SUMÁRIO
1. Introdução 2- Metodologia de Direito Comparado 3- Direitos Fundamentais e a Saúde. 4 - Controle Contole judicial da efetivação de políticas públicas na área de saúde na África do Sul 4 - Contole judicial da efetivação de políticas públicas na área de saúde no Brasil 5 - Comparação África do Sul X Brasil 6. Considerações Finais. 7. Referências bibliográficas.
RESUMO
Este artigo aborda a questão da efetivação dos direitos sociais, em especial o direito à saúde, pelo Poder Judiciário. O objetivo é demonstrar a necessidade de tal atuação pelo juiz, principalmente em países onde a desigualdade é premente. Para tanto, se discorrerá dialeticamente sobre as várias limitações apresentadas ao controle de políticas públicas pelo Judiciário. Com a análise dos quadros brasileiro e sul-africano, o foco se dá principalmente na situação enfrentada pelo países subdesenvolvidos, onde ao mesmo tempo que existe o problema da disponibilidade de recursos, há a necessidade do judiciário atuar diante da inconsistente representatividade e eficiência do Legislativo e Executivo. O recurso ao direito comparado enriquece o discurso e fornece maiores subsídios na formulação de soluções criativas aos problemas enfrentados.
ABSTRACT
This article studies the social right's implementation issue, particularly the right to health, by the Judiciary branch. The goal is to demonstrate the necessity of such an actuation by the judge, mostly in some countries where the inequality is pressing. With this purpose, it will discuss about the several limitations concerned to the enforcement of the social rights by the Judiciary. Based on the analysis of the brazilian and the south-african prospects, it focus mainly on the situations handled by the underdeveloped countries, where, at the same time, there is a lack of resources and, also, there is the necessity of the judicial enforcement due to the inefficiency and inconsistent representation of the Legislative and Executive. The resource to the comparative law enriches the discourse and provides greater benefits in the formulation of creative solutions to the problems faced.
1- Introdução
O presente artigo visa a analisar a possibilidade do controle judicial de políticas públicas na área da saúde, tendo-se em conta as limitações existentes ao mesmo.
Para atingir o objetivo proposto, o artigo divide-se em cinco partes, sendo ao final expostas as conclusões.
Na primeira, é procedida a breve análise da metodologia de produção de trabalhos de Direito Estrangeiro, diferenciando-a do Direito Comparado, explicitando as premissas do trabalho. Na segunda parte, aborda-se o direito fundamental à saúde, através de seus múltiplos aspectos de raiz constitucional. Na terceira, discorre-se sobre como o judiciário sul-africano vem enfrentando o tema do concretização judicial do direito à saúde, demonstrando memorável decisão em prol da efetivação do mesmo. Na quarta, é traçado um panorama do trato do assunto no Brasil, tendo como subsídio o desafio surgido com a questão do Tamiflu e da Gripe Suína. Na quinta, é feito o comparativo entre as soluções jurídicas adotadas pelo Brasil e pela África do Sul. Finalmente, são apontados os pontos principais do texto.
2- POR QUE RECORRER AO DIREITO ESTRANGEIRO?
O estudo do direito comparado tem uma importância fundamental na medida em que fornece elementos para uma investigação científica do direito. Serrano (2006, p. 34) aponta como primeira grande utilidade das análises de direito comparado, a possibilidade de indicar as normas jurídicas afins nas legislações nacionais e estrangeiras, com o objetivo de confrontá-las para determinar as analogias e diferenças existentes entre sistemas e institutos, bem como avaliar o desenvolvimento e aproximação das legislações ou instituições jurídicas de diversos países, formando assim “o novo Direito Positivo Contemporâneo”.
Neste aspecto, há que salientar a advertência de Sacco (2001, p. 27) que chama a atenção para um sentimentalismo que sugere a idéia de que a comparação aumentaria a compreensão entre os povos e contribuiria para a coexistência das nações. Conforme demonstra o autor, a comparação pressupõe o conhecimento da regra jurídica estrangeira, a qual, por seu turno, pode suscitar simpatia, ou pode também conduzir a reações polêmicas. De qualquer modo, destaca Sacco (2001, p. 28) que a comparação não comporta necessariamente uma valoração, positiva ou negativa, favorável ou crítica, das outras instituições.
Prosseguindo no rol de finalidades do Direito Comparado, Serrano (2006, p. 35) acrescenta a de confrontar teorias e doutrinas jurídicas: conceitos, classificações, interpretações, correlações e generalizações jurídicas. Aponta, ainda, como finalidade, conhecer a natureza e evolução histórica das instituições do Direito, relacionando as notícias e tradições do passado com o presente. Também, indica a sua importância na descoberta e formulação dos princípios comuns que regem as relações das nações civilizadas, bem como na determinação da possibilidade de enriquecimentos recíproco entre normas jurídicas, e, por fim, o fornecimento de bases jurídicas e conclusões cientificas, a partir da experiência nacional e internacional, com o objetivo de aperfeiçoar os diferentes sistemas jurídicos.
Conforme se percebe, entre as finalidades apresentadas pelo autor, encontra-se a utilização do direito comparado para aperfeiçoamento do direito nacional. A esse respeito, Sacco (2001, p. 43) aponta que a comparação enquanto ciência visa adquirir dados teóricos, independentemente de ulteriores utilizações destes dados, de forma que ela, como pesquisa pura, já tem obtém por si resultados, tais como análises das diferenças e analogias entre common law e civil law, reconstruções científicas do etnodireito, balanço das transformações do direito afro-asiático frente ao direito europeu, indagações sobre diferenças entre o direito dos países capitalistas e o direito dos países socialistas. Estas conquistas, segundo o autor, são obra da ciência, ainda que não sejam seguidas da circulação de modelos.
O direito comparado pode dar margem à alteração da legislação interna de determinado país. Conforme ressalta Sacco (2001, p. 165) os modelos jurídicos mudam ininterruptamente por lenta evolução ou por sobreposição global, ocorrendo mutações propriamente originais - inovações, e as imitações. Segundo o autor, inovações de modelos jurídicos são feitas a todo instante, mas as únicas inovações que contam são aquelas que “provêm de uma ‘autoridade’, ou que são feitas precisamente por uma ‘autoridade’, ou que encontrem imitadores e adquiram assim uma difusão generalizada” (SACCO, 2001, p. 167). Por outro lado, destaca Sacco (2001, p. 167) que a natureza da inovação é mais ambígua, pois, se encontrar imitadores, será uma descoberta e, se não os encontrar, será uma opinião isolada, um erro.
Destaca Sacco (2001, p. 168) que nascimento de um modelo original é um fenômeno mais raro do que imitação. E a originalidade não é sempre acompanhada da ressonância que suscita em torno de si. Sacco (2001, p. 170) destaca as imitações de modelos e de leis, além das imitações doutrinárias e as judiciais. Nesse último grupo, destaca Sacco (2001,p. 171): a) Imitação direta de juízes por juízes; b) Imitação através de intermediários; e c) Imitação através de intermediários quando a jurisprudência de um país vem ilustrada pela doutrina nacional, sendo esta uma imitação da doutrina de um segundo país, a qual produz uma ulterior recepção judicial. Segundo o autor, assim como as imitações doutrinárias, as imitações judiciais são um tanto independentes das correlações dos modelos legais dos países interessados. A circulação ocorre, portanto, de modo transistemático, de formante a formante homólogo.
Por outro lado, Sacco (2001, p. 181) relata que os raros casos de inovação criativa e original dependerá de uma escolha política consciente, veiculada pelas mudanças na escala de valores ou na ideologia, ou mesmo pela tomada do poder por detentores de valores ou ideologias diferentes e opostos àqueles até então vigentes. Inversamente, às vezes a inovação é introduzida por fenômenos estruturais próprios daquele dado sistema jurídico. Assim, a racionalização dos modelos jurídicos ocorre por assimilação (tratamento idêntico de casos adotados de um elemento de analogia) e dissimilação (tratamento diferenciado de casos dotados de um elemento distinto). Menciona o autor, por outro lado, que as causas próximas da imitação, perceptíveis pelo jurista, praticamente se reduzem a duas: a imposição e o prestígio. As primeiras em geral são reversíveis e cessam quando a relação de força se modifica. Por outro lado, destaca Sacco (2001, p. 184) que o elemento mais encontrado à base da recepção é o desejo de apropriar-se das atribuições de outrem, quando estas carreguem uma qualidade que comumente chamamos de “prestígio”. O prestígio pode revestir um único instituto, ou um ordenamento inteiro. Por outro lado, ressalva o autor que um modelo não tem, no lugar em que surgiu, raízes mais profundas do que em outro, antes pelo contrário, porque “o caráter criativo do modelo A, surgido no país A’, implica que o país A’ tenha uma capacidade de inovação que poderá manifestar-se no futuro, com a substituição do modelo A por um outro modelo B” (SACCO, 2001, p. 185).
Por outra via, entre dois sistemas similares verifica-se uma tendência à produção de influências e imitações mais intensas do que a existente entre sistemas muito diferentes. Ainda, um sistema lacunoso será levado a imitações, quaisquer que sejam, para preencher-lhe o vazio. Destaca o autor, ainda, a relação entre direito, política e taxonomia: a regra ligada a uma escolha política capaz de despertar a paixão dos cidadãos certamente pode circular. Mas a imitação está vinculada a uma condição precisa: a regra circula se a idéia política circular (SACCO, 2001, p. 187). Destaca, ainda, o autor (2001, p. 187) que alguns modelos são mais fáceis de se observar e compreender. Por outro lado, o conhecimento do modelo a ser imitado necessita de um certo conhecimento da língua em que o modelo se expressa.
Além da modificação do Direito nacional, o Direito Comparado pode também trazer como resultado a Unificação, ou seja, a uniformização do direito. Nesse aspecto, Sacco (2001, p.194) destaca o crescimento de um “ardor universalístico” que nasceu quando o jurista tomou consciência das restrições que limitavam os seus horizontes, após a formação das barreiras nacionais e desenvolveu-se sobretudo quando se pensou que a uniformização estivesse chegando ao fim de um exame comparativo das soluções em questão, o qual teria premiado o modelo culturalmente sofisticado e socialmente mais evoluído.
Ao mesmo tempo, ressaltam-se também as críticas ao estudo comparativo. Segundo Marc Ancel (1980, p 16) três críticas principais foram levantadas contra toda pesquisa jurídica comparativa: em primeiro lugar, o direito nacional seria suficientemente difícil de ser conhecido com clareza para que se possa complicar com os sistemas estrangeiros; Em segundo lugar, o direito comparado seria uma fonte constante de confusão. Por fim, Ancel (1980, p. 16) destaca que outros afirmam que o direito de um país faz parte do patrimônio nacional.
Várias são as críticas também lançadas à denominação “direito comparado”. Nesse aspecto, Ancel (1980, p. 44) ressalta que o direito comparado consiste fundamentalmente na constatação dos pontos comuns e das divergências existentes em dois ou vários direitos nacionais. Seria, assim, essencialmente um processo de comparação, o que levaria a críticas à expressão direito comparado, pois não haveria direito comparado no sentido em que se fala normalmente em livros de direito civil, de direito penal ou de direito administrativo.
Com efeito, a expressão “Direito Comparado” é equívoca, e, neste sentido, Ancel (1980, p. 44) assinala que a expressão alemã Rechtsvergleichung é certamente preferível. Mas os termos direito comparado, diritto comparato, derecho comparado, comparative law são tão correntes no campo jurídico que seria difícil modificá-los.
A distinção entre o direito comparado e o direito estrangeiro é que o direito comparado vai além do estudo e da descrição das leis estrangeiras. Um estudo sério de direito estrangeiro, o mais completo quanto possível, é indispensável antes de toda comparação propriamente dita. O fato é que devem ser evitadas aproximações levadas a efeito por abordagens horizontais, sem estudo vertical suficiente. Assim é que Ancel (1980, p. 105) aponta que o direito comparado está na dependência dos estudos de direito estrangeiro e que o direito estrangeiro é a matéria-prima do direito comparado.
Este artigo, porém, pretende demonstrar que em que pesem as críticas suscitadas, o recurso ao direito estrangeiro é sempre interessante do ponto de vista científico, máxime no caso ora abordado. Com efeito, países outros e a África do Sul em especial, passaram por crises endêmicas e epidêmicas, tendo enfrentado discussões jurídicas sobre o fornecimento de medicamentos, da mesma forma que o Brasil ora enfrenta essa discussão.
Eis, em suma a razão da escolha do tema, que será bem dissecado nos itens seguintes.
3- DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITO À SAÚDE
A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente difícil, tendo em vista a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico. Aumenta essa dificuldade, o fato de se empregarem várias expressões para designá-los, como “direitos naturais”, “direitos humanos”, “direitos públicos subjetivos”, “liberdades fundamentais” [1] etc.
A expressão direitos fundamentais, consoante assinala José Afonso da Silva (2005, p. 56) não significa esfera privada contraposta à atividade pública, mas sim “limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem”. Da definição exposta pelo autor, verifica-se sua posição no sentido de limitar a expressão ao campo de abrangência da proteção dos particulares contra o Estado.
Uma noção mais atualizada dos direitos fundamentais, porém, conduz à conclusão de que estes representam a constitucionalização dos direitos humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história e que são reconhecidos como condição para o exercício dos demais direitos. Haveria, dessa forma, “um conteúdo mínimo de direitos fundamentais que caracterizam o direito de um Estado Democrático” (SAMPAIO, 2006, p. 17).
Segundo José Afonso da Silva( 2005, p. 58), os direitos fundamentais teriam os seguintes caracteres: a) historicidade;b) imprescritibilidade; c) irrenunciabilidade. São, assim, os direitos fundamentais históricos, o que rechaça qualquer fundamentação no direito natural. São imprescritíveis dada a sua natureza de direitos personalíssimos de natureza em geral não patrimonial; são, por fim, irrenunciáveis, embora possam deixar de ser exercidos.
Quanto ao conteúdo dos direitos fundamentais, esse foi sendo paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter histórico. Com efeito, consoante assinala Canotilho (1989, p. 425), os direitos fundamentais “ pressupõem concepções de Estado e de Constituição decisivamente operantes na atividade interpretativo-concretizadora das normas constitucionais”.
Inicialmente, no constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os direitos de liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente nos direitos de autonomia e defesa. Os postulados desta teoria liberal vem bem expostos por Canotilho (1989, p. 426) que aponta os seguintes : 1) os direitos fundamentais são direitos do particular contra o estado; 2) revestem concomitantemente o caráter de normas de distribuição de competências entre o indivíduo e o Estado; 3) apresentam-se como pré-estaduais, sendo vedada qualquer ingerência do Estado; 4) a substância e o conteúdo dos direitos fundamentais, bem como sua utilização e fundamentação, ficariam fora da competência regulamentar do Estado; 5) a finalidade e o objetivo dos direitos fundamentais é de natureza puramente individual.
A teoria da ordem dos valores, associada à doutrina de Smend e à filosofia de valores, definia os direitos fundamentais como valores de caráter objetivo, o que levava a conseqüências indicadas por Canotilho (1989, p. 427): 1) o indivíduo deixa de ser a medida dos direitos, pois os direitos fundamentais são objetivos; 2) no conteúdo essencial dos direitos fundamentais está compreendida a tutela de bens de valor jurídico igual ou mais alto.; 3) através da ordem de valores dos direitos fundamentais respeita-se a totalidade do sistema de valores do direito constitucional; 4) os direitos fundamentais só podem ser realizados no quadro dos valores aceitos por determinada comunidade; 5) a dependência do quadro de valores leva à relativização dos direitos fundamentais; 6) além da relativização, a transmutação dos direitos fundamentais em realização de valores justifica intervenções concretizadoras dos entes públicos, de forma a obter eficácia ótima dos direitos fundamentais.
A teoria institucional dos direitos fundamentais, capitaneada por Peter Haberle parte da afirmação de que os direitos fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, mas possuem um caráter duplo, ou seja, individual e institucional. Cabe, desse modo, à teoria, “o mérito de ter salientado a dimensão objetiva institucional dos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 1989, p. 428) embora se esqueça de outras dimensões dos direitos fundamentais, como a esfera social.
A teoria social dos direitos fundamentais parte da tripla dimensão destes direitos: individual; institucional e processual. Essa dimensão processual “ impõe ao Estado não só a realização dos direitos sociais, mas permite ao cidadão participar da efetivação das prestações necessárias ao seu livre desenvolvimento” (SAMPAIO, 2006, p. 30).
A teoria democrática funcional defende que os direitos são concedidos aos cidadãos para serem exercidos como membros da comunidade e no interesse público. Por outro lado, consoante ressalta Canotilho (1989, p. 429) “a liberdade não é a liberdade pura e simples, mas a liberdade como meio de prossecução e segurança do processo democrático, pelo que se torna patente o seu caráter funcional”. A teoria parte assim da idéia de um cidadão ativo, com direitos fundamentais colocados a serviço do princípio democrático.
Expostas as teorias que pretendem fixar o conteúdo dos direitos fundamentais, importa destacar a classificação dos direitos fundamentais procedida por Ingo Sarlet (2006, p. 194) que divide os direitos fundamentais em dois grupos: direitos fundamentais como direitos de defesa e direitos fundamentais como direitos a prestações. Esse último grupo, por seu turno, subdivide-se em direitos a prestações em sentido amplo, direitos à proteção, direitos a prestações em sentido estrito – direitos sociais - e direitos à participação na organização e procedimento.
A primeira divisão apontada, relativa aos direitos de defesa e direitos a prestações, parte da clássica distinção efetivada pela doutrina. Com efeito, os direitos fundamentais de defesa se dirigem a uma obrigação de abstenção por parte dos poderes públicos, que deverá respeitar os direitos individuais. Por outro lado, os direitos fundamentais a prestações implicam uma postura ativa do Estado, que é obrigado a colocar a disposição dos indivíduos prestações de natureza jurídica e material(SARLET, 2006. p. 216).
Em relação aos direitos de defesa, esses abrangem não somente os tradicionais direitos de liberdade e igualdade, como também os direitos à vida, à propriedade, às liberdades fundamentais de locomoção, de consciência, de manifestação de pensamento, de imprensa e de associação, além dos direitos que irradiam da personalidade, da nacionalidade e da cidadania, bem como os direitos coletivos.
Em relação aos direitos fundamentais como prestações, estes se encontram vinculados à concepção de que ao Estado incumbe colocar à disposição os meios materiais e implementar as condições que possibilitem o efetivo exercício das liberdades fundamentais. Dentro da subdivisão, efetivada por Sarlet (2006, p. 221) entre direitos a prestações em sentido amplo e estrito, tem-se que, segundo o autor, na rubrica de direitos a prestações em sentido amplo enquadram-se todos os direitos fundamentais de natureza tipicamente (ou, no mínimo, predominantemente) prestacional que não se enquadram na categoria de direitos de defesa. Quanto aos direitos a prestações em sentido estrito, Sarlet (2006, p. 221) aponta que estes se reportam à atuação dos poderes públicos como expressão do Estado Social. Trata-se, por outro lado, de direitos a prestações fáticas que o indivíduo, caso dispusesse de recursos necessários, poderia obter através de particulares. São, assim, os chamados direitos fundamentais sociais.
Voltando-se aos direitos fundamentais a prestação em sentido amplo, Sarlet (2006, p. 222) destaca os direitos à proteção, que seriam aqueles que outorgam ao indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de terceiros em determinados bens pessoais.
Há, também, a dimensão dos direitos fundamentais de participação na organização e procedimento. Tal dimensão, além de outorgar legitimidade ao Estado Democrático de Direito, ao tempo em que assegura uma democracia com elementos participativos. Neste aspecto, Sarlet (2006, p. 226) afirma que importantes liberdades pessoais somente atingem um grau de efetiva realização no âmbito de uma cooperação por parte de outros titulares de direitos fundamentais, implicando prestações estatais de cunho organizatório.
Ressalte-se, porém, como faz Andréas Krell (1999, p. 245), que a doutrina moderna dá ênfase em afirmar que qualquer direito fundamental contém, ao mesmo tempo, componentes de obrigações positivas e negativas para o Estado. Desta forma, a tradicional diferenciação entre os direitos “da primeira” e os “da segunda” geração seria meramente gradual, mas não substancial, uma vez que muitos dos direitos fundamentais tradicionais seriam reinterpretados como sociais, perdendo sentido, assim, as distinções rígidas.
Dentre os direitos prestacionais em sentido estrito pode-se elencar o direito à saúde, reconhecido e proclamado como direito fundamental da pessoa humana e da coletividade. Neste sentido, a Carta Política do Brasil de 1988 estabeleceu que “a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Frise-se que, consoante Sueli Gandolfi Dallari (2003, p. 48), o conceito de saúde adotado nos documentos internacionais de direitos humanos abrange desde a típica face individual do direito subjetivo à assistência médica em caso de doença, até a constatação da necessidade do direito do Estado ao desenvolvimento, personificada no direito a um nível de vida adequado a manutenção da dignidade humana.
Evidentemente o direito a saúde deve ser priorizado pelo Estado, vez que é conditio sine qua non para a cidadania, compreendida, segundo as lições de Manoel Jorge e Silva Neto (2008, p. 251), em sentido amplo. É dizer: “consagrar-se o fundamento à cidadania em sentido amplo é vincular o Estado à obrigação de destinar aos indivíduos direitos e garantias fundamentais, mui especialmente aqueles relacionados aos direitos sociais”.
Ademais, insta consignar que o direito fundamental à saúde está inscrito no “mínimo existencial” para a sobrevivência do indivíduo e garantia da dignidade da pessoa humana. Andreas Krell (2002, p. 63) sugere que o “padrão mínimo existencial” incluirá sempre o atendimento básico e eficiente a saúde. Desta forma, pode-se afirmar que as prestações a saúde que compõem o mínimo devem ser sindicáveis pelo Poder Judiciário quando constatado o abuso ou a omissão do Legislativo e Executivo, a fim de dar guarida ao Estado Democrático de Direito.
Tal prévia análise do conceito e conteúdo dos direitos fundamentais e especificamente do direito à saúde, é relevante para a verificação da concretização dos direitos fundamentais através do controle judicial de políticas públicas, tanto no Brasil como na África do Sul, o que se demonstra a seguir.
4- CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE NA ÁFRICA DO SUL
Antes de adentrar no estudo propriamente dito da atuação do poder judiciário sul-africano na concretização dos direitos fundamentais sociais, através da análise de caso que se tornou lead case no país em relação às políticas de saúde, insta contextualizar o desenvolvimento da democracia no referido país, por estar intrinsecamente ligada ao caráter efetivador que o judiciário assumiu em relação aos direitos sociais.
Primeiramente, mister esclarecer que apesar de contar com pouco mais de quinze anos, a Corte Constitucional Sul-Africana, ou South African Constitucional Court, vem se revelando um instrumento de força transformadora e concretizadora da democracia e dos direitos fundamentais sociais no país.
O tribunal foi criado em 1993 pela constituição interina que fora adotada naqueles primeiros momentos de mudança política que se sucederam ao início do repúdio à política de segregação social do apartheid, tendo iniciado suas atividades no ano seguinte.[2]
Os trezentos anos de história sul-africana que precederam essa reviravolta em rumo à liberdade e à democracia, foram marcados por conflitos entre colonizadores europeus de três diferente países, além das tribos negras nativas. Com as descobertas das minas de ouro e diamantes a submissão dos negros, os quais serviam de mão de obra para os brancos, se agravou e, na mesma proporção, aumentava a segregação racial.
Tais fatos culminaram na instauração da política nacional do apartheid em 1948, a qual aplicava de mais a mais medidas segregacionistas. Na mesma medida, aumentavam os protestos da população negra, sempre resultando em violentas atitudes de represália, motivo pelo qual foram, inclusive, impostas sanções por parte da comunidade internacional ao país. As significativas manifestações do povo foram essenciais no caminho da democratização da África do Sul, que teve como marco a libertação de Nelson Mandela em 1990 e sua eleição pelo povo à presidência quatro anos mais tarde. Assim se davam os primeiros passos do país como Estado Democrático de Direito. [3]
A atual constituição do país foi aprovada apenas em 1996, tendo sido concebida por uma comissão criada por Mandela, sob a proposta de criação de uma constituição democrática. Adequada à nova constituição (sendo prevista na seção 168), a Corte Constitucional criada três anos antes prosseguiu em funcionamento, sendo também ela de cunho extremamente democrático, composta obrigatoriamente por homens e mulheres, brancos e negros. Destarte, reflete o novo momento político, buscando renovar a confiança da população, outrora descrente de suas instituições. [4]
É apenas neste novo contexto democrático que os direitos humanos vêm a aparecer em sede de constituição pela primeira vez. Quando da transformação do país numa democracia constitucional em 1994, a constituição interina introduziu em seu capítulo terceiro a proteção legal aos direitos fundamentais. No mesmo sentido, a constituição atualmente em vigor trouxe em seu bojo um amplo rol de direitos fundamentais, dispostos nas seções 07 a 09 do seu segundo capítulo.
Levando-se em consideração o contexto político do qual o país emergia, tais previsões são indissociáveis da ideia de mudança política, uma vez que consagram direitos que pertencem a todos igualmente, sem qualquer distinção, sendo os mesmos inalienáveis. Desta forma, a constituição de 1996 trouxe como objetivo declarado em seu preâmbulo “cicatrizar as divisões do passado e estabelecer uma sociedade baseada nos valores democráticos, justiça social e direitos humanos fundamentais” (LIMA, 2005, p. 168). Destacam-se ainda as primeiras linhas do segundo capítulo, segundo as quais “Esta carta de direitos é uma pedra angular da democracia na África do Sul. Consagra os direitos de todas as pessoas em nosso país e afirma os valores democráticos da dignidade humana, igualdade e liberdade.”
Num país marcado pela desigualdade, a qual fora cultivada através dos séculos pela política do apartheid, assumem especial importância os direitos sociais fundamentais e, por conseguinte, a necessidade de sua real efetivação em prol de toda a sociedade. A África do Sul é um dos poucos países que traz positivados direitos tais quais o direito à comida, à água, à moradia, à saúde, à seguridade social, à educação, direitos especiais da criança, dentre outros (seção 27).
Como descrito pelo professor George Marmelstein Lima (2005, p. 168), a estrutura formal dos dispositivos que prevêem direitos sociais segue basicamente o seguinte padrão:
1. Todos têm o direito à [moradia adequada, saúde, água, alimentação, seguridade social etc.];
2. O Estado deve promulgar leis razoáveis ou adotar outras medidas, de acordo com os recursos disponíveis, para obter a progressiva realização desses direitos.
Com efeito, observa-se que se trata de uma obrigação do estado a concretização do direito à saúde, uma vez que a constituição expressamente o obriga a positivá-lo. Desta forma, não havendo o cumprimento de tal obrigação constitucional por parte do executivo ou legislativo, pode o cidadão recorrer ao poder judiciário para exigir tal efetivação. Malgrado o princípio democrático que rege a separação dos poderes, e a consequente incumbência de tal encargo àqueles poderes, parece ser entendimento consolidado no país a possibilidade do judiciário agir no sentido de implementar políticas públicas. E não poderia ser de outra forma, considerando-se que, devido a sua história recente, o pensamento coletivo do povo sul-africano vive constantemente voltado à solidificar o ideal de igualdade. Nesse sentido, constata-se que a corte constitucional sul-africana tem proferido decisões de grande repercussão em matéria de direitos sociais, tais quais os direitos à moradia e à saúde.
A importância de tais acórdãos toma proporções ainda maiores se considerarmos o sistema jurídico híbrido estabelecido na África do Sul. Coexistem, de um lado, um sistema de civil law herdado dos colonizadores holandeses, com a instituição de legislação em amplos campos do direitos, e de outro, o sistema de common law herdado dos britânicos. Em verdade, o sistema sul-africano é classificado como direito da família romano-germânica. Segundo Ferreira (2007, p.66-71), dentre os países fora da Europa que adotaram esse sistema, podemos dividi-los em dois subgrupos diferentes: os que adotaram o tipo pleno ou o misto. Como exemplo do primeiro sistema, pode-se citar os países da América do Sul, incluindo-se o Brasil, inteiramente influenciados pelo direito romanista. Os países do tipo misto são aqueles que receberam posteriormente sucessivas influências do direito romanista e, posteriormente, do common law, dos quais são exemplo o Quebéc e a África do Sul.[5] Esta última faceta do sistema jurídico sul-africano contribui para que as decisões tomadas pela Corte Constitucional estabeleçam precedentes legais, os quais deverão ser sempre seguidos em situações similares.
Uma dessas decisões que acabou se tornando lead case no país e foi divulgada internacionalmente como exemplo de “ativismo judicial”, é o conhecido caso TAC (Treatment Action Campaign) X Minister of Health. Trata-se de reclamação constitucional ingressada por uma associação civil, a TAC, na qual o judiciário foi provocado para que ordenasse que o Estado eliminasse as restrições outrora implementadas no fornecimento das drogas que previnem o contágio do vírus HIV de mãe para filho.
É sabido que a África do Sul padece de uma epidemia de AIDS, já tendo sido descrita pelo próprio Departamento de saúde do país como “o mais importante desafio enfrentado pela África do Sul desde o começo da nossa democracia”[6]. Segundo o portal eletrônico da Rede Internacional para os Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, mais de 6 milhões de pessoas estão infectadas no país. No ano 2000, contabilizava-se a média de 80.000 contaminações de recém-nascidos por ano. Não obstante isso, embora o governo tenha recebido a proposta de receber gratuitamente durante cinco anos o anti-viral Nepivarina, responsável por impedir o contágio intrauterino, o mesmo anunciou que apenas introduziria o tratamento em alguns centros de tratamento piloto, no número de dois por província e 18 no total, o que seria feito durante dois anos. Na prática, isso significava que várias mulheres de baixas condições financeiras, as quais não tinham acesso a tais centros hospitalares pilotos, não teriam qualquer forma de adquirir à droga e viriam, consequentemente a contaminar seus filhos com o vírus.[7]
A TAC denunciou a ofensa constitucional do direito de acesso à saúde, trazendo em sua reclamação os seguintes pleitos: (1) ordem declaratória em que constasse que o poder público é obrigado a fornecer Nepivarina à todas as mulheres grávidas que viessem a dar luz em hospitais da rede pública; (2) “obrigação de fazer” através da qual se obrigasse o governo a fornecer o anti-retroviral nas dadas circunstâncias; os demais pedidos concernem ao estabelecimento de um programa nacional de prevenção do contágio da AIDS de mãe pra filho. A ação subsistiu nas alegações de lesão dos dispositivos 1 da seção 27 (todos têm direito a ter acesso a: serviços de tratamento de saúde [...]) e 1, letra c, da sessão 28 (toda criança tem direito a: […] serviços de tratamento de saúde […]).
Anteriormente à propositura da ação, como relatado no acórdão proferido pelo juiz Botha, a TAC houvera enviado cartas para cada um dos reclamados, expondo os argumento aqui já explicitados. Como resposta, O Ministério da Saúde respondera suscitando a dificuldade que havia na implementação de programas, a exemplo dos empecilhos culturais da substituição da amamentação pelo formula milk. Acrescentou que os custos seriam muito altos e que houvera sido ponderada a necessidade de atender várias pessoas dependentes de cuidados médicos e os custos, que se estabeleceu o programa de fornecimento dos anti-virais unicamente aos centros de pesquisa piloto, na quantidade de 2 por província, durante dois anos. Os benefícios de tal programa também estariam relacionados a necessidade de capacitação e pesquisa dos efeitos colaterais do remédio.
Já em sede constitucional, além desses e outros argumentos, os querelados alegaram que os requerentes não poderiam querer forçar o governo a escolher determinada política, cuja competência na escolha apenas ao Estado pertence. Destarte, o pedido estaria ferindo a estrutura da separação dos poderes. Ademais, a política pública adotada cumpria os mandamentos contidos na supracitada seção 27 (1 e 2), a qual condiciona o Estado a adotar medidas razoáveis, dentro da disponibilidade dos recursos, para se alcançar progressivamente a realização dos direitos fundamentais. Desta forma, acrescentou a defesa que o controle da AIDS é apenas uma das facetas do serviço de saúde, e que sua priorização imediata e de forma exacerbada poderia prejudicar outras áreas da saúde.
Nesse desiderato, o ministro relator do caso deixou claro que o ponto nevrálgico da questão era decidir se as medidas tomadas eram razoáveis diante do objetivo pretendido. Em relação aos argumentos que suscitavam que a procedência do pedido feriria a separação dos poderes, foi salientado pelo julgador que tal afirmação não merecia guarida, haja vista que a verificação da razoabilidade pela Corte das políticas públicas adotadas era, ao contrário, o mais perfeito exemplo de como a separação dos poderes deve funcionar. Seria negar a supremacia da constituição não permitir que a corte verificasse a validade e razoabilidade das medidas adotadas pelo governo no sentido de efetivar os mandamentos constitucionais. Enfatizando que a redação do disposto na seção 27 (2) foi logicamente influenciado pela realidade socioeconômica do país, esclarece o relator que o que a constituição pretendia é que os direitos sociais fossem concretizados pelo Estado, mesmo que houvesse a impossibilidade econômica de realização imediata de todos. Frisou ainda que, malgrado a ideia de instalação de laboratórios pilotos fosse essencial para a pesquisa dos efeitos do medicamento e da própria logística a ser implementada, a distribuição seletiva era descriminadora e feria o princípio da igualdade. Dito isto, concluiu que a necessidade de monitoramento do remédio não excluía a obrigação de fornecimento do mesmo a toda população usuária da rede pública de saúde que necessitasse do mesmo.
Destarte, a decisão da Corte Constitucional foi procedente e obrigou que o governo disponibilizasse a Nepivarina a todas as mulheres HIV positivo (e a seus bebês) cujo parto fosse realizado na rede pública de saúde, além de ter ordenado que fosse desenvolvido, sem demora, um programa nacional contra a contaminação da AIDS de mãe para filho, o qual deveria incluir a realização de testes, aconselhamento psicológico, prescrição da Nepivarina quando necessário, além do leite que substitui a amamentação (formula milk) para a alimentação das crianças, e todas as medidas que fossem razoáveis para se alcançar tais objetivos de maneira progressiva. Embasaram a decisão os relatórios juntados pelos requerentes com o depoimento de várias autoridades médicas, constatando a viabilidade de se fornecer o medicamento em outros centros, que não apenas os 18 escolhidos pelo governo, além de uma série de tratados internacionais e depoimentos de mulheres HIV positivo que tiveram seus filhos sem terem acesso ao tratamento anti-contágio do vírus aos bebês.
O fato é que, mais importante do que ter concedido tais direitos às mulheres, a decisão do caso TAC modificou a forma como a saúde e os demais direitos sociais e econômicos são tratados na África do Sul, além de ter repercutido largamente no cenário internacional. Geoff Budlender, um dos advogados no caso, enumerou algumas consequências do julgamento que podem ser consideradas ainda mais profundas, das quais valem ser frisadas: em primeiro lugar, a decisão da corte deixou claro que os direitos sociais são realmente direitos exigíveis, não sendo apenas meras aspirações, e sim, direitos legais, demandáveis e de fundamental importância em um país de tão grandes desigualdades. Em segundo lugar, o caso demonstrou que o Estado não pode simplesmente se servir da doutrina da separação dos poderes para manter certos problemas longe das cortes. O exercício de todos os poderes deve estar de acordo com a constituição, podendo o judiciário decidir se as políticas públicas estão, de fato, cumprindo com os requisitos lá dispostos, o que não significa dizer que o judiciário estará decidindo a respeito de qual seja a melhor medida a ser tomada. Por fim, salienta o jurista a importância que teve no caso a participação da sociedade civil, na medida em que fez uma grande campanha paralela ao julgamento, além de ter se investido nas responsabilidade de exigir o implemento das medidas ordenadas pelo acórdão, que apenas assim vieram a ser cumpridas.
Destarte, a decisão de 2002 foi um marco conceitual na história da implementação do direito aos serviços de saúde e dos demais direitos sociais e econômicos na África do Sul. Apesar de algumas dificuldades, o programa foi implementado em todo o país, estabelecendo um novo paradigma de integração entre ações políticas e legais.
5- CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS EM SAÚDE NO BRASIL
Embora não existisse discussão de grande relevância a respeito do tema há alguns anos, a concretização dos direitos sociais pelo judiciário tem ganhado relevância no cenário nacional, principalmente no que se refere a área da saúde. O Supremo Tribunal Federal inclusive exarou decisões que conferiram máxima efetividade ao direito à saúde, permitindo sua aplicação direta pelo Judiciário, embora contrariamente à respeitada doutrina de José Afonso da Silva, a qual considerava o direito à saúde como norma de eficácia limitada. Neste diapasão, os operadores do direito brasileiro se deparam cada vez mais com casos em que controle judicial, urgência de políticas públicas adequadas e legitimidade exclusiva de sua prestação pela Administração estão em conflito.
Há poucos meses, questão interessante que envolve a saúde pública despontou na mídia colhendo opiniões favoráveis e outras contrárias à política pública adotada pelo Estado brasileiro.
Com vistas a combater a pandemia da Nova Gripe, também chamada de Gripe Suína ou Gripe A, que se alastrou rapidamente pelo país e pelo mundo, o Poder Público, representado pelo Ministério da Saúde, foi “obrigado” a se posicionar no sentido de cumprir com seu papel de garantidor da saúde para todos, o que gerou algumas repercussões.
O estudo de tal caso em específico configura-se como bastante enriquecedor no debate acerca do controle das políticas públicas em saúde no Brasil, e por isso, será usado como fundo na análise em tela. Mas antes de aprofundar-se nesta pesquisa específica, cumpre esclarecer a situação dos direitos fundamentais sociais historicamente considerados, a sua efetivação através do conceito de políticas públicas e os questionamentos existentes acerca do controle destas pelo Poder Judiciário no Brasil.
A Constituição Federal de 1988, assim como a maioria das constituições nascidas no berço de um Estado Social, veio a consagrar em seu rol de direitos fundamentais novas dimensões de direitos, que não só os de cunho liberal. Tais constituições passaram a assegurar e promover a igualdade através da concessão aos indivíduos, de uma forma geral, de direitos a prestações por parte do Estado que fizessem valer a igualdade como ideal de justiça distributiva. A emergência do Estado Social se consubstanciou como produto de inúmeras críticas ao liberalismo concessor de liberdades que, todavia, não favoreciam os pobres, resultando num cenário de exploração do homem pelo homem (SARMENTO, 2008, p. 16), o qual se estabeleceu com o desenvolvimento do sistema capitalista. Segundo Daniel Sarmento (2008, p.16-17), o individualismo exacerbado do constitucionalismo liberal era alvo de críticas especialmente do marxismo, do socialismo utópico e da doutrina social da igreja. Malgrado por meios diferentes, todos os questionamentos referiam-se à urgência de uma reforma social, ganhando bastante relevância a proteção aos trabalhadores. Como fatores favoráveis à virada do Estado Liberal em Estado do Bem-Estar Social, pode-se enumerar a motivação dos próprios governos capitalistas, receosos com a difusão do regime comunista, e a expansão do direito de voto a cada vez mais camadas da população, a qual clamava pelo estabelecimento de melhores condições sociais. Destarte, foi com a apropriação pelo Estado da função de estabelecer medidas com vistas ao bem geral da sociedade, que as políticas públicas entraram em voga.
Contudo, nem todos países lograram êxito em se apropriar das conquistas relativas à promoção dos direitos trabalhistas e previdenciários, à saúde, moradia, educação, cultura, dentre outros. É nesse contexto que o tema da efetivação dos direitos de 2ª geração ganha destaque em países subdesenvolvidos, ou em desenvolvimento, como é o caso do Brasil (JORGE NETO, 2009, p.37). Levantar a questão do controle judicial de políticas públicas significa debater sobre a possibilidade de proteger-se juridicamente o instrumento de concretização dos direitos prestacionais. O termo políticas públicas refere-se à atividade, ao fazer estatal, direcionado à, direta ou indiretamente, consecução dos direitos fundamentais. Com tal objetivo, são estabelecidas através de atos do Legislativo e do Executivo porém com tais atos não se confundem: as políticas públicas se identificam na atuação estatal em si mesma, exista, ou não, legislação, ato normativo ou administrativo apontando na direção de constituição de tais medidas.
Neste sentido, falar-se em controle judicial de políticas públicas significa ter o Judiciário opinando diretamente sobre uma atuação ou omissão estatal (JORGE NETO, 2009, p.54). Tal questão enfrenta diversos obstáculos à sua consecução, sendo argumentos contrários à concretização judicial dos direitos sociais, segundo George Marmelstein Lima (2005, p.08), a vagueza do conteúdo da norma, o dogma da vedação da atuação do juiz como legislador positivo, a necessidade de previsão orçamentária para realização de despesas públicas, a discricionariedade da Administração, a natureza meramente programática dos direitos sociais e a impossibilidade do controle judicial das questões políticas.
Quanto ao primeiro, sustenta o autor que o simples fato de o constituinte ter-se utilizado em certos momentos de conceitos vagos não significa dizer que o judiciário não deverá exercer o seu papel de guarda da Constituição, observando o cumprimento ou não das normas consagradoras dos direitos fundamentais, ao invés de simplesmente dedicar-se a declarar que tal norma não é auto-aplicável.
O segundo argumento, frequentemente adotado pelo Supremo Tribunal Federal, está fortemente relacionado com a separação dos poderes, supondo que a possibilidade de concretização de normas constitucionais pelo Judiciário implicaria na usurpação pelo mesmo de tarefa exclusiva do Legislativo. Entretanto não se pode impedir que o juiz constitucional aja no sentido de sanar inconstitucionalidades, em razão do supracitado papel de guarda da constituição. Frise-se, por outro lado, que tal dogma está vinculado aos casos em que predomine a reserva legal, não se aplicando aos direitos sociais previsto no art. 6º e ao direito à saúde do art. 196, da CF/88, que são submetidos nos termos da própria Constituição.
O terceiro obstáculo também não deve prevalecer, afinal, a necessidade de previsão orçamentária é requisito direcionado ao administrador, e não ao juiz. Além disso, colocados na balança tal necessidade e os direitos fundamentais, percebe-se que são normas que estão no mesmo nível hierárquico e que, submetendo-as à um processo de ponderação, as normas de direitos fundamentais devem prevalecer por sua superioridade axiológica.
O quarto elemento limitador é bastante utilizado, principalmente na área da saúde, para proteger o poder de escolha da administração na adoção de suas políticas. Ocorre que hoje o conceito de discricionariedade alargou-se para considerar que além do dever de adotar políticas públicas, com vistas a alcançar a isonomia, o Estado deve adotar as melhores políticas públicas possíveis. Destarte, cumprirá aos legitimados que impetrarem ação contra determinada atuação estatal comprovar que haveria uma política melhor a ser implementada, ou seja, provar ou demonstrar que o administrador não agiu da melhor forma possível. Se, por outro lado, não se apresentarem argumentos fortes de que a escolha da administração foi inadequada, o judiciário não poderá intervir neste caso, sob pena de ferir a “reserva de consistência”.
A quinta limitação, referente à natureza meramente programática dos direitos sociais, trata-se de tese já ultrapassada. Muitos afirmam que as normas emanadas dos direitos sociais não são normas programáticas, pois é inconcebível deixar tais direitos à mercê da vontade do Legislativo e do Executivo, sem que caiba a ninguém fiscalizar a prorrogação indefinida da efetivação dos mesmos. Além disso, hoje é cediço que tais normas, mesmo que consideradas como de cunho programático, têm uma força jurídica que no mínimo permite a atuação judicial para seu controle.
Por fim, frisa-se que o quinto argumento não está incorreto ao afirmar que certas decisões políticas exorbitam das atribuições do Judiciário, sob pena de ofensa à separação dos poderes, e ao que DWORKIN (2005, p.25) chamou de argumento da democracia. Um exemplo emblemático dos riscos de intervenção do judiciário nas questões políticas, é justamente a área da saúde, por envolverem uma maior complexidade no estudo, elaboração e implementação de tais políticas públicas. Todavia, não se pode negar que assim como o sistema de separação de poderes também funciona como um controle recíproco entre estes, o argumento da democracia é equivocado ao considerar que a representatividade democrática dos entes eleitos é de fato genuína. Ademais, não se pode olvidar que a participação judicial será meramente subsidiária, limitando-se apenas aos casos necessários.
Superadas tais limitações, pode-se dizer que a doutrina nacional atualmente se direciona no sentido da força normativa da Constituição. De uma forma geral, enquadrando o caso na “reserva do possível” , isto é, sendo razoável o sacrifício de recursos exigido pela coletividade em prol da efetivação de determinado direito social, o Judiciário poderá exigir a sua concretização pelo Poder Público. Não há que se negar que o dispositivo impresso no art. 5º, §1º da CF/88, que trata da aplicabilidade direta e imediata das normas de direitos e garantias fundamentais, se aplica também ao aos direitos sociais, econômicos e culturais. Segundo Gilmar Mendes (apud. MARMELSTEIN, 2005, p.108), “a submissão dessas posições a regras jurídicas opera um fenômeno de transmutação, convertendo situações tradicionalmente consideradas como de natureza políticas em situações jurídicas.” O nó górdio da questão está em definir em que medida estes direitos podem ser judiciáveis, tendo em vista as diversas limitações.
Neste contexto, é de natureza extremamente enriquecedora para o tema o atual debate acerca do fornecimento do anti-retroviral Tamiflu, no combate à pandemia que se alastrou por todo o mundo e fez no Brasil o maior número de vítimas fatais, contando em termos absolutos com 657 casos de mortes comprovadas pelo Ministério da Saúde até 02 de setembro.
Seguindo orientação da Organização Mundial da Saúde, a política estabelecida pelo Ministério da Saúde confere tratamento com o Tamiflu (fosfato de oseltamivir) apenas aos pacientes com doenças respiratórias graves, pertencentes a grupos de risco para complicações por Influenza, ou que tiveram uma piora repentina no estado de saúde. Ademais, o medicamento só se encontra disponível na rede pública de saúde. A existência de tais limitações, acrescida ao alto grau de contagiosidade da doença, levou com que diversas instituições ingressassem com ações perante o judiciário alegando ofensa aos direitos fundamentais, em especial o art. 196 da CF/88, que dispõe que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação".
Segundo o portal da Defensoria Pública da União, a Defensoria de três estados, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Rio de Janeiro, já ingressou com Ação Civil Pública requerendo a universalização do acesso ao Tamiflu, dentre outros pedidos. O pleito consiste basicamente na disponibilização do antiviral tanto na rede pública, quanto na rede privada de saúde. Requer-se também que o medicamento seja receitado a todos que apresentem os sintomas da nova gripe, baseando-se na afirmação de muitos especialistas de que o remédio só se mostra realmente eficaz quando tomado nas primeiras 48 horas dos sintomas. Além disso, na Ação Civil Privada ingressada perante a 15ª Vara da Justiça Federal, a Defensoria Pública da União do Rio de Janeiro pleiteou que os exames para confirmação da doença pudessem ser realizados também em laboratórios privados, em adição aos três laboratórios atualmente credenciados pelo governo. Alguns dias mais tarde, o mesmo defensor impetrou ação perante a 5ª Vara pedindo aumento do número de leitos de UTI na cidade do Rio de Janeiro. Nas duas ações foram requeridos pedidos de antecipação de tutela em face da urgência das pretensões.
A liminar em relação ao processo tramitando na 15ª Vara foi rejeitada para os pedidos da Defensoria. O primeiro contra-argumento do Ministério da Saúde, consignado na manifestação oportunizada pelo juiz da 15ª Vara em relação ao pedido liminar da DPU e acolhido pelo magistrado, foi no sentido da “impossibilidade, a priori, de o Poder Judiciário imiscuir-se em atividade tipicamente administrativa, como se revela, por óbvio, a temática atinente à execução de políticas públicas de controle epidemiológico”. Mais adiante, afirma o magistrado que “não se está a imputar à Administração Pública, genericamente, no âmbito desta demanda, uma dada conduta ilícita por omissão. Está-se a questionar, isto sim, as estratégias e critérios adotados”. Tal argumento parece escorar-se na premissa de que apenas as condutas ilícitas por omissão merecem controle judicial. Porém, a forma de atuação do Poder Público na concretização dos direitos fundamentais também é judiciável, tomando as próprias normas constitucionais que os preveem como parâmetro.
A decisão prossegue no sentido de não conceder a tutela, alegando que não pertence ao Judiciário a competência para definir políticas públicas e que a concessão poderia gerar dano irreversível ao planejamento público de combate ao vírus H1N1. Novamente, tratam-se de argumentos que pretendem desvirtuar e desqualificar a legitimidade dos pleitos. O fato é que toda vez que é negada a prescrição do anti-viral a um doente que apresente os sintomas da gripe suína, estar-se a negar o direito ao tratamento médico de um caso que poderá resultar em morte. Não há dúvidas de que é papel do Judiciário controlar a omissão ou ação estatal em si que imponha barreiras à efetivação de um direito social, como o direito a saúde, na medida em que está intrinsecamente ligado ao ceifamento de vidas. Nem mesmo a falta de previsão orçamentária, um dos mais fortes argumentos contra o ativismo judicial, se aplica ao caso em comento e, de fato, não é mencionado na decisão. O próprio Ministério da Saúde afirma que possui “em estoque 8,79 milhões de tratamentos adquiridos em 2006. Receberá até o final de agosto mais 800 mil tratamentos e negocia ainda a compra de mais de 9 milhões de tratamentos”[8].
No que concerne à alegação de que o acolhimento da tutela antecipatória poderia decorrer em perigo de irreversibilidade dos danos causados, considerando-se que o uso indiscriminado do medicamento poderia criar espécie mais resistente do vírus, insta fazer o mesmo raciocínio com relação aos perigos na não concessão da tutela. Não se pode negar que a hipótese de eventual desenvolvimento de uma cepa resistente, embora verossímil, enfrenta a discordância de vários especialistas, cujos relatos inclusive constam dos autos do processo, segundo os quais isso também pode acontecer atualmente (com a aplicação somente aos casos graves e grupos de risco). Além do que a forma de se lidar com isso é outra: quarentena e/ou aplicação de outro medicamento (RELENZA).[9]Já as mortes que ocorrerão em pacientes que não tiveram acesso ao tamiflu até que se chegue à decisão final, estas sim são irreversíveis.
Vê-se, no mais, a declaração do Ministério de que não proibiu a comercialização do antiviral nas farmácias, tendo o esgotamento ocorrido em razão da grande demanda mundial. A fabricante já afirmou, igualmente, que está dando preferência aos pedidos feitos pelo Governo, se dando por isso a falta do medicamento nas farmácias. Neste caso, incumbe ainda mais ao Poder Público garantir que o acesso de todos à saúde seja exercido, através de medidas que disponibilizem o medicamento tanto na rede pública quanto na privada. Com efeito, não cabe ao Judiciário ditar exatamente como a medida deve ser realizada, mas apenas declarar quando a política que estiver sendo adotada não seja a melhor, por existirem fortes indícios de ofensa aos princípios constitucionais.
Igualmente combatível é o argumento de que o fornecimento do antiviral não é negado àqueles que apresentem a prescrição médica, independente de qualquer outro requisito. Tenta-se fazer com que esse argumento pareça favorável à idéia do livre acesso, mas lhe falta consistência. Primeiramente, não pode o Ministério usar argumento que ele próprio combate. Se a recomendação dada é contrária ao livre acesso do Tamiflu, não pode se fazer valer da possibilidade de qualquer médico poder receitá-lo. Ademais, tal medida parece ferir o princípio da igualdade, uma vez que discrimina os cidadão entre aqueles que tenham poder para conseguir que médicos lhe receitem o antiviral e aqueles, em geral menos abastados, que não dispõem do mesmo poder.
Destarte, percebe-se que o debate levantado pela luta ao amplo acesso ao Tamiflu, que conta com o apoio de vários setores do Estado, dentre pessoas que se cadastram junto às defensorias e médicos que apoiam o fim das restrições, está sendo bastante significativo no sentido de derrubar certas barreiras. Mesmo aqueles que não atribuem plena eficácia ao direito à saúde, aceitam que ao Judiciário cabe concretizar tais normas dentro dos limites do mínimo existencial, existindo os recursos materiais para tanto (SOUZA NETO, 2006, p. 312). É disso que se trata o caso em questão, não devendo nenhum argumento prevalecer sobre o direito a vida, pressuposto para a existência de todos demais.
4 – COMPARAÇÃO ÁFRICA DO SUL X BRASIL
Na comparação entre o ativismo judicial na África do Sul e no Brasil, cumpre salientar já inicialmente que se tratam de duas democracias recentes. Como conseqüência dessa jovialidade, encontram-se dispostos em ambas as constituições amplos catálogos de direitos fundamentais, inclusive direitos de 2ª e 3ª gerações, que necessitam de um fazer estatal para que possam ser gozados. As cortes constitucionais de ambos os países são instrumentos de suma importância na concretização das normas constitucionais, na medida em que ambas são reconhecidas por terem exarado decisões elogiadas mundialmente. Inclusive, antes mesmo do proferimento pela corte sul-africana da decisão aqui relatada, a qual teve grande reconhecimento e aprovação no cenário internacional, também o Brasil exarou memorável acórdão determinando o fornecimento gratuito de medicamentos anti-HIV. Em síntese, tais julgados contribuíram em larga escala para a aceitação da aplicação direta pelo Judiciário das normas que garantem o direito à saúde, normalmente considerado bastante dependente da mediação legislativa. Outra semelhança entre os dois países, consiste no fato de que situam-se no grupo de economias “em desenvolvimento”, o que significa dizer que são países onde as políticas públicas são instrumentos de extrema importância no campo social, e a possibilidade de seu controle pelo Judiciário, tema bastante delicado em razão dos parcos recursos existentes.
Entretanto, abrindo-se um parêntese, é importante deixar claro que a questão de escassez de recursos pode ser relativa. A economia do Brasil se encaixa no ranking das dez maiores do mundo, enquanto a África do Sul, apesar de se tratar de um país pequeno, possui a maior economia do continente africano. Não há dúvidas de que o embate em torno do custeio das políticas públicas enfrenta muito mais uma questão de opção política do que da existência dos recursos em si. O caráter de representatividade do Executivo não é assim tão genuíno, se se observar que cada vez menos os atos do Governo podem ser atribuídos à vontade majoritária do povo, e mais imputada a interesses de uma elite dominante. Conforme salientado por SARMENTO (2008, p.23), o predomínio do poder Executivo no Estado Social, que absorve até mesmo certas atribuições normativas originárias do Legislativo, tem tido um efeito deletério sobre a democracia, o que desequilibra a estrutura do sistema de freios e contrapesos. É esse sistema que indubitavelmente requer a interferência do Judiciário na efetivação dos direitos constitucionais, o que se observa das várias pretensões surgidas e levadas às cortes constitucionais de ambas as nações em comento.
Embora possa ser constatado no cenário brasileiro um bom número de decisões que apontam para a possibilidade do Judiciário concretizar direitos sociais, percebe-se também que várias decisões tomam o sentido contrário. Com efeito, cada caso possui em si uma subjetividade que os diferencia dos demais, podendo a resposta do Judiciário ser procedente ou não, por inúmeros fatores. A decisão da liminar do processo do Tamiflu, contudo, chegou mesmo a contar, dentre outros, com o argumento de que ao Judiciário não caberia (por hora) interferir em atividade tipicamente administrativa, haja vista que não se observava omissão de sua parte. Ora, trata-se de argumento deveras ultrapassado, uma vez que hoje até os mais tradicionalistas concordam com o controle judicial quando está em jogo o mínimo existencial, além de que a interferência judicial pode existir tanto em face de uma omissão, quanto de uma ação. Destarte, observa-se que de acordo com a vontade do julgador, os argumentos mais diversos possíveis podem ser utilizados.
A faceta de common law, componente do sistema jurídico híbrido da África do Sul, traça um elemento importante que evita a ocorrência de situações como a descrita. No supracitado caso TAC, por exemplo, como as decisões da corte sul-africana implicam na formação de procedentes legais, pode-se dizer que ficou consignado que não sendo efetivo o acesso de todos à saúde, pode-se exigir judicialmente o cumprimento das prestações. Ou seja, não poderá haver quaisquer decisões em sentido contrário no país. Inobstante isso, duas considerações precisam ser feitas, a primeira no sentido de se observar que, com a adoção da súmula vinculante pela emenda 45, o Brasil também parece caminhar em direção à lógica dos precedentes legais. A segunda no sentido de que, mesmo na África do Sul, poderão se constatar julgados cujas determinações não sejam sempre no sentido da obrigação da efetivação dos direitos sociais, haja vista que o princípio da reserva legal parece estar pronto a oferecer obstáculos, em alguns casos.
Sociologicamente falando, é imprescindível enfatizar a importância da atuação dos atores privados, da própria sociedade civil e das entidades do terceiro setor na consagração da concretização dos direitos fundamentais sociais. Embora o Brasil venha tendo avanços na participação ativa da sociedade, percebe-se que muitos permanecem inertes, malgrado diretamente interessados em várias demandas. O que ocorre é que os mais instruídos, aqueles que têm noção do poder de luta da sociedade, não são os diretamente interessados nas questões das políticas públicas, enquanto os verdadeiramente afetados não possuem as mesmas informações, restando, talvez, para o terceiro setor o dever de agir nessas causas. Por outro lado, em razão do regime altamente segregacionista vivido pelo país, pode-se dizer que a urgência pelos direitos sociais e a luta pela igualdade na África do Sul é ainda mais premente. Devido a isso, observa-se uma maior manifestação da sociedade nas causas das quais são carecedoras. Nos casos relatados, por exemplo, percebe-se que o Brasil goza de uma boa estrutura oficializada para defesa dos interesses sociais, embora não se possa visualizar muito bem a pressão popular, que existe, porém de forma dispersa. Já em diversos casos relatados na jurisprudência africana, como na querela aqui outrora demonstrada, temos no polo ativo uma sociedade civil, a qual contava com grande amplo apoio popular, como por exemplo as 5.000 pessoas que marcharam em frente à Corte Constitucional Sul-Africana no dia a abertura do julgamento. Certamente, as ofensas sofridas por esse povo imputa-lhes ímpeto ainda maior de lutar por tais direitos.
A questão da aplicabilidade, também afigura-se como bastante interessante nas constituições dos países, uma vez que podem dar maior ou menor margem à concretização dos direitos pelo juiz. A seção 8 – (1) da Constituição sul-africana dispõe que “a carta de direitos se aplica a toda a lei e vincula o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e todos os órgãos do Estado”. Com relação especificamente ao direito à saúde e outros direitos sociais, a seção 27 – (2) descreve que “o Estado deve tomar medidas legislativas razoáveis, e outras medidas, dentre seus recursos disponíveis, afim de alcançar a progressiva realização de cada um desses direitos”. Percebe-se então, que no que se refere aos direitos sociais, o texto constitucional consigna que estes deverão ser efetivados através do Legislativo e do Administrativo, além de atentar para os limites da reserva do possível. Tal dispositivo poderia levar à falsa interpretação de que os direitos sociais não são exigíveis judicialmente, uma vez que dependentes de conquistas sociais e econômicas que levem à sua realização progressiva. Todavia, restou assinalado expressamente quanto aos direitos fundamentais em geral, que os mesmos vinculam todos os poderes estatais e, como se pode observar do acórdão analisado, o mínimo existencial está resguardado mesmo em caso de alegação da falta de recursos.
O esforço interpretativo para se chegar a essas conclusões é um pouco maior nesse país do que no Brasil, haja vista que a Constituição Brasileira conta com um reforço positivo na clarificação da eficácia das normas constitucionais. Muitos autores brasileiros afirmam a total possibilidade da concretização jurisdicional dos direitos sociais, afirmando que, se são direitos fundamentais positivados, devem ser concretizados, nos termos do art. 5º, §1º da CF/88 (SOUZA NETO, 2006, p. 308). No mesmo sentido, assevera BARROSO (2003, p. 144) que embora pudesse parecer pouco lógica a inserção de tal dispositivo na Constituição, a sua finalidade consiste em contrapor as reiteradas negativas à tal evidência. Com efeito, diante de tal mandamento, acaso as normas sejam descumpridas, a competência será do poder judiciário, afinal, o texto constitucional faz menção à potencialidade de todos dos direitos fundamentais produzirem efeitos desde já (SILVA, 2008, p. 57). Por óbvio, no caso dos direitos sociais, em especial o direito à saúde, atribuem um dever ao Estado de estabelecer políticas sociais e econômicas que cumpram seus fins, cuja constitucionalidade sempre poderá ser apreciada pelo juiz.
Estas são as observações mais importantes de serem feitas na comparação do trato de cada um dos dois países acerca do controle judicial de políticas públicas. Embora existam algumas diferenças técnicas no trato da matéria, percebe-se que, diante de uma realidade social semelhante, os dois países parecem seguir a mesma linha de pensamento no que concerne à possibilidade de efetivação dos direitos sociais, e em especial o direito à saúde. Mesmo que vez ou outra este pensamento sofra também retrocessos, como pôde se observar na questão brasileira, é importante observar que o arcabouço constitucional desses países é sim apto a legitimar o controle judicial e a embasar decisões favoráveis a aplicação das normas constitucionais essenciais à vida humana.
6- CONSIDERAÇÕES FINAIS
O direito à saúde e a possibilidade de sua concretização pelo Judiciário é um tema que desde sua origem, quando do advento do Estado Social, enfrentam questionamentos. Primeiramente se questionou se os direitos sociais seriam tão judiciáveis quanto os direitos subjetivos de 1ª geração. Além disso, o direito à saúde, em específico, enfrenta ainda mais obstáculos por ser, por um lado, direito que necessariamente dependerá de atitudes dos poderes Legislativo e Executivo, e, por outro, direito intrinsecamente ligado ao próprio direito à vida, necessitado da mais alta proteção jurídica.
O panorama aqui traçado baseou-se em países de profunda semelhança social, cuja democracia apenas há pouco tempo passou a prevalecer, para demonstrar a urgência da tutela jurisdicional de tal direito. Ambos dispõem de uma constituição avançada, nascidas no seio do Estado Social e por isso não oferecem qualquer dúvida quanto à equiparação normativa de todas as dimensões dos direitos sociais. Suas cortes constitucionais já exararam diversas decisões que colocaram abaixo o mito de que o controle judicial das políticas públicas constitui ofensa à separação dos poderes. Tal criação destina-se, em verdade, a impedir que o poder seja tomado do povo por alguns poucos, e sempre com vistas a esse fim deve ser observada (JORGE NETO, 2009, p.165).
Inobstante isso, desafios continuam a surgir, e a questão dos limites da atuação do judiciário ainda está longe de se pacificar. A realidade brasileira parece se esbarrar constantemente com discursos fundados em argumentos que são escolhidos de acordo com determinado interesse, e não baseado em argumentos fortes que se destinam ao bem comum. A questão da Gripe Suína e do acesso ao Tamiflu mostra que ainda existe um longo caminho a percorrer na efetivação dos direitos sociais e do direito à saúde. É certo que o Poder Judiciário não pode tudo, nem deve oferecer soluções prontas. Cumpre-lhe todavia conduzir as partes no caminho do obedecimento das normas constitucionais, que devem ser feitas de forma a garantir o acesso dos direitos a todos igualmente, através dos melhores meios possíveis. É levando-se em consideração que a proteção judicial dos direitos sociais é a proteção à própria vida que deve ser orientado todo debate acerca do tema, tendo-se em mente que o debate é a melhor forma de se alcançar à efetividade do que almejamos.
7- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas: limites e possibilidades da constituição brasileira. 7.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
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[1] Consoante assinala Virgílio Afonso da Silva (2005, p. 55) a expressão direitos naturais refere-se “àqueles inerentes à natureza do homem; direito inatos que cabem ao homem só pelo fato de ser homem”. Já direitos humanos é a expressão preferida nos documentos internacionais, sendo terminologia pouco usada na doutrina, salvo para referir-se aos direitos civis ou liberdades civis. Os direitos públicos subjetivos constituem “um conceito técnico-jurídico do Estado Liberal, preso, como a concepção direitos individuais, à concepção individualista do homem (SILVA, 2005, p. 55). Liberdades fundamentais ou liberdades públicas são expressões ligadas à concepção dos direitos públicos subjetivos e direitos individuais”.
[2] África do Sul – Órgão máximo do poder judiciário. Disponível em [http://www.migalhas.com.br/tour_juridico/mig_tour_juridico_mostra.aspx?cod=55446]. Acesso em 14 de agosto de 2009.
[3] História da África do Sul. Disponível em http://www.africadosul.org.br. Acesso em 20 de agosto de 2009.
[4] Human rights in South Africa. Disponível em http://www.constitutionalcourt.org.za/site/yourrights/thebillofrights.htm
[5] As origens do civil law. Disponível em http://letrasjuridicas.blogspot.com/2007/09/as-origens-do-civil-law.html. Acesso em 15 de agosto de 2009.
[6] No original: “the most important challenge facing South Africa, since the born of our new democracy”. Extraído do acórdão do caso.
[7] http://www.escr-net.org/caselaw/caselaw_show.htm?attribLang_id=13441&doc_id=408585.
[8] Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_area=124&CO_NOTICIA=10460> Acesso em 02 de setembro de 2009.
[9] Disponível em <http://pulmaosarss.wordpress.com/2009/08/01/defensoria-prepara-acao-civil-para-ampliar-acesso-a-remedios-da-gripe-a/>. Acesso em 02 de setembro de 2009.
Juíza do Trabalho Substituta (TRT 20ª Região), Professora Adjunto da Universidade Federal de Sergipe, Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho (TRT 20ª Região/UFS), Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA. Autora dos livros: Máximas de Experiência no Processo Civil e Direito Constitucional do Trabalho. Site pessoal: www.flaviapessoa.com.br
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