Conferência proferida no XIII Congreso Internacional de Derecho de Familia, realizado em 19/10/2004, em Sevilha-ESPANHA.
Primeiramente gostaria de pedir-lhes permissão para duas coisas.
Permitam-me tentar falar no seu idioma, muito mais como forma de homenageá-los, do que por conhecer essa língua encantadora. É que o espanhol me é muito familiar, pois tenho a fortuna de residir em uma parte do Brasil que faz fronteira com três países que professam esse idioma: Argentina, Uruguai e Paraguai.
Assim, todos os gaúchos nos afeiçoamos a falar o que chamamos de “portunhol”, forma encontrada para nos comunicar e que só faz estreitar os vínculos afetivos com nossos vizinhos, países que temos como irmãos.
Também lhes peço permissão para saudá-los nas pessoas da Dra. Aida Carlutti, amiga de tantos anos, magistrada exemplar, cujas posições firmes e arrojadas a tem notabilizado como pioneira no estudo de um novo conceito de família.
Da mesma forma queria cumprimentá-los na pessoa do Dr. Carlos Lasarte, não só por ser o Presidente deste conclave, mas por, juntamente com a África, serem pessoas tão queridas e que tanto têm demonstrado afeição a mim e ao Sérgio, amor de minha vida e que preside este painel.
Certamente este é um momento muito especial, principalmente para nós brasileiros que aqui viemos em tão significativo número.
Há alguns anos um punhado de brasileiros começou a participar desses eventos, com certeza, o que de mais importante é realizado em Direito de Família no continente americano, e que agora migra para o velho continente.
Por isso é que nos encorajamos em pleitear a realização do próximo congresso, o XV Congresso de Direito de Família, em nosso País.
Gostaria de adiantar que seria uma grande honra receber todos vocês em nossa terra.
Aqui estou em nome do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, entidade que auxiliei a fundar, no ano de 1997, e que hoje congrega 2 mil sócios, já realizou 4 congressos nacionais, dos quais já participaram Aida, Lasarte e África. Também edita mensalmente um Boletim Informativo e tema Revista de Direito de Família, já no seu 26º número.
Assim, o IBDFM juntamente com a UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, uma das mais antigas e respeitadas universidades o Brasil, buscam o privilégio de levá-los para o Rio de |Janeiro – nossa cidade maravilhosa.
O que leva à realização de mais este Congresso de Direito de Família, atraindo estudiosos e operadores do direito de diversos países, é a preocupação da comunidade jurídica mundial, que passou a sentir a necessidade de atentar às mudanças por que passou a família no último século, transformações essas que deitam reflexos, não só na família, mas na própria sociedade.
No Brasil costuma-se dizer que o conceito de família se largou, afastou-se do modelo convencional da família constituída pelos sagrados laços do matrimônio, para enlaçar uma multiplicidade de conformações familiares: assim, famílias reconstruídas, informais, monoparentais, família formada por pessoas do mesmo sexo etc.
Tal foi a transformação porque passaram as estruturas familaires que se faz necessário buscar um novo conceito de família que albergue todas as novas formas de convívio que as pessoas encontraram para alcançar a tão almejada felicidade.
O parâmetro deixou de ser o casamento. Também a capacidade procriativa ou o exercício da sexualidade não mais servem para defini-la, quer em face da liberação sexual em que vivemos, quer em face das múltiplas formas de reprodução assistida, que está permitindo a todos, independentemente de terem um par, realizarem o sonho de ter um filho.
Diante dessa nova realidade, o elemento identificador das várias formas de viver, está em sua origem, ou seja, é o vínculo afetivo que se encontra presente em todas as formas de convívio.
No momento em que se emprestam efeitos jurídicos a determinado vínculo, não há como deixar de reconhecer que se está tutelando o afeto. Assim, o afeto passou a merecer a tutela jurídica, tornou-se o elemento estruturante da família.
Não mais se pode negar, que é chegada a hora de enlaçar nesse novo conceito de família as uniões de pessoas do mesmo sexo, as famílias homoafetivas, expressão que cunhei quando escrevi a primeira obra que no Brasil abordou essa difícil realidade. São alvo de tanta descriminação e preconceito que o legislador prefere ignorar e a justiça não ver.
No entanto as uniões existem e negar-lhe a tutela jurídica é negar tudo o que se vem construindo em respeito aos direitos humanos.
Não se pode falar em estado democrático de direito, quando se nega visibilidade a uma parcela de cidadãos.
O silêncio gera um círculo vicioso perverso: a omissão do legislador leva o Judiciário a negar o reconhecimento de direitos em face da inexistência de lei, como se para o reconhecimento de direitos fosse necessária a existência de regra jurídica.
Essa visão tão limitante e limitada é usada como mecanismo de exclusão social.
Não ver, não reconhecer, não emprestar efeitos jurídicos é a maior fonte de injustiças.
A isso não se pode prestar a justiça, que tem por missão dar a cada um o que é seu. E, o seu de cada um nada mais é do que assegurar a parcela de felicidade a que todo tem direito.
A homossexualidade é tão antiga como a humanidade, isso todo mundo sabe.
Também todos já estão acostumados a conviver com homossexuais, uma realidade cada vez mais aparente graças ao movimento denominado “saindo do armário”, e que significa a busca do respeito e à dignidade.
Nada, absolutamente nada justifica relegar os vínculos homoafetivos ao desabrigo do direito e com isso negar-lhes direitos. São uniões que têm origem em um elo de afetividade. A convivência leva ao entrelaçamento de vidas e ao embaralhamento de patrimônio. Como a responsabilidade mútua é uma consequência de toda a relação de convívio, é descabido permitir o enriquecimento injustificado,
Imperativo que nós os operadores do direito assumam a responsabilidade de, enfim, fazer justiça.
Não se pode esperar pelo legislador que, preocupado em não decepcionar o seu eleitorado, tem enorme dificuldade em votar a favor de lei que proteja parcelas minoritárias da sociedade, alvo do preconceito e discriminação.
No vácuo legislativo é necessário que a justiça cumpra sua missão.
Não se pode deixar de fazer justiça pelo singelo fato de inexistir lei que regulamente a situação trazida a julgamento.
Deixar de reconhecer, por exemplo, direitos sucessórios ao parceiro sobrevivente, transmitindo a herança aos parentes que repudiavam o falecido por ser homossexual, é uma injustiça.
Impedir que companheiros de diferentes nacionalidades permaneçam juntos, negando visto de permanência, é uma injustiça.
Exigir a prova da participação efetiva para proceder à divisão proporcional dos bens amealhados durante o período de convívio, é igualmente uma injustiça.
Negar a duas pessoas que querem consolidar sua relação familiar pela adoção de um filho, é uma injustiça, aliás, uma injustiça muito maior para com a criança que muitas vezes fica depositada em abrigos e orfanatos, na espera de um lar.
Quando, burlando o patrulhamento, um par consegue um filho – seja por adoção, seja por meio dos modernos métodos de concepção assistida – a negativa de gerar um vínculo de parentesco da criança com seus dois pais ou duas mães, faz com que se deixe de atribuir responsabilidade a um dos pais, bem como não garante direitos à criança, com relação a quem considera também seu pai ou sua mãe.
Mas com certeza o caminho está aberto. Trazer este tema a um congresso de direito de família, é muito significativo.
Como sempre os primeiros passos são dados pela doutrina, pelos juízes com sensibilidade para ver a realidade e coragem para respeitar as diferenças. Aliás, no Brasil, e precisamente no meu Estado, Rio Grande do Sul, as uniões homoafetivas estão sendo reconhecidas como entidade familiar, no âmbito do Direito de Família. As ações são julgadas nas varas especializadas de família e, além da meação dos bens, são assegurados direitos sucessórios ao parceiro sobrevivente.
Se todos nós queremos viver em um mundo livre, sem fronteiros, em que os direitos humanos sejam respeitados, não podemos ser agentes da intolerância.
Aliás, é só isso que o mundo precisa: um pouco mais de amor. Dar e receber amor – ainda que pareça ser uma afirmativa piegas – é o que todos desejamos.
E é o que eu desejo a todos vocês, a todos nós!
Obrigada.
Advogada especializada em Direito Homoafetivo; Ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do RS; Vice-Presidente Nacional do IBDFAM; Autora de vários livros jurídicos. Sítos: www.mbdias.com.br; www.mariaberenice.com.br; www.direitohomoafetivo.com.br<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Maria Berenice. Uniões homoafetivas e o atual conceito de família Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 nov 2009, 08:46. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18757/unioes-homoafetivas-e-o-atual-conceito-de-familia. Acesso em: 22 nov 2024.
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