Dia 17 de junho, segundo consta no portal do site desse Ilustre Instituto, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou uma proposta de emenda à Constituição, cujo objetivo é reduzir a maioridade penal para 16 anos.
Estamos diante de mais uma “aberração jurídica”, eivada pelo vício da inconstitucionalidade. Vejamos que pela própria Emenda nº 45 da CF, os tratados e convenções de direitos humanos ratificados pelo Brasil, passam a vigorar como emenda constitucional. Conforme reza a Convenção Sobre os Direitos da Criança adotada pela Resolução nº L. 44 (XLIV) da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 20 de setembro/1990 : “ art. 1º Para os efeitos da presente Convenção, entende-se por criança todo ser humano menor de 18 anos de idade, salvo se, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.” (1)
A Convenção Sobre os Direitos da Criança é clara em considerar como criança os menores de 18 anos de idade. “Em defesa da maior eficácia dos Direitos Humanos Fundamentais, a EC nº45/04 consagrou a submissão do Brasil à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.” (2) Há doutrinadores que consideram essa entrada em vigor dos Tratados e Convenções não apenas como emenda constitucional, mas como lei ordinária propriamente dita. Dessa forma, constitucionalmente falando, ficaria uma situação estranha; significaria uma proposta de emenda da emenda ou a emenda de uma lei ?
Mesmo que não seja o caso acima descrito, há que se apontar a flagrante inconstitucionalidade, pois conforme art.60, parágrafo 4º, inc.IV, CF, os direitos e garantias individuais contidos em todo art.5º da CF são denominados de cláusulas pétreas, onde não poderão ser objeto de deliberação que os modifique.
Enquanto a Convenção considera como criança os menores de 18 anos, a lei especial que tutela os seus direitos, o ECA ( Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº8.069, de 13 de julho de 1990) prescreve em seu art. 2º : “ Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. Parágrafo único. Nos casos expressos em lei, aplica-se excepcionalmente este Estatuto às pessoas entre dezoito e vinte e um anos de idade.” (3)
De uma maneira geral, o ECA traz as maneiras de como as crianças e os adolescentes devem ser tratados na sociedade, família e na escola, seus direitos e responsabilidades de um ser humano que se encontra em formação física e psíquica.
“O Estatuto da Criança e do Adolescente segue a doutrina da proteção integral, que se baseia no princípio do melhor interesse da criança (the best interest of the child). Segundo ela, o Estado brasileiro tem o dever de garantir as necessidades da pessoa em desenvolvimento (de até 18 anos de idade), velando pelo seu direito a vida, saúde, educação, convivência, lazer, liberdade, profissionalização e outros (art. 4º do ECA), com o objetivo de garantir o “desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade”” (art. 3º do ECA).
“Embora alguns documentos internacionais, como a Declaração de Genebra, em 1924, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas, em 1949, e a Declaração dos Direitos da Criança, em 1959, tenham dado os primeiros contornos na proteção à infância, a doutrina da proteção integral nasceu no IX Congresso Panamericano Del Niño, realizado em Caracas, em 1948, e no X Congresso Panamericano Del Niño, realizado no Panamá, em 1955.
No Brasil, a doutrina da proteção integral foi proclamada no art. 227 da CF/1988, que fixou a questão do menor como prioridade absoluta, dever da família, sociedade e Estado.”
Assim colocado pelo ECA, pela Convenção Sobre os Direitos da Criança e pela Constituição Federal, a criança e o adolescente são considerados seres humanos em formação e utilizando-se do princípio da proteção integral, resta inadmissível que a maioridade penal seja reduzida, pois não será essa a causa que diminuirá os atos infracionais cometidos pelos jovens.
“Baseado na psicologia evolutiva e adotando o critério cronológico absoluto, o art. 2º ECA estabelece a diferença técnica entre criança, assim definida como a pessoa de até 12 (doze) anos incompletos, e adolescente, aquela entre 12 (doze) e 18 (dezoito) anos de idade, evitando o uso do termo menor, que se referia à doutrina de situação irregular. A pessoa com idade entre 18 (dezoito) e 21 (vinte e um) anos denominamos, genericamente, de jovem adulto.”
“A distinção é relevante, principalmente no que se refere à prática de ato infracional, porque ao adolescente infrator podem ser aplicadas medidas protetivas (art. 101) e sócio-educativas (art. 112), ao passo que à criança infratora somente podem ser aplicadas medidas protetivas.” (4). Dessa forma, a redução da maioridade penal para 16 anos, onde um jovem passa a ser indiciado formalmente na esfera criminal, no meu sentir, torna-se um estigma muito grande e difícil de ser suportado para uma pessoa que ainda não atingiu a vida adulta.
Ainda tem-se a colocar, que essa iniciativa prejudicaria ainda mais a situação das crianças e jovens que vivem à margem da nossa sociedade. Sim, porque a diferença econômica e cultural entre as pessoas em nosso país é marcante. Os maiores prejudicados seriam os pobres, ou seja, as crianças sem família, sem alimento, sem escola, aquelas que vivem jogadas em um submundo de descaso e degradação social nas calçadas frias das grandes cidades.
É lamentável a ignorância das pessoas em relação ao que seja o sistema prisional brasileiro, bem como a marca negativa que gera um processo criminal através de um suposto indiciamento ou mesmo uma condenação. É fato sabido que o encarceramento não reabilita ninguém, e no caso de jovens a situação comportamental do indivíduo certamente pioraria.
Conforme ilustra o sábio mestre Aury Lopes Jr.: “A falência da pena de prisão é inegável. Não serve como elemento de prevenção, não reeduca e tampouco ressocializa. Como resposta ao crime, a prisão é um instrumento ineficiente e que serve apenas para estigmatizar e rotular o condenado, que, ao sair da cadeia, encontra-se em uma situação muito pior do que quando entrou. Dessarte, o Direito Penal deve ser mínimo e a pena de prisão reservada para os crimes realmente graves. O que deve ser máximo é o Estado Social.”
Ainda na lição perfeita do ilustre professor : “O law and order é pura propaganda enganosa, que nos fará mergulhar numa situação ainda mais caótica. É mais fácil seguir no caminho do Direito Penal simbólico, com leis absurdas, penas desproporcionadas e presídios superlotados, do que realmente combater a criminalidade. Legislar é fácil e a diarréia legislativa brasileira é prova inequívoca disso.”
Dessa forma, há que se concordar com as palavras do mestre gaúcho, pois na situação colocada pela Comissão de Constituição e Justiça, nota-se apenas a intenção de um direito penal simbólico, ou seja, leis que servem para aplacar o clamor da opinião pública. Com a falsa intenção de diminuir a criminalidade entre os jovens, os políticos tomam qualquer iniciativa que os faça aparecer diante da sociedade e dessa forma, garantir sua platéia eleitoral.
“Na síntese de Zaffaroni, o aumento de penas abstratas oferecidas pela hipocrisia dos políticos, que não sabem o que propor, não tem espaço para propor, não sabem ou não querem modificar a realidade. Como não tem espaço para modificar a realidade, fazem o que é mais barato: leis penais ! “
“Difícil é reconhecer o fracasso da política econômica, a ausência de programas sociais efetivos e o descaso com a educação. Ao que tudo indica, o futuro será pior, pois os meninos de rua que proliferam em qualquer cidade brasileira ingressam em massa nas faculdades do crime, chamadas de FEBEM. A pós-graduação é quase automática, basta completar 18 anos e escolher algum dos superlotados presídios brasileiros, verdadeiros mestrados profissionalizantes do crime.” (5)
Também concordo que essa situação de jovens infratores é proporcionalmente ocasionada pela falta de uma política educacional do Estado, bem como pela ausência de uma família estruturada que dê cultura e imponha limites aos filhos. Porém, não posso afirmar que essa situação piore ainda mais, pois é nosso dever como operadores do direito e guardiães da justiça que lutemos para um futuro mais digno às nossas crianças e adolescentes.
Ainda, com relação à proposta de emenda colocada pela Comissão de Constituição e Justiça, tem-se a acrescentar que o próprio Código Penal ficaria desatualizado, pois conforme reza o art. 27 : “Os menores de 18 (dezoito) anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.” A Legislação especial trata-se do ECA e o artigo citado diz respeito à inimputabilidade do jovem.
Somente os maiores de 18 anos são imputáveis sob o aspecto penal, ou seja, possuem total consciência da prática do crime cometido. “O agente deve ter condições físicas, psicológicas, morais e mentais de saber que está realizando um ilícito penal. Além dessa capacidade plena de entendimento, deve ter totais condições de controle sobre sua vontade. Em outras palavras, imputável é não apenas aquele que tem capacidade de intelecção sobre o significado de sua conduta, mas também de comando da própria vontade.”
São quatro as causas que excluem a imputabilidade : a- doença mental ; b- desenvolvimento mental incompleto ; c- desenvolvimento mental retardado e d- embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior.
No caso em tela, o menor de 18 anos está configurado na letra “b” acima, ou seja, possui desenvolvimento mental incompleto, isto é, pratica o ato infracional, mas não tem condições de saber exatamente as conseqüências nefastas que trará para a vítima. Nas lições do brilhante e supremo mestre Fernando Capez: “Desenvolvimento mental incompleto é o desenvolvimento que ainda não se concluiu, devido à recente idade cronológica do agente ou à sua falta de convivência em sociedade, ocasionando imaturidade mental e emocional. No entanto, com a evolução da idade ou o incremento das relações sociais, a tendência é a de ser atingida a plena potencialidade.” (6)
Um ser humano com desenvolvimento mental incompleto, não tem condições psicológicas e morais para ser indiciado ou acusado pela prática de crime. “Com o inquérito policial, o sujeito passivo está submetido a toda uma série de atos e degradation cerimonies que integram e são inerentes à própria investigação preliminar. Formalizado o indiciamento, estará o sujeito passivo submetido ou com maiores possibilidades de ver-se compelido a comparecer sempre que chamado ; medidas cautelares (prisão temporária ou preventiva) e liberdade condicional ; medidas assecuratórias de bens, como o seqüestro (art.125) ; interrogatórios ; acareações ; reconhecimentos ; atos de averiguação de sua identidade e capacidade ; etc.. Em suma, a principal carga que assume o indiciado é a de encontrar-se em uma situação jurídica de maior submissão aos atos de investigação que integram o inquérito policial.” (7)
Por tudo isso, no nosso sentir, a redução da maioridade penal de uma pessoa que ainda não possui o desenvolvimento mental pleno, só produzirá crianças e jovens mais violentos, aumentando os atos infracionais por eles cometidos. Tem-se a acrescentar, que os adolescentes pobres e sem família, seriam aqueles que mais sofreriam com essa absurda proposta legislativa. Não podemos nos esquecer que o nosso país é marcado por uma grande desigualdade econômica, cultural e social, onde os que mais sofrem são aqueles que não tem condições de pagar por um bom advogado, sendo condenados e encarcerados sem o amparo de uma defesa que os considere cidadãos dignos.
Dessa forma, antes de pensarmos em recrudescer as leis penais para os menores de 16 anos, deveríamos pensar que nossas crianças e adolescentes, na maioria dos casos, são carentes de educação, de uma família estruturada, de uma palavra de incentivo, de afeto, de atenção, de carinho e às vezes, até de um sorriso.
Notas:
(1) Sampaio Penteado Filho, Nestor; Manual de Direitos Humanos, São Paulo : Ed. Método, 2006
(2) Moraes, Alexandre de ; Direito Constitucional. 19º ed., São Paulo : Editora Atlas S.A., 2006
(3) Del-Campo, Eduardo Roberto Alcântara; Estatuto da Criança e do Adolescente – Série Leituras Jurídica : Provas e Concursos. 2ª ed., São Paulo : Ed. Atlas S.A., 2006
(4) Idem acima
(5) Lopes Jr., Aury ; Introdução Crítica ao Processo Penal (Fundamentos da Instrumentalidade Garantista). 3ª ed., Rio de Janeiro : Ed. Lumen Juris, 2005
(6) Capez, Fernando ; Curso de Direito Penal, parte geral – volume 01. 5ª ed. , São Paulo: Ed. Saraiva, 2003
(7) Lopes Jr., Aury ; Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal – 3ª ed., Rio de Janeiro : Ed. Lumen Juris, 2005.
Bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero ; bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas de Guarulhos - FIG ; Especialista em Ciências Criminais pela Rede de Ensino LFG ; associada do IBCCRIM e advogada da Assistência Judiciária ( DP/SP) na cidade de São Paulo. E-mail : [email protected]
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FUGA, Cynthia Silva. Redução da maioridade penal: mil vezes não!!! Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 jul 2009, 07:47. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/17980/reducao-da-maioridade-penal-mil-vezes-nao. Acesso em: 23 dez 2024.
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