de respaldo "científico".”
Como é possível, então, negar que a nossa atual sociedade, movida por essa gama incessante de informações (onde as crianças têm como educador a televisão, os games e a Internet), tende a criar cada vez mais um ambiente favorável à propagação do crime?
O momento derradeiro em que vivemos, da “Nova Era”, da “Revolução Tecnológica”, vem revertendo os valores e instaurando uma crença enganosa fundamentada na “ética da bandidagem” propagada pela mídia e outros meios.
Embora não seja novidade o que enfatizarei agora, o nível intelectual do brasileiro de maneira geral está abaixo do que era na década de 60 ou 70, porque as escolas são piores e o estudo já não é tão valorizado como antigamente. Sim, houve um dia, não custa lembrar, em que cursar a universidade era um objetivo de vida. Hoje, o valor deste desejo não é mais o de fazer alguma coisa que seja dignificante. As pessoas querem é subir na vida, ganhar dinheiro, sem se preocupar com o resto.
Entretanto, um diploma na mão não mais garante uma vaga no ambicionado, e saturado, mercado de trabalho…
Diante de tamanha desordem, tendo como arrimo basicamente a mesma política do “pão e circo” dos tempos romanos, a fuga das pessoas se encontra em acreditar e aderir a tudo o que é veiculado, difundido, transmitido, publicado.
2.2. Batismo de Sangue: Um Paradoxo Entre a Ditadura Militar e a Atual Ditadura do Consumo
Livre de subterfúgios, podemos infimamente definir o período da ditadura brasileira como um momento de agressão ao direito.
Na película de Helvécio Ralton baseada no livro de Frei Betto, nos deparamos com uma realidade atroz e, sadicamente escondida nos anos que a sucederam.
Torna-se inclusive inevitável, para mim, uma adjacente comparação aos horrores cometidos na Segunda Guerra Mundial e seu consecutivo ajuizamento retratado em “Julgamento em Nuremberg”. O que se vê com o tempo é que reduz-se a aversão, cessa-se a odiosidade, aceita-se o sentimento de repulsa.
Permanecemos céticos a uma possibilidade de reparação de eventos e, apesar da consciência de tamanhas barbáries, nos deixamos amoldar por forças políticas ou culturais que conduzem nosso destino.
Da mesma forma que em ambos os casos o valor do ser humano equipara-se a meros interesses despropositados e infundados de detentores de uma força desconexa, a despeito de tantas lutas e conquistas, permitimos que esse valor fosse restringido hoje puramente ao consumo. Há pois, uma nova ditadura, uma ditadura sem ditador. Não se sabe quem é dono de que, quem é responsável pelo que. E a Globalização não passa de uma grande farsa para esconder esses grandes beneficiários da ingente desigualdade que nos assola. Impera a lei do mercado. E a pessoa, onde fica?
Se na Ditadura torturava-se, perseguia-se, matava-se, contrariando todos os princípios de um Estado Democrático de Direito, privando a todos de uma liberdade fundamental de expressão, em prol de conservar um sistema perverso no comando, o que nos leva a crer que toda essa realidade caótica não nos está encaminhando para os mesmos fins?
Criou-se uma sociedade profundamente injusta, onde não há igualdade de oportunidades, mãe de uma população incapaz de usufruir coerentemente tudo o que a tecnologia proporciona, como se a intenção fosse precisamente essa: confundir e alienar usando de tanta informação.
Temos acesso a notícias, veiculadas das mais diversas formas, 24 horas por dia, mas esqueceram de nos ensinar a pensar sobre elas. O mundo real parece submergido. Da escola à eleição, participamos inativamente, de tudo.
O que a mídia alude é estritamente seguido, tem mais força de lei que a própria lei em si. Compre isso, compre aquilo, seja o que você não é.
Logicamente, a minoria privilegiada não desejaria que seres pensantes tirassem seu monopólio de regalias. E dessa forma, nos concentramos no que queremos possuir e esquecemos do “ser”. “Ser” vale mais que o “ter”. Não vale? Ou será esse mais um dos belos discursos utópicos propagadas sem o menor sentido? Afinal, somos capazes de nos abster dos padrões impostos?
Há um Estado de Polícia interferindo e reprimindo, toda e qualquer infração, criminalizando os movimentos sociais. Talvez porque as coisas tenham fugido do controle... Talvez porque agora nem a vida mais tenha respaldo e, como sempre, ao invés de ir ao fundo dos problemas, seja mais viável eliminá-la, desprovendo o cidadão dos direitos basilares que lhe competem.
Todavia, não devemos perder de vista que tudo que é feito sem fundamento é suscetível de ficar sem controle. E ficando sem controle pode vitimizar quem menos esperamos...
O direito de não ser preso arbitrariamente, de escolher a escola do seu filho, ou ainda, de escolher se seu filho irá ou não estudar, direito a um estado de completo bem-estar físico, psicológico e social, direito de saber o que está assistindo ou ouvindo e formar a convicção que bem entender sobre isso, enfim, esses e tantos outros direitos que nos pertencem, mas são negados, constam da Carta Magna, do documento supremo de nosso ordenamento, e cabe a nos reivindicar para que sejam cumpridos.
Esses direitos do cidadão (econômico/ cultural/ social) deveriam ter aplicação imediata e somos privados deles por viver sob a tutela de um capitalismo abjeto, contrário a nossa própria Constituição, essencialmente “democrática” (sim, democrática) que carece de cogente efetivação.
2.3. O Caso Cesare Battisti
Em decisão corajosa e coerente com seus princípios democráticos e progressistas, o governo brasileiro, por meio do Ministério da Justiça do Brasil, concedeu asilo político a Cesare Battisti, ex-militante do movimento italiano integrante de um grupo que se intitulava Proletários Armados para o Comunismo (PAC).
Na Itália, ele foi condenado à pena de prisão perpétua (pena esta que, como já frisado neste mesmo artigo, não é admitida por nossa Constituição Federal) em razão de seu envolvimento em quatro homicídios, ocorridos na década de 70 naquele país europeu. Este ato pode ser anulado com apoio sórdido da grande mídia.
Assim como veiculado no Le Monde Diplomatique, publicado no dia 24/01/2001, como o próprio Ministro Tarso Genro declarou, a concessão da condição de refugiado político tratou-se de decisão jurídica que considera o estatuto político da perseguição da qual é objeto um ex-militante, mais de 30 anos depois dos acontecimentos pelos quais foi condenado em julgamento sumário, sem direito a plena defesa e por sentença baseada unicamente em informação obtida por "delação premiada".
É inegável ser a decisão de nosso governo um ato de justiça, que reconhece e reafirma, ao mesmo tempo, jurisprudência relativa a pedidos de extradição de outros ex-militantes italianos – extradição que o STF nunca concedeu, reconhecendo a dimensão política dos atos acusatórios.
Usando de todo eufemismo que me é possível, creio ser no mínimo curiosa a decisão da grande mídia brasileira em amplificar e dar voz ao ponto de vista do governo italiano, em atitude evidentemente neocolonial e eurocentrista que parece visar desqualificar a decisão democrática do governo do Brasil.
Levando em consideração que, diante dessa decisão do Ministro Tarso, nosso quarto poder tem assumido posição diametralmente oposta à que teve quando o mesmo Ministro pediu a revisão da Lei (brasileira) de anistia para a tortura praticada durante o regime militar, podemos chegar à conclusão de que, paradoxalmente, a tortura da ditadura faz parte do passado e deve ser esquecida, enquanto a luta armada de esquerda deve ser objeto de uma persecução perpétua. Isso faz algum sentido?
No final das contas, o singelo gesto de extradição de Battisti representará nossa conivência em permanecer subjugados, evitando demonstrar ao mundo a possibilidade de estarmos sim à frente no processo de radicalização democrática. Diante de todos os graves problemas e violentas injustiças que vivemos, até que isso não seria de todo ruim, não é mesmo?
3. A Lei dos Crimes Hediondos
A Lei 8.072/90, estabelece quais são os crimes hediondos e determina aqueles que não são suscetíveis de benefício ou anistia, regulamentando o inciso 43 do artigo 5° da CF/88.
A maior mudança legislativa concernente aos crimes repulsivos denominados hediondos ocorreu devido a comoção nacional, sendo adicionados tipos penais à lei aprovada em 1990 de acordo com reações da sociedade.
Assim, os sequestros dos empresários Abílio Diniz e Roberto Medina, em 1990, teriam impulsionado, segundo o advogado Rafael Antonio Piazzon, a aprovação da respectiva lei promulgada em 1990. Segundo Piazzon, “Os trabalhos no Congresso se adiantaram de tal forma que em 15 dias após o sequestro de Medina estava aprovada a lei”.
O brutal assassinato da atriz Daniela Perez, em 1992, incluiu o homicídio no rol dos crimes hediondos.
A veiculação de cenas de torturas e assassinato por policiais na Favela Naval (alguém se lembra do Rambo?), em Diadema, Grande São Paulo, em 1997, ocasionou, nesse mesmo ano, a entrada da tortura na lei com a definição legal de crime.
Houve ainda uma ampliação na lista dos crimes hediondos com a promulgação da Lei 9.695/98, a qual discorre sobre a falsificação de medicamentos.
Como conseqüência, os dados estatísticos revelaram a inocuidade do diploma legal. Em relação a determinados crimes, inclusive, como é o caso do homicídio doloso e do tráfico de entorpecentes, a Lei não produziu nenhum efeito desestimulador da prática e disseminação deles, pelo contrário, uma lei pesadamente punitiva tende a provocar um incremento enorme da taxa de encarceramento.
Porém, a Lei de Crimes Hediondos acabou por cumprir o papel que lhe fora reservado pelos meios de comunicação social (controlados pelos segmentos econômicos e políticos hegemônicos), que se resumia a nada mais nada menos do que dar à população a falsa idéia de que por meio dela cessariam-se os índices de violência.
Em nosso país, crimes com essa denominação jurídica em questão não têm antecedente, nem origem em direito penal alienígena, havendo pois uma deformidade tipológica decorrente da não definição do conceito de hediondo.
Tumulto no sistema de cominação punitiva, no caso de crime que resultar morte, acabou por acarretar punições desproporcionais, incoerentes, absurdas:
TIPO |
PENA |
Latrocínio |
Reclusão, 20 a 30 anos (Art. 157, §3°) |
Homicídio Qualificado |
Reclusão, 12 a 30 anos (Art. 121, §2°) |
Extrosão Mediante Seqüestro |
Reclusão, 24 a 30 anos (Art. 159, §3°) |
São atos selvagens e desumanos esses que merecem receber essa classificação? Ah, como são… Enquanto conservarmos uma mínima parcela de consciência, saberemos disso. Entretanto, com essas criações infundadas de artigos e punições não chegaremos a lugar algum.
Talvez consigamos sentir uma sensação de missão cumprida por um breve instante (entendo que isso em muitos casos baste perante tamanha transgressão perpretada), porém esta será efêmera demais para sanar a indignação e perda provocadas por atitudes tão aterradoras, e voltar-se-á a sentir logo aquela angustiante sensação de impotência e repulsa.
Somente com políticas sociais eficazes poderemos evitar que mais atrocidades, que vêm a cada dia nos assolando, cessem, ou ao menos minimizem sua disseminação.
Lutar pelo que achamos justo é sempre notável. Mas será ainda mais válido se tentarmos fazer isso da forma mais eficaz possível, ou seja, fugindo daquela execranda mania de resolver as coisas assim: “Você passa fome? Certo, dou-lhe então uma cesta básica…”. Só aí o sentimento de privação, lesão, injustiça, revolta, insegurança, poderá ser realmente um pouco abrandado.
A máxima a ser seguida é: educar para não encarcerar.
Afinal, você prefere que seus impostos sejam revertidos em recursos para construção de escolas ou de presídios? Antes de responder, aqui vai uma outra idéia: se o criminoso estiver preso não estaremos seguros, posto que eventualmente este será liberto. Mas, se instruído, com oportunidades iguais e justas de levar uma vida digna, dificilmente teríamos que nos preocupar com indivíduos dissonantes. Preocupar-se com a construção de um cidadão seria no mínimo mais humano e simples do que se preocupar com a reinserção de um bandido transgressor.
Apesar de na maioria das vezes os crimes que nos deixam atônitos, que chocam, que marcam, que conseguem surtir efeitos de mudança, mesmo que seja apenas em vãs mudanças legislativas, são aqueles derivados de uma classe média (ou alta) indecorosa, cheia de recursos e corrupção, cheia de possibilidades e podridão, a perplexidade que me acomete, que inclsuive torna a todos nós assassinos, provém dos crimes abafados, provindos de periferias esquecidas e desacauteladas.
A verdade talvez seja uma só: a violência que vem atingindo a todos nós tem origem na omissão de todos nós. Na omissão de um pai que prefere ser conivente com um filho errante, na omissão de uma sociedade que prefere fingir não ver, na omissão de lideranças sindicais que afirmam que minorar a miséria é uma medida assistencialista, na omissão daquele que se tornou um rentável negócio, a igreja, sugando salários em prol de uma eterna salvação…
No final das contas, por mais que se pense, se tente, se cure, somos, como disse Aloysio Biondi, todos culpados.
3.1. Contrapartida: A Declaração de Inconstitucionalidade do §1º, Art. 2º
Art. 2º - Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto; II - fiança e liberdade provisória.
§ 1º - A pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado.
§ 2º - Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade.
Desvirtuando a individualização da pena, generalizando o que deve ser individualizado, excedeu o legislador ordinário o seu poder, infringindo o princípio da proporcionalidade. Os meios do legislador, ao estabelecer regime integralmente fechado para os apenados por crimes hediondos, ao invés de irem ao encontro dos fins da norma constitucional, desviaram-se, adquiriram um rumo imprevisto, guiado por uma política criminal retributiva e simbólica. Não há, propriamente, um excesso de meios, causando desproporção; há, isso sim, meios inadequados, até opostos ao fim da norma, impedindo, consequentemente, sua concretização[4].
O legislador ordinário não resguardou proporção – simplesmente ignorou-a, tomou a regulamentação como restrição, e, ao invés de conformar, adaptar, regulamentar a norma, restringiu-a, abusando de seus meios, senão até fugindo deles.
Devido a fatores como os expostos acima, a publicação da Lei n.º 11.464, de 28 de março de 2007, trouxa nova redação para os §§ 1.º e 2.º do artigo 2.º da Lei n.º 8.072/90 a vigorar da seguinte forma:
Art. 2.º...omissis...
(...)
§1.º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.
§2.º A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente.
Canotilho afirma que "o princípio da proibição do excesso (ou da proporcionalidade em sentido amplo)... constitui um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador... no exercício do seu poder ou liberdade de conformação dos pressupostos das restrições de direitos, liberdades e garantias, o legislador está vinculado ao princípio material da proibição do excesso".[5]
Pois bem, através do controle difuso da constitucionalidade, meio que permite ao Tribunal guardião da Constituição, analisar a coerência da norma jurídica com a lei maior, verificou-se que a vedação à progressão de regime prisional aos apenados por crimes hediondos estaria ferindo dois princípios Constitucionais: a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a individualização da pena (art. 5º, LXVI).
Na linguagem comum, o STF reconheceu que, ao ser condenado, todos os apenados devem ter o mesmo tratamento no cumprimento da reprimenda que lhe foi imposta em contrapartida ao desvio social que cometeu. Esta decisão é reforçada quando são observados todos os princípios ideológicos que se depositam na Lei 7.210/74 (Lei das execuções penais), particularmente, o princípio da ressocialização do indivíduo[6].
Por esta exegese, é necessário ao combate da criminalidade, como também para evitar as reincidências criminais, que o apenado seja devolvido ao convívio social de forma gradativa, passando do regime de cumprimento da pena fechado, para o semi-aberto e, em seguida, ao aberto, culminando com a liberdade condicional, até se alcançar a extinção da punibilidade.
Este meio gradual também corrobora a situação da sociedade, que precisa ser reeducada, passando a verdadeiramente acreditar em uma possibilidade de definitiva recuperação daqueles que cometem delitos.
Em síntese, a progressão de regime prisional funciona assim: O regime inicial, em regra, é o fechado, ou seja, o preso passa o dia na cela, saindo por 02 (duas) horas para o banho de sol ou para o trabalho interno; com 1/6 (um sexto) da pena cumprida, tendo bom comportamento carcerário e uma proposta de emprego, pode lhe ser deferida a progressão do regime fechado para o semi-aberto, que consiste na liberdade durante o dia, vindo dormir na cadeia e passar os finais de semanas e feriados, além de outros benefícios; com mais 1/6 (um sexto) da pena cumprida nasce a possibilidade de progredir do regime semi-aberto para o aberto, o que lhe permitirá a manutenção das condições do regime anterior, porém somente será recolhido ao presídio na noite do sábado e no domingo, no sistema de albergue. Neste interregno, poderá nascer o direito à liberdade condicional, com 1/3 (um terço) da pena cumprida para os crimes normais e com 2/3 (dois terços) para os crimes hediondos, permitindo a liberdade vigiada do apenado, que fica assinando uma freqüência diária, além de não cometer outros delitos. É assim que se procede a reinserção social.
Não se trata, portanto, de uma abertura de celas, ou mesmo de apologia à impunidade, mas sim de uma verificação dos direitos aos apenados que, inclusive, não devem ser segregados pela situação social que lhes são impostas no momento em que cometem crimes.
Enfim, centrando no fato de que não haveria humanidade nem tentativa de ressocialização no estabelecimento de um regime integralmente fechado, a nova redação do art. vem em prol de minimizar os efeitos meramente vingativos que sua evidente inconstitucionalidade previa.
3.2. Dossiê Daniela Perez
Na época, ela vivia Yasmin em De Corpo e Alma. A trama global era escrita por sua mãe, Glória Perez. O mais espantoso foi a revelação da autoria do crime: Daniella Perez havia sido morta por Guilherme de Pádua, que vivia o Bira na novela, apaixonado pela personagem Yasmin, juntamente com Paula Thomaz, sua então mulher.
É, a atriz fora brutalmente assassinada na noite do dia 28 de dezembro de 1992, por volta das 21h30, logo após ter deixado os estúdios da Globo, depois de mais um dia de gravação. Seu corpo foi encontrado em um matagal da Barra da Tijuca.
No dia seguinte, a notícia dividia a atenção dos brasileiros, que assistiam também à renúncia do presidente Fernando Collor.
Antes de confessar a autoria do crime, Guilherme de Pádua procurou Glória Perez e o ator Raul Gazolla, marido de Daniella, para prestar solidariedade. Raul, emocionado, teria dito para Guilherme que ele era um "grande amigo".
Logo após a confissão dos assassinos, começaram a circular várias versões que tentavam explicar o ocorrido, acabando por não se chegar à verdade real e absoluta.
A indignação e revolta popular resultou, por iniciativa de Glória, da Lei dos Crimes Hediondos, a qual proíbe o pagamento de fianças e impõe que seja cumprido um tempo maior da pena para a progressão do regime fechado ao semi-aberto (valendo lembrar que em 2006 o STF considerou inconstitucional a proibição de progressão de regime).
O julgamento do ocorrido teve “palco” no plenário do I Tribunal do Júri, o mais tradicional do Rio de Janeiro. Muitas câmaras voltadas para os réus, acusados da morte da atriz. Intensa ação nas imediações do fórum, onde foram distribuídos panfletos com o rosto de Daniella e o slogan 'E se fosse sua filha?'…
Previsto para durar três dias, o julgamento-espetáculo foi transmitido em forma de pool pelas emissoras de televisão e também exibido em dois telões no II e III Tribunal do Júri.
A Justiça brasileira obedecia, e mesmo hoje após as recentes alterações nos procedimentos dos crimes dolosos contra a vida, um ritual diverso daquele que a maioria das pessoas conhece através das encenações perpetradas pelo cinema americano. Admite-se, nos Estados Unidos, a apresentação de provas de última hora e a descoberta de testemunhas-bomba capazes de colocar um julgamento de cabeça para baixo.
Já o Brasil, seguindo sistema parecido com o da Itália e de alguns países da América Latina, tem um julgamento começando apenas depois da fase de investigação ter sido concluída, com a previsão de nenhuma testemunha ser apresentada com menos de 72 horas de antecedência, o que tornam as reviravoltas muito raras…
Em janeiro de 1997, o juiz José Geraldo Antônio condenou Guilherme a 19 anos de prisão pela morte da atriz. No dia 16 de maio daquele ano, após 44 horas de julgamento, o mesmo juiz condenou Paula a 18 anos e meio, pela sua participação no assassinato. A decisão foi comemorada pelo público presente com uma salva de palmas.
Os condenados estavam presos desde o momento da confissão. Na ocasião, ela estava grávida do primeiro filho do casal, Felipe, que nasceu em 1993, na cadeia. Foi o filho, aliás, o responsável pela redução da pena de Guilherme. Ele reinvindicou a redução da pena, baseado no Decreto Presidencial nº 3.226, de 29/10/1999, que concede indulto da pena ao "condenado à pena privativa de liberdade superior a seis anos, pai ou mãe de filho menor de doze anos de idade incompletos até 25 de dezembro de 1999 e que, na mesma data, tenha cumprido um terço da pena, se não reincidente, ou metade, se reincidente."
Após cumprir um terço da pena (seis anos e quatro meses), Pádua conseguiu a liberdade condicional em 1999, por bom comportamento. No ano seguinte, a Vara de Execuções Criminais de Minas Gerais concedeu a ele a redução de 25% da sua pena, que passou para 14 anos, dois meses e 26 dias. Em 2001, ele entrou com o pedido de indulto, que o deu a liberdade esse ano. Se nos próximos 5 anos, Guilherme mantiver um bom comportamento e não se envolver em nenhum outro crime, passará a ser considerado réu primário. Caso alguém o chame de assassino, ele pode, inclusive, entrar com um processo por calúnia e difamação.
Atualmente evangélico, Guilherme de Pádua leva uma vida normal, cursando faculdade de Ciências da Computação na PUC Minas, em Belo Horizonte, já tendo desenvolvido trabalhos na área. Ele define-se: “Uma nova criatura em Jesus Cristo?”…
Em liberdade condicional desde novembro de 1999, Paula Nogueira de Almeida Thomaz, 28 anos, agora assinando apenas Paula Nogueira, cursa, ou cursou que seja, Administração de Empresa, na Faculdade Cândido Mendes, no Rio de Janeiro. O privilégio da condicional veio após ela cumprir um sexto da pena de 15 anos a que foi condenada.
Ao contrário dos seus colegas, Paula não prestou vestibular. Ela conseguiu ingressar na faculdade através do Programa de Acesso Direto, aprovado há dois anos pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC). Através dele, o aluno que tenha obtido média sete nos três anos do ensino médio pode ingressar na faculdade sem prestar vestibular.
Paula queria estudar Ciências Contábeis, mas como o curso era à noite, ela não poderia frequentar as aulas por determinação judicial. Outra determinação exigia que Paula Thomaz se apresentasse à Justiça a cada três meses.
O casamento com Guilherme de Pádua acabou logo depois do crime. O advogado de Paula Thomaz defendeu a tese de que sua cliente estaria em um shopping no momento do crime. O de Guilherme, por sua vez, alegou que a autora das estocadas teria sido Paula. Seu cliente teria apenas imobilizado a vítima.
Em 2001 foi anunciado o segundo casamento de Paula. Guilherme e Paula cumpriram pouco mais de seis anos de pena… Intemperança, aviltamento. Vergonha.
3.3. A Chacina da Candelária e do Vigário Geral
Em 23 de julho de 1993, nas imediações da Igreja da Candelária, um grupo de homens encapuzados abriu fogo contra mais de 50 crianças, adolescentes e jovens. Esse episódio ocorreu em um dos pontos mais conhecidos do Rio de Janeiro e causou protestos nacionais e internacionais.
Policiais abordaram três meninos vinculados ao grupo da Candelária, pois desejavam colher informações sobre o líder do grupo, o qual, alguns dias antes, resistira à prisão e, juntamente com outros jovens, apedrejara um carro policial.
Os três meninos foram levados para o Aterro do Flamengo, onde os policiais dispararam contra eles; porém, um dos meninos não morreu. Apesar de muito ferido, se fingiu de morto. Após deixarem os meninos naquela localidade, os policiais se dirigiram à Praça da Candelária e disparam tiros em vários adolescentes e jovens que ali se encontravam, inclusive no líder do grupo. A análise dos revólveres e das balas indicou que o grupo que atuou primeiro no aterro do Flamengo foi o mesmo que atuou na Candelária.
Havia indícios, ainda, de que os policiais estivessem vinculados a um esquadrão da morte e também ligados a comerciantes próximos à Candelária que não desejavam a presença dos meninos de rua naquelas proximidades.
Em conseqüência, as autoridades realizaram rapidamente as investigações das mortes: três policiais militares e um civil foram acusados pelos assassinatos, logo após a chacina. Tais acusações foram baseadas principalmente no depoimento de sobreviventes do massacre.
A Anistia Internacional e outras organizações não-governamentais apelaram às autoridades estaduais e federais para proteger as crianças, que testemunharam esse crime hediondo.
Muitos desses meninos permaneceram na rua, onde foram, repetidas vezes, ameaçados por membros da Polícia Militar. Somente uma das testemunhas, Wagner dos Santos, obteve proteção federal, após ter sofrido novo atentado contra sua vida em dezembro de 1994. Seu testemunho foi fundamental no reconhecimento dos envolvidos.
Em outubro de 1995, foram identificados por um sobrevivente, através de fotografias, quatro outros policiais militares, suspeitos de envolvimento no massacre.
Em abril de 1996, foram emitidos os mandados de prisão para estes quatro policiais. Três foram levados sob custódia e um quarto, o policial Nelson Oliveira dos Santos Cunha, apresentou-se à justiça, confessando sua participação na Chacina. Alguns dos processos dos policiais militares julgados constam do Relatório da Anistia Internacional de 2003. Os julgamentos da Chacina da Candelária resultaram em raras condenações de policiais militares acusados de violações de direitos humanos.
Na ocasião, a Chacina obteve grande repercussão nacional e internacional, através dos meios de comunicação, embora quase nada tenha mudado para as centenas de crianças, adolescentes e jovens que vivem nas ruas do Rio de Janeiro.
Inicialmente foram indiciadas quatro pessoas pela chacina: o ex-Policial Militar Marcus Vinícios Emmanuel, os Policiais Militares Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes França. Os condenados foram:
A título de curiosidade, a chacina foi retratada em um episódio do programa Linha Direta da Rede Globo. Assim como foi retratada, em formato de flashback, pelo protagonista do livro O Imperador da Ursa Maior de Carlos Eduardo Novaes.
O documentário Ônibus 174 de José Padilha e o filme Última Parada 174, de Bruno Barreto, narram a história de Sandro Barbosa do Nascimento, sobrevivente do massacre que, anos mais tarde, protagonizou o seqüestro ao ônibus da linha 174.
4. O Processo de Administrativização do Direito Penal
Não é dado ao julgador a faculdade discricionária de ignorar que em um Estado Democrático de Direito os fatos (primazia da realidade) não poderão serem alterados para alcançar a dignidade penal do indivíduo, com o intuito de haver punição, mesmo que não ocorra o delito[7].
Tanto o direito penal quanto o administrativo, buscam em seus independentes e autônomos procedimentos a busca da verdade, para que em nome dela possam tipificar a infração, com o objetivo de uma futura punição, ou que a absolvição tenha o devido efeito legal.
Miguel Reale Júnior[8] deixou grafado a administrativização do Direito Penal, e segundo ele, verbis:
“A administrativização do Direito Penal torna a lei penal um regulamento, sancionando a inobservância a regras de conveniência da Administração Pública, matérias antes de cunho disciplinar. No seu substrato está a concepção pela qual a lei penal visa antes a ‘organizar’ do que a proteger, sendo, portanto, destituída da finalidade de consagrar valores e tutelá-los. Diversamente, em um Estado de Direito Democrático, a configuração penal – por se constituir na forma mais gravosa de interferência, com custos elevados ao infrator e também à sociedade – deve se ater aos fatos que atinjam valores por via de uma conduta efetivamente lesiva destes valores. A intervenção penal deve ser aquela necessária, como único meio, forte, mas imprescindível, para a afirmação do valor violado, e para a sua proteção, visando à manutenção da paz social.”
O promotor de Justiça, e professor da UNESP, Paulo César Correa Borges, em um dos trechos de sua obra “Direito Penal Democrático”, justifica a ocorrência de uma administrativização do Direito Penal pelo fato de que este se torna a panacéia para todos os problemas sociais e todo comportamento inadequado passa a ser tipificado criminalmente. Consequentemente, as penas são elevadas pela crença de que a intimidação dos delinqüentes ocorrerá ou, se não surtir efeito, pelo menos será aplacado o clamor das massas inseguras, que continuam acreditando na eficácia do ordenamento jurídico-penal[9].
O terrorismo psicológico empregado destina-se não a uma inibição da prática de novos delitos, mas sim a uma manutenção da credibilidade social em relação à lei penal.
4.1. A Manutenção da Credibilidade Social no Sistema Penal
Fatos que envolvam violência brutal estão nas manchetes de jornais o tempo todo, afinal, sabe-se que é exatamente o sensacionalismo da mídia que atrai a atenção de milhões de pessoas para os noticiários.
Vende-se a notícia. Explora-se a comoção humana.
O fim de manter a credibilidade no sistema penal é assimilado por muitos veículos de comunicação que, ao noticiarem a ocorrência de delitos, mencionam apenas o máximo da pena, com a qual o pretenso delinquente poderá ser punido, e nem sequer mencionam a quantidade mínima de pena e tampouco a possibilidade de concessão de medidas despenalizadoras, gerando assim uma expectativa que posteriormente será fatalmente frustrada (BORGES, 2005).
Cotidianamente, o que se tem visto ser usado de forma equivocada através da mídia é a prisão preventiva. Tanto para satisfazer o clamor público quanto sobre o argumento de que a medida busca assegurar a credibilidade da Justiça, especialmente quando se trata de casos de maior notoriedade, confunde-se a natureza dessa modalidade de prisão, criando diretamente uma presunção de culpabilidade.
Para Hobbes, a prisão preventiva não é uma pena mas “ato de hostilidade” contra o cidadão, de modo que “qualquer dano que faça um homem sofrer, com prisão ou constrição antes que sua causa seja ouvida, além ou acima do necessário para assegurar sua custódia, é contrário à lei da natureza.”[10]
Ora, está consagrado em nosso ordenamento o princípio da presunção de inocência. Este princípio está claramente resguardado pelo disposto no art. 5°, inciso LVII, de nossa Magna Carta, que traz a seguinte redação: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Ainda nessa linha, como decorrência direta do já mencionado princípio da presunção de inocência, podemos citar a constantemente utilizada expressão latina “in dubio pro reo”, ou seja, em casos de dúvidas (por exemplo, insuficiência de provas) se favorecerá o réu.
Dessa forma,a prisão preventiva, prevista em nosso Código de Processo Penal, é uma espécie de prisão provisória, e que poderá ser decretada judicialmente em qualquer fase, até mesmo antes do oferecimento da denúncia, desde que haja, prova da existência do crime e indícios de sua autoria.
Jurisprudências recentes trazem o impedimento do uso desacertado dela:
HABEAS CORPUS HC 93315 BA (STF). AÇÃO PENAL. Prisão preventiva. Decreto fundado na necessidade de restabelecimento da ordem pública, abalada pela gravidade do crime. Exigência do clamor público e da credibilidade da Justiça. Inadmissibilidade. Razão que não autoriza a prisão cautelar. Ofensa ao art. 5º, LVII, da CF. Precedentes. É ilegal o decreto de prisão preventiva baseado em suposta exigência do clamor público e da credibilidade da Justiça, para restabelecimento da ordem social abalada pela gravidade do fato. STF - 27 de Maio de 2008.
RECURSO ORDINARIO EM HABEAS CORPUS RHC 24627 MG 2008/0221642-9 (STJ). PROCESSUAL PENAL -RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS -ROUBO SIMPLES -PRISÃO EM FLAGRANTE DELITO -LIBERDADE PROVISÓRIA -RESGUARDO DA ORDEM PÚBLICA -GRAVIDADE ABSTRATA DO DELITO -"CREDIBILIDADE DA JUSTIÇA" -REPERCUSSÃO SOCIAL -ANTECIPAÇÃO DO CUMPRIMENTO DA REPRIMENDA -AFRONTA À GARANTIA CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE NÃO-CULPABILIDADE -IMPOSSIBILIDADE -RECURSO PROVIDO. 1. A gravidade abstrata do delito atribuído ao agente é insuficiente para a manutenção de sua prisão provisória, sob pena de afronta à garantia constitucional de presunção de não-culpabilidade. Precedentes. 2. Da mesma forma, a invocação da "credibilidade da Justiça" não se presta para a justificação da constrição cautelar, sob pena de antecipação do cumprimento da reprimenda, vedada pelo ordenamento jurídico pátrio. Precedentes. 3. Dado provimento ao recurso para deferir ao recorrente os benefícios da liberdade provisória. STJ - 11 de Novembro de 2008.
Enfim, a credibilidade social da administração da justiça só aumentará em definitivo no instante em que seus profissionais ou operadores aplicarem corretamente as normas, e para tal desiderato é preciso respeitar os princípios que regem o Estado Democrático de Direito, nos termos do artigo 1º usque 5º da CF/88 e artigo 3º do Código de Processo Penal, sem olvidarmos o princípio da hierarquia, soberania e validade das cláusulas de Direitos Humanos na devida prestação jurisdicional[11].
4.1.1. A Imprensa e as Políticas de Segurança Pública
A imprensa tem um papel de extrema importância no Estado Democrático de Direito, posto que como direitos fundamentais defendidos por este tem-se justamente a livre manifestação do pensamento (art. 5°, IV, da CF) e a liberdade de informação (art. 5°, XIV, da CF).
No entanto, no que concerne aos crimes violentos a imprensa costuma ser tendenciosa. É como se quisesse transferir a culpa por todas as mazelas e falta de valores à um direito penal ineficaz ou coisas do gênero. Sendo que, além do aumento da insegurança, a “realidade inventada” pela imprensa tem ocasionado a má orientação das políticas de segurança pública.
No atual quadro da sociedade brasileira, não há como tratar de uma redução de índices de violência ou de criminalidade dissociado de uma intervenção estatal ao nível de políticas públicas de conotação social.
Para o secretário da Defesa Social, Paulo Rubim, é necessário implementar uma política de segurança social, levando ações básicas para as famílias mais carentes, como forma de combater também a violência no País. Segundo ele, “É necessário perceber que o caminho para o sucesso da política de segurança não é a repressão, mas a prevenção. É importantíssimo perceber também que não haverá segurança pública sem segurança social, ou seja, é necessário olharmos para as comunidades carentes e ali trabalharmos as questões sociais. Isso envolve educação, saúde, emprego e renda”. Rubim reafirma ainda a necessidade de apoiar ações socais concretas para reverter os índices de criminalidade, que vêm crescendo em todo o País, e reafirmou o seu apoio à iniciativa como forma de difundir uma cultura de paz.
A despeito das boas idéias citadas acima, temos uma realidade social que é transmitida de forma que jamais contraria os interesses dos donos do poder. E infelizmente o domínio da imprensa é necessário para o domínio do povo. Basta vermos que na Bahia a família de Antônio Carlos Magalhães controla as retransmissoras das Organizações Globo assim como os principais jornais escritos daquele Estado; assim como a família de José Sarney domina aquelas e estes no seu Maranhão. Pobre povo, tão longe de Deus e tão perto de uma televisão…
O que me parece é que estamos condicionados a fechar os olhos para a verdade devido a complexidade de se ter de agir diante da realidade. É muito mais fácil solucionar os problemas apenas aparentemente, deixando as raízes permacerem. Ainda mais em nosso país, onde a educação seja talvez o menos valorizado. A imprensa tem sido a maior prova disso, demonstrando que para se alcançar uma “ascenção social” você não precisa ser exatamente qualificado para tal (afinal, quem é qualificado para isso?). Tem-se um exemplo trivial nas pessoas de categorias profissionais distintas, como as modelos, não que essas sejam menos aptas por não terem frequentado uma universidade, ocupando os lugares na apresentação de programas televisivos, enquanto os formados em jornalismo somam-se às filas dos desempregados ou acabam por realizar qualquer outra atividade.
Obviamente, um plano de educação e desenvolvimento para o país faz-se necessário. Só assim conquistar-se-á credibilidade, segurança e consonância.
Enquanto a cultura, a educação e a cidadania não representarem o verdadeiro marco de ambição e apontarem o exemplo a ser seguido, vivenciaremos tais incongruências e deixaremos que os mesmos velhos setores da elite conservadora mandem e desmandem na mídia, nos governos, no País. E o que é pior: continuaremos a concordar com eles.
5. Estado de Polícia
A história registra o surgimento desse tipo de Estado, que se caracteriza pela concentração de poder nas mãos do monarca, que também pode ser chamado de Estado absoluto, em que a vontade do Rei era a lei (“regis voluntas suprema lex”), e esta se apresentava vaga e totalmente ao domínio do monarca, que não respondia pelos seus atos perante os súditos (“ the king can do no wrong”)[12].
Pode se identificar duas fases dentro desse tipo de Estado. Na primeira, o poder do Monarca é atribuído à escolha divina, governando pela graça de Deus: seu fundamento é religioso. Na fase seguinte, já há uma alteração do fundamento do poder do governante: é a fase do despotismo esclarecido, em que se atribui ao poder uma racionalidade calcada pelas idéias iluministas, mas pouco modificando os poderes do Monarca, com atuação ilimitada e irresponsável juridicamente.
O absolutismo iniciou-se com o fim do feudalismo, tomando forma mais robusta à medida que o governante concentrava poderes em suas mãos, atingindo seu pináculo na Idade Moderna, tendo ficado conhecida de todos, nesse período, a frase de Luis XIV: L’Etat c’est moi (“O Estado sou eu”).
Esse período histórico somente vem a ser ultrapassado por meio das revoluções européias, iniciando-se na Inglaterra com a Revolução Gloriosa de 1688, tendo, em decorrência dela, sido assinada a Bill of Rights em 1689, que instituiu o governo parlamentar inglês. Na França, por sua vez, o absolutismo foi afastado pela Revolução burguesa de 1789.
5.1. O Estado Policialesco de Direito
Um dos pilares do Estado social democrático de direito é o poder de polícia. O poder de polícia dá vida à Lei, única fonte da autoridade de umas pessoas sobre as outras. Ninguèm é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão por força da Lei. O poder não é pessoal e não pode residir na força física, espiritual ou bélica. Portanto, os órgãos do Estado encarregados do exercício do poder de polícia, ou seja, os fiscais e os policiais em primeiro plano, devem ser instrumentos da legalidade, pautando suas condutas exclusivamente nos mandamentos da Lei.
Inconcebível que na vigência da Constituição cidadã agentes policiais do Estado atuem como verdadeiros infratores da Lei, prendendo arbitrariamente e utilizando indevidamente algemas.
É inquietante conceber a adoção de um modelo de Estado policialesco, servindo a polícia para operações com conteúdo político, sendo no mínimo ameaçadora a opção por uma política de segurança pública baseada no derramamento de sangue que equipara o Estado à racionalidade bárbara das piores facções criminosas, estimulando verdadeira guerrilha urbana que favorece o comércio de armas e de apetrechos de segurança pública e particular[13].
A democracia depende, pois, do desafio de defendê-la nos momentos em que, como agora, necessita-se enfrentar as mais agressivas situações.
O procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza diverge do conceito de Estado Policialesco, proliferado ao longo de 2008 pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Gilmar Mendes, para quem o Brasil teria vivido nessa circusntância em virtude da proliferação de grampos telefônicos no país e de ações espetacularizadas da Polícia Federal. Para ele, essa expressão usada por Mendes caracteriza-se “mais como frase de efeito”[14].
Ainda segundo argumentos do procurador-geral, “Todos nós podemos conversar, o Judiciário é livre, o Congresso é livre. Estamos longe do Estado policialesco. Se é um caso isolado, tem que ser tratado como tal, e não achar que há contaminação do sistema estatal”.
Viveu-se, vive-se ou viveremos sobre um Estado Policialesco? Quem pode saber responder isso ao certo? Mas que é extremamente perigoso estarmos caminhando para tal, isso sim é uma realidade…
O fato principal é que está havendo uma inversão total de valores, e só conseguiremos avançar culturalmente quando passarmos a observar com absoluta fidelidade homens comuns e homens públicos a partir das regras estabelecidas.
5.2. Descriminalização dos Movimentos Sociais
O movimento social[15] sempre cumpriu um papel civilizatório na sociedade brasileira. É ele quem impulsiona e provoca rupturas junto aos setores que concentram e se negam a distribuir riquezas.
O golpe militar de 1964 no Brasil foi um golpe contra o movimento social. Uma reação à ascensão dos setores populares que lutavam pelas “reformas de base” e ameaçavam os privilégios da elite nacional associada ao capital transnacional[16].
Não é de hoje que o movimento social brasileiro é tratado como caso de polícia. A célebre afirmação de que “a questão social é uma questão de polícia” atribuída ao ex-presidente da República Velha, Washington Luís, permanece mais viva do que nunca, perante situações como a vivida no sul do nosso país, onde os ataques ao movimento social no Rio Grande do Sul é uma resposta dos setores conservadores contra as lutas sociais que os movimentos vêm travando pela Reforma Agrária e contra grandes empresas transnacionais como Aracruz, Stora Enso, Syngenta, Monsanto e Bunge.
5.2.1. Aracruz Celulose
A empresa[17] produz anualmente 2,4 milhões de toneladas de celulose branca, das quais 55% são usadas para fabricar papéis descartáveis, principalmente pelas corporações Procter & Gamble e Kimberly-Clark, as maiores clientes da Aracruz.
A forte reação social contra a Aracruz Celulose veio à tona com a ação do Movimento das Mulheres Camponesas, ligado à Via Campesina Brasil, na sede da empresa no Rio Grande do Sul.
O primeiro olhar da maioria dos formadores de opinião notou apenas a parte visível do acontecimento, o que trouxe para aquelas mulheres o estigma da criminalização. Faltou, contudo, notar o histórico de crimes e violações a direitos fundamentais praticados pela Aracruz em seus quase 40 anos de instalação no Brasil, incluídos aí transgressões ao artigo 231 da Constituição Federal brasileira, referente ao direito a terra indígena e, ao artigo 68 das disposições transitórias da Constituição, referente a terras quilombolas.
6. As Bases do Estado Democrático de Direito
“La classificación de un sistema político como democrático constitucional depende de la existencia o carencia de instituciones efectivas por meio de las cuales el ejercicio del poder político esté distribuido entre los detentadores del poder, y por medio de las cuales los detentadores del poder estén sometidos al control de los destinatarios del poder, constituidos en detentadores supremos del poder”. (Loewenstein, 1976).
O termo “Estado Democrático de Direito”, conquanto venha sendo largamente utilizado em nossos dias, é pouco compreendido e de difícil conceituação em face das múltiplas facetas que ele encerra.
Inexistindo nas sociedades anteriores, este Estado Democrático é uma conquista dos povos que lutaram muito para consolidá-lo contra os poderes dos soberanos.
Na Idade Média, por exemplo, por volta do século XIII, barbaridades foram cometidas durante a Santa Inquisição. Nesta época, pessoas foram presas, condenadas e muitas vezes queimadas em plena praça pública sob o argumento de atentarem contra a Igreja Católica e o Direito Canônico[18].
Aqueles que eram processados durante a inquisição não tinham muitas chances de defesa, sendo que muitas vezes nem sabiam o motivo de sua prisão. Não havia o contraditório, a ampla defesa e muito menos o devido processo legal. Foi nesta época que surgiu o sistema processual inquisitivo, onde não havia uma separação das funções processuais de acusação, defesa e julgamento, sendo estas funções concentradas nas mãos de uma só pessoa (juiz inquisidor).
Durante o regime absolutista o poder era todo concentrado nas mãos do soberano (rei), sendo que o povo não possuía direitos. Apenas em 1215 com a Magna Carta do Rei João sem terra é que foram concedidos alguns direitos aos cidadãos, principalmente aos nobres.
Com o passar do tempo, influenciados pelas ideias iluministas, o povo passou a se rebelar contra a concentração do poder em uma só pessoa. O Iluminismo defendia a concepção de que a razão do poder não está em Deus, mas sim no homem. Como conseqüência, o chamado terceiro estado se revoltou contra a minoria no poder (nobreza e clero), o que deu origem a Revolução Francesa de 1789.
O período pós Revolução Francesa marca o nascimento do constitucionalismo. Este movimento não tinha o objetivo de ofertar uma Constituição aos estados, uma vez que estes sempre a tiveram e sempre a terão. O objetivo do constitucionalismo era fornecer constituições escritas aos estados (constituição folha de papel de Ferdinand Lassale).
As primeiras constituições escritas foram as constituições dos EUA em 1787 e a francesa em 1789. Outra consequência importante das revoluções liberais foi o surgimento do Estado de Direito, onde se pregava que tanto os governantes como os governados deviam obediência às leis.
Todavia, a ideia de Estado de Direito foi desvirtuada durante a Segunda Guerra Mundial, onde vários judeus foram mortos por Hitler com base na lei alemã (Estado de Direito), pois o positivismo pregava total obediência às leis.
A partir daí, passou-se a diferenciar lei vigente de lei válida, pois, acima das leis há valores que devem ser respeitados e obedecidos. Assim, após a Segunda Guerra Mundial passou-se a falar em Estado Democrático de Direito, onde todos, inclusive os governantes, devem obediência às leis, desde que estas atendam aos valores igualdade, liberdade e, principalmente, a dignidade da pessoa humana. Desse modo, o poder do Estado passou a ser limitado, respeitando-se o Estado de Direito.
Na prática, o Estado de Direito é o que decorre das Revoluções Burguesas, caracterizando os Direitos Fundamentais de primeira dimensão, marcados, pois, por uma passividade do Estado. Em outra medida, o Estado Democrático de Direito se caracteriza por conjugar, a um só tempo, direitos humanos em sucessivas dimensões, comportando também, por isto, uma postura positiva do Estado[19].
6.1. Democracia e Uma Educação Para a Cidadania
Vivemos, pelo menos teoricamente, no regime de governo denominado democracia, onde o poder de tomar importantes decisões políticas está com os cidadãos. Assim, a democracia está intimamente vinculada a cidadania, necessitando dela para se concretizar.
Segundo Lakatos (1999)[20] “Democracia é a filosofia ou sistema social que sustenta que o indivíduo, apenas pela sua qualidade de pessoa humana, e sem consideração às qualidades, posição, status, raça, religião, ideologia ou patrimônio, deve participar dos assuntos da comunidade e exercer nela a direção que proporcionalmente lhe corresponde”. Infelizmente, no Brasil, a participação do povo no poder se limita a comparecer às urnas durante o processo eleitoral…
A concepção democrática da sociedade afirma que a ordem política, econômica e social é fruto de um processo histórico conduzido por homens e mulheres. Somos nós, os cidadãos, que construímos uma sociedade justa ou que aceitamos ser parte de uma sociedade injusta e desigual.
Norberto Bobbio[21] fala de “consciência moral” como aquela capaz de mobilizar os “esforços para o bem (ou, pelo menos, para a correção, limitação e superação do mal), que são uma característica essencial do mundo humano” (2004, p. 71). A moral da cidadania se constitui pelo esforço individual e coletivo, prático e teórico, de superação “do estado de sofrimento e de infelicidade que o homem vive, do qual resulta a exigência de sair de tal estado” (2004, p. 71-72).
A educação para a cidadania, como defende Jacques Delors, constitui pois um conjunto complexo que abraça, ao mesmo tempo, a adesão a valores, a aquisição de conhecimentos e a aprendizagem de práticas na vida pública.
Estatisticamente falando, o Brasil tem 11,5 milhões de crianças na faixa etária de 0 a 3 anos[22], segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), mas só 13% delas estão frequentando creches (ensino infantil), de acordo com dados do Instituto Nacional de Ensino e Pesquisas Educacionais (Inep).
Ainda segundo o IBGE, 81% dos adolescentes com idades entre 15 e 17 anos freqüentam a escola. Porém, a qualidade do ensino e a grave situação social de muitos alunos geram enormes dificuldades de aprendizado, defasagem e evasão escolar. Uma pesquisa da Unesco (Fundo das Nações Unidas para a Educação), feita em 2005, nos 26 estados brasileiros, mostrou que muitas vezes a escola mais exclui do que inclui. Conforme o levantamento, 21% das crianças e adolescentes que estavam fora da escola já tinham abandonado o ensino anteriormente. Outros 14% já tinham deixado os estudos por três ou mais vezes. No que diz respeito ao ensino universitário, apenas 31% dos jovens com idades entre 18 e 24 anos têm possibilidade de acesso à universidade, mesmo com o elevado número de instituições que vêm sendo abertas a cada ano (observação: quantidade elevada mas qualidade extremamente limitada).
É a partir do conhecimento adquirido na escola que o aluno se prepara para a vida. Passa a ter o poder de se transformar e de modificar o mundo onde vive. Educar é um ato que visa à convivência social, a cidadania e a tomada de consciência política.
Em uma era onde informações são disseminadas 24 horas por dia, sem educação a pessoa torna-se inapta para assimilá-las e coabitar em meio a tantas notícias e referências.
A Unesco (1983) relata um histórico progressivo sobre o acesso do indivíduo à informação, que estaria diretamente vinculado a sua busca pela cidadania, e à evolução tecnológica ocorrida ao longo dos anos: desde o século I (Era Cristã) – com a substituição do pergaminho e do papiro pelo papel - até o século XX e XXI (Mundo) – com a expansão dos meios de comunicação de massa.
Apesar dessa evolução, a maior parte da população não usufrui as vantagens da evolução tecnológica, posto que lhes é extorquido o direito básico à educação.
Para Amartya Sen1 (2000)[23] uma maneira de garantir um estado democrático, com a participação de cidadãos ativos, é a liberdade de escolha, acompanhada de capacidades e oportunidades. A falta de oportunidade de acesso à informação prejudica esse processo.
De acordo com Roberto Carlos Simões Galvão, a educação para a cidadania pretende fazer de cada pessoa um agente de transformação. Isso exige uma reflexão que possibilite compreender as raízes históricas da situação de miséria e exclusão em que vive boa parte da população. A formação política, que tem no universo escolar um espaço privilegiado, deve propor caminhos para mudar as situações de opressão. Muito embora outros segmentos participem dessa formação, como a família ou os meios de comunicação, não haverá democracia substancial se inexistir essa responsabilidade propiciada, sobretudo, pelo ambiente escolar[24].
Como sustenta o autêntico educador Paulo Freire, "é preciso plantar a semente da educação para colher os frutos da cidadania", e só assim então, estaremos habilitados a viver verdadeiramente no cerne de uma democracia.
6.2. Justiça Restaurativa e a Defesa do Estado Democrático
Paul McCold e Ted Wachtel, do Instituto Internacional por Práticas Restaurativas (International Institute for Restorative Practices), em trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, realizado de 10 a 15 agosto de 2003, no Rio de Janeiro, afirmaram que a Justiça Restaurativa constitui "uma nova maneira de abordar a justiça penal, que enfoca a reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos, ao invés de punir os transgressores". Seu postulado fundamental é: "o crime causa danos às pessoas e a justiça exige que o dano seja reduzido ao mínimo possível".
Mais importante do que punir é buscar conhecer e compreender as causas que levaram ao conflito, tanto no sentido de restaurar a situação o máximo possível ao estado anterior, como para evitar que haja repetição no futuro.
A justiça restaurativa tem como fundamento a preocupação geral com os Direitos Humanos, inclusive o das vítimas, sendo que a mudança de paradigma que defende vem ocorrendo internacionalmente diante dos princípios preconizados pela ONU cujo principal intuito é a difusão de uma cultura da paz.
A abordagem restaurativa, com alto controle e alto apoio, confronta e desaprova as transgressões enquanto afirmando o valor intrínseco do transgressor. A essência da justiça restaurativa é a resolução de problemas de forma colaborativa. Práticas restaurativas proporcionam, àqueles que foram prejudicados por um incidente, a oportunidade de reunião para expressar seus sentimentos, descrever como foram afetados e desenvolver um plano para reparar os danos ou evitar que aconteça de novo. A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos e não seja mais visto como tal (McCould e Wachtel, 2003)[25].
Ao contrário da Justiça Tradicional, que se ocupa predominantemente da violação da norma de conduta em si, a Justiça Restaurativa ocupa-se das conseqüências e danos produzidos pela infração, valorizando a autonomia dos sujeitos e o diálogo entre eles, criando espaços protegidos para a auto-expressão e o protagonismo de cada um dos envolvidos e interessados – transgressor, vítima, familiares, comunidades na busca de alternativas de responsabilização.
Não se procura em hipótese alguma defender o criminoso, como afoitos diriam para encerrar o assunto e de forma inerte prorrogar a situação insustentável em que nos encontramos. O que se intenta é compreender o ser humano. Cortar totalmente a incidência do que pode ocasionar delitos maiores a um longo prazo. Efetivamente realizar alguma coisa. Efetivamente deter o avanço da brutalidade que cerceia as relações.
6.2.1. Os Círculos Restaurativos
Um dos modos de praticar a Justiça Restaurativa é a realização dos chamados Círculos Restaurativos para resolver situações de conflito.
O Círculo constitui um espaço de poder compartilhado, onde as pessoas, diretamente envolvidas, chegam de livre e espontânea vontade; onde ninguém é culpabilizado, e onde os participantes assumem responsabilidade pelo acontecido e chegam a um acordo que restaure a relação rompida.
Em outras palavras, forma-se uma comunidade facilitadora, que gerencia o diálogo, a negociação, por meio da utilização de técnicas que incluem, entre outras: a) ausência de julgamento ou mesmo aconselhamento, b) abstração de idéias pré-concebidas, c) perguntas empáticas, d) perguntas para verificar se todos compreendem o que cada um diz.
Exemplos de Círculos Restaurativos no Brasil:
a) Rio Grande do Sul, o Juiz Leoberto Brancher[26] – Círculos Restaurativos para conflitos envolvendo jovens internados na FEBEM.
b) São Caetano do Sul (SP): Juiz Eduardo Rezende Melo – Círculo Restaurativo nas Escolas e na Comunidade.
c) Guarulhos (SP) e Bairro de Heliópolis (Capital/SP) – Círculos Restaurativos nas Escolas e nas Comunidades.
7. Conclusão
É inevitável que ao redigirmos um texto, ou ainda no simples ato de nos comunicar com alguém, estaremos implicitamente expressando nossas idéias, nossos pontos de vista. Óbvio que sim.
O incompatível é saber que as pessoas, que irão ler ou nos ouvir, foram privadas dos direitos básicos de possuir uma formação adequada, que as possibilite pensar por si mesmas, aderir, ou não, as concepções proferidas de acordo com suas próprias percepções e convicções.
O inconveniente é na verdade lutarmos contra um inimigo invisível.
O impróprio é descobrir que a TV, o jornal, a revista, o cinema, a música, são todos utilizados cada vez mais com o propósito de serem verdadeiras armas: ora armas de defesa, ora armas de dominação.
Por exemplo, no caso da televisão, conforme afirma Mankiewicz e Swerdlow[27], seus programas vendem muito mais do que carros e produtos diversos. Eles vendem uma visão do mundo e esta visão, segundo a psicologia, ajuda a mudar a nossa própria auto-imagem.
As informações veiculadas pelos meios de comunicação, se por um lado são indispensáveis, para se poder subsistir e estar integrado nesse tipo de sociedade de massa, podem ter, entre outros, o efeito de provocar insegurança, angustia,e senso de culpa perante tamanhas atrocidades disseminadas.
Filmes violentos, por sua vez, mostram processos delitivos que podem muitas vezes inspirar aos predispostos ao crime maneiras de executá-los.
Na verdade, poderia descrever aqui várias das consequencias que a manipulação do quarto poder pode provocar nos indivíduos. Principalmente no que tange às situações relacionadas à violência e criminalidade.
Mas o que se pode extrair perante as exposições deste artigo é que sempre atacando os efeitos, e não a raiz dos problemas, não alcançar-se-á êxito algum, em nenhum setor da sociedade. E a resposta simples e pura que encontro está na única forma de libertação existente: a educação.
A importância da concessão de educação a todos se faz de premente necessidade. Sem educação não há cidadão. Sem cidadania não há democracia. Sem democracia, bem… continuaremos a viver nos moldes em que vivemos hoje: uma semi-democracia, uma semi-existência, uma semi-vida.
Padecemos diante de um mundo que manipula, que aniquila, que se apodera. Padecemos. E só.
Referências Bibliográficas
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[1] SENDEREY, Israel Drapkin. Imprensa e criminalidade. Tradução e adaptação Éster Kosovski. Livraria e Editora José Bushatsky Ltda. São Paulo: 1983.
[2] BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio - Revista Brasileira de Ciências Criminais, Edição 43, Editora Revista dos Tribunais.
[3] ANDRADE, Manuel da Costa, DIAS, Jorge de Figueiredo. Criminologia: o homem delinquente e a sociedade criminógena. 2. Reimpressão. Coimbra Editora: 1997.
[4] Igualmente considerando violado o princípio da proporcionalidade, AZEVEDO, Tupinambá Pinto de. (cf. n. 8), pp. 211-212.
[5] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Livraria Almedina, 1998, p. 417.
[6] Artigo retirado do site Souto Mairo Consultoria. Publicado no dia 11 de julho de 2007. Link: http://www.soutomaior.adv.br/ .
[7] MATTOS, Mauro Roberto Gomes de. Absolvição penal que nega a autoria do fato, mas grafa na parte dispositiva da sentença a falta de prova como fundamento, repercute na esfera administrativa.
[8] REALE JÚNIOR, Miguel. Instituições de direito penal. vol. 1. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2004.
[9] BORGES, Paulo César Correa. Direito penal democrático. São Paulo: Lemos & Cruz, 2005.
[10] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão – teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
[11] MAIA NETO, Cândido Furtado. Teoria penal dos “res” e os direitos humanos. Revista Jus Vigilantibus, Terça-feira, 30 de outubro de 2007.
[12] SILVA, Enio Moraes da. O estado democrático de direito. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005
[13] AMAERJ repudia estado policialesco. Publicado no endereço: http://www.amaerj.org.br/. Data: 08/01/08.
[14] SOALHEIRO, Marco Antonio. Repórter da Agência Brasil. Publicado no site: http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2009/03/03/.
[15] Uma dica para quem se interessa pelo assunto é o site Carta Maior (http://www.cartamaior.com.br/).
[16] SANSON, Cesar. O caráter da criminalização dos movimentos sociais no Brasil. Criminalización y derechos humanos. Ano IX Nº 24 - Outubro de 2008.
[17] Para maiores informações sobre a empresa: http://www.aracruz.com.br/home.do?lang=1.
[18] SANNINI NETO, Francisco. Direito penal do inimigo e Estado democrático de direito: compatibilidade. Fonte: http://revistaautor.com/.
[19] SIQUEIRA, Alexandre Marques de. Estado democrático de direito. Publicado no site do Jus Navigandi: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=12155/. Elaborado em 12.2006.
[20] LAKATOS, Eva Maria. Sociologia geral. 7.ed. São Paulo: Atlas, 1999.
[21] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
[22] ALVES, Ariel de Castro. Educar para não encarcerar. Publicado em: http://www.direitos.org.br, no dia 05 de novembro de 2007.
[23] Prêmio Nobel em Economia/1998.
[24] GALVÃO, Roberto Carlos Simões. Educação para a cidadania: o conhecimento como instrumento político de libertação. Retirado de: http://www.educacional.com.br/articulistas/.
[25] McCOLD, e WACHTEL; Paul, e Ted. Em busca de um paradigma: uma teoria de justiça restaurativa. Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 15 de agosto de 2003, Rio de Janeiro. Disponível em http://iirp.org/library/paradigm_port.html . Acesso em: 13 mar. 2006.
[26] BRANCHER, Leoberto. De volta para casa: relato de uma experiência de Justiça Restaurativa. Site do Juizado da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/jij_site.home.
[27] MANKIEWICZ, Frank, SWEDLOW, Joel. Remote control – television and the manipulation of american life. N.Y. New York Times Bookd, 1978.
Graduanda do quarto ano de direito da UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho"
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NATARELLI, Talita Vanessa Penariol. O Crime da Mídia Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jul 2009, 08:32. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17938/o-crime-da-midia. Acesso em: 23 dez 2024.
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