Sumário: 1. Introdução; 2. Jusnaturalismo; 3. Sociologia Jurídica; 3.1. Sociologia Jurídica Soviética; 4. Positivismo Legalista; 5. Conclusão.
Resumo: O presente artigo versa sobre a abordagem conferida, por seus críticos, à obra 'Teoria Pura do Direito', de Hans Kelsen, explicitando sobre alguns enganos que diferentes vertentes prestam à consagrada teoria kelseniana sobre o Direito, buscando expor as suas falhas e demonstrar onde a teoria pura evidencia o Direito como verdadeira ciência que é.
Palavras-Chaves: Direito, Teoria, Kelsen, Jusnaturalismo, Ciência.
1. Introdução
“A Teoria Pura do Direito é uma teoria do direito positivo. Tão-somente do direito positivo e não de determinada ordem jurídica. É teoria geral e não interpretação espacial, nacional ou internacional, de normas jurídicas.
Como teoria, ela reconhecerá, única e exclusivamente, seu objeto. Tentará responder à pergunta 'o que é' e 'como é' o direito e não à pergunta 'como seria' ou 'deveria ser' elaborado. É ciência do direito e não política do direito”.[1]
Nascido em 1881 na cidade de Praga, parte do imenso Império Austro-Húngaro, Hans Kelsen veio a se tornar um referencial para os estudiosos do Direito. Seja encantando seus discípulos, que cultivaram a doutrina kelseniana, a exemplo dos consagrados Adolf Merkl e Norberto Bobbio, seja como alvo das mais variadas críticas, em especial das correntes jusnaturalistas e da sociologia jurídica, a verdade é que Kelsen constituiu um marco na visão do Direito como ciência.
Dentre suas diversas obras de prestígio, iniciando-se principalmente com a publicação de sua monografia, aos 24 anos, garantidora de seu título de doutor em 1906, intitulada Die Staatslehre des Dante Alighieri, Kelsen continuamente estruturava o conhecimento jurídico dos que o seguiam.
Da vasta gama literária que acompanha aquele jurista, a que merece destaque ao presente trabalho e que serve como inspiração, dos doutrinadores mais experientes aos que iniciam sua jornada acadêmica, refere-se ao Reine Rechtslehre, ou, traduzido, a Teoria Pura do Direito, que constitui um pequeno escorço de sua obra mais abrangente, publicada em 1925, qual seja, Allgemeine Staatslehre (Teoria Geral do Estado).
A Teoria Pura do Direito, entendida como uma Teoria Geral do Direito, ainda hoje polariza os debates, havendo – infelizmente – muita confusão sobre o seu real propósito e significado, o que, por vezes, leva a ledos enganos os mais desavisados, como será mais bem desenvolvido e esclarecido a seguir.
2. Jusnaturalismo
A corrente jusnaturalista[2] ou do Direito Natural – para os que a consideram Direito -, poderia ser mais bem denominada de jusnaturalismos, tendo em vista que possui uma série de correntes que divergem sobre sua real significação.[3]
Sendo, talvez, a voz que desperta as mais fervorosas críticas sobre a Teoria Pura do Direito de Kelsen, o jusnaturalismo baseia-se em uma premissa principal – mas não única - para desmerecer aquela teoria.
Aquela concerne na afirmação que a Teoria Pura do Direito, entendida como expressão última e consequente do positivismo jurídico, não aceita qualquer outro Direito que não seja o positivista. Norberto Bobbio explica que para essa corrente, o “erro capital da Teoria Pura do Direito [...] estaria no fato que, impondo ao jurista comportar-se como um frio intérprete da norma positiva, qualquer que seja o valor ético da norma, transforma-o em um colaborador de qualquer regime, por abjeto e repugnante que seja, num aceitador ou pelo menos impassível indagador do fato consumado”.[4]
Apesar da asserção acima transcrita possuir um caráter ferrenho e afiado, aquela não possui nenhuma consistência ou robustez. Kelsen debateu à exaustão a referida questão, sempre pontificando sobre a distinção entre o valor do Direito e a validade deste. Para o autor, a questão de uma norma ser justa ou não, não interesse ao Direito como ciência que pretende ser, devendo-se se ater sobre a validade ou invalidade da norma. Assim, “Quando se fala no processo de 'validade' da norma, nada mais se deve exprimir com isso, senão a existência específica da norma, a maneira especial com que ela se apresenta, diversa do ser da realidade natural, que decorre no espaço e no tempo”.[5]
A falha na doutrina do Direito Natural repousa em confundir validade com valor, isto é, para aquela vertente “lei injusta não é lei”. Ocorre que em Kelsen, referida assertiva, considerada irracional, retira o caráter objetivo que deve estar afeto a qualquer ciência.
Em momento algum em sua obra, Kelsen nega a importância da moral e dos valores, contudo, não se deve confundir os problemas, devendo dar à ciência do Direito o que a ela pertence, e às ciências diversas, a exemplo da Filosofia, o que lhes é pertinente. Bobbio acrescenta a teratologia que seria se um cientista da Biologia, por considerar abominável a técnica utilizada pelas aranhas ao capturar suas presas, ao considerar injusta tal situação, a entendesse inexistente.[6]
Neste diapasão, Michel Temer confirma a Teoria Pura ao assentir que a análise da Constituição, do ponto de vista jurídico, deve se socorrer somente ao próprio plano jurídico[7]. “O sociólogo, o politicólogo, podem estudar a Constituição sob tais ângulos. Mas as sua preocupações serão outras (sociológicas, políticas). O cientista do Direito busca soluções no próprio sistema normativo. Daí por que buscará suporte para a Constituição num plano puramente jurídico”.[8]
Logo, ao jurista que deseja fazer ciência, e não dedicar-se à política ou à filosofia, deve encarar a jurisprudência – ciência do Direito – de sorte objetiva, analisando seus critérios de validade e eficácia, purificando a norma ao excluir juízos de valores na sua estruturação. Kelsen de fato constrói o Direito sob um observar formal – e não formalista -, mas, ao contrário do que argumentam os jusnaturalistas, que mal haveria nisso se este foi o objeto a que se propôs o cientista? E mais, não deveria ser esta toda a análise de uma ciência: sob o ponto de vista estrutural e formal?
3. Sociologia Jurídica
Tão fortes em suas críticas como o fazem os seguidores do Direito Natural, a Sociologia jurídica também presta considerações desmerecedoras sobre a visão de Kelsen sobre o Direito.
A objeção mais abrangente disparada pelos partidários da sociologia jurídica é pertinente ao entendimento do direito como um fenômeno social, e por isso não pode ser escrutinado dispensando a análise da sociedade. Seria a Teoria Pura “um formalismo vazio e estéril”.[9]
O erro consiste em justamente entender a Teoria Pura do Direito como uma teoria excludente das demais abordagens possíveis ao Direito. Não se trata de negar que o Direito possa ser visto sob o olhar da realidade social, contudo, o que propõe Kelsen é que para a jurisprudência, como ciência que é, a construção do Direito deva-se dar sem interferências de elementos valorativos externos, devendo-se proceder a uma estrutura formal da matéria. Deste modo, sobre a temática, “Kelsen se manifestou repetida e claramente a respeito, tanto que não é mais lícito atribuir-lhe a idéia de uma monopolização do problema jurídico por parte da Teoria Pura do Direito”.[10]
3.1. Sociologia Jurídica Soviética
Dentro da própria sociologia jurídica se verifica a ocorrência de críticas particularizadas à teoria kelseniana, em particular dos sociólogos soviéticos. Para o sociólogo Pasciukanis, por exemplo, o Direito – e consequentemente a Teoria Pura de Kelsen – “não seria mais que uma superestrutura da sociedade burguesa, destinado assim a desaparecer em uma sociedade socialista”.[11]
O ataque que se lança à teoria normativa kelseniana é que sua construção dada ao Direito seria plausível somente em uma comunidade pautada por valores capitalistas e burgueses, onde a propriedade privada fosse o primado daquilo que é chamado de Direito, não possuindo, portanto, o condão de constituir-se como uma Teoria Geral de caráter universal.
Ora, entender a teoria normativa de Kelsen como aplicável a sistemas de governo específicos e desconsiderá-la na sua essência, isto é, como uma estrutura formal, e como tal, viável a qualquer ordem econômica, política ou social, é não compreender a mensagem kelseniana. Onde falham os estudiosos soviéticos é em não “purificar” sua análise, não logrando, assim, diferenciar uma teoria que embasa um sistema normativo, de critério que englobam o conteúdo econômico-social de determinadas sociedades.
Enfim, faltou a compreensão naqueles que não vislumbraram que o Direito continua a existir desde que haja “um sistema de regras de comportamento, válidas e eficazes, independentemente do fato de que os comportamentos regulados sejam aqueles dos burgueses que traficam para ganhar mais dinheiro ou dos proletários que trabalham para o bem da coletividade”.[12]
4. Positivismo Legalista
Embora seja a Teoria Pura do Direito provavelmente a maior expressão do positivismo jurídico[13], mesmo nessa seara há imbróglios sobre sua significação.
Enquanto jusnaturalistas extremados (também chamada de corrente jusnaturalista forte) assentam que direito injusto não é direito, há os que se posicionam diametralmente em sentido imposto, entendendo que se uma norma é válida, obrigatoriamente ela será justa e, portanto, deve ser obedecida.
Da assertiva acima estruturada surgiram novos questionamentos acerca da Teoria kelseniana. Porém, novamente, mostraram-se equivocados. A Teoria Pura restringe-se a afirmar que “na qualidade de estudioso do ordenamento jurídico, devo 'restringir' o objeto de minhas pesquisas 'somente' às normas existentes”[14], estabelecendo um critério metodológico de pesquisa. Eventual consideração sobre a justiça ou não da norma, e se devo obedecê-la ou não consiste em outro aspecto da análise jurídica. O posicionamento exposto no parágrafo antecedente configura, na verdade, a chamada doutrina legalista jurídica, que não se confunde com a ciência do Direito proposta por Kelsen, por se tratar aquela de uma ideologia ético-política e que, repetidamente, confundi critérios de validade com juízos de valor. Seria mais uma teoria da justiça, como também o é o jusnaturalismo. E, para a o teoria pura, “em face das teorias da justiça, ela é indiferente; e exatamente nessa indiferença que consiste o dever do jurista, como cientista”.[15]
5. Conclusão
A obra de Hans Kelsen parece não envelhecer, porquanto seu debate permanece atual e intrigante, devendo ser manuseada com cuidado, afim de que não se cometam graves injustiças ao creditar ao autor pensamentos que jamais foram seus.
A ciência jurídica, entendida por Kelsen como uma ciência descritiva-normativa, que consiste na análise da validade do ordenamento jurídico por meio de suas normas, de forma objetiva e formal, valorando-se de modo inconteste o método, consiste num dos maiores avanços já sofridos no estudo do Direito. É verdade que não se pode negar a possibilidade do lançamento de argumentos desfavoráveis à Teoria Pura do Direito, mas não é menos verdade que para que haja críticas bem estruturadas e fundamentadas, que sejam capazes de promover um debate consciente e edificador da matéria, faz-se mister um conhecimento mais apurado da obra do ilustre jurista da Escola de Viena.
[1] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. p.52.
[2] “Pode-se dizer, em linhas gerais, que essa escola (jusnaturalista) é fundada no pressuposto de que existe uma lei natural, eterna e imutável; uma ordem preexistente, de origem divina ou decorrente da natureza, ou, ainda, da natureza social do ser humano”. (NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Manual de introdução ao estudo do direito. p.39).
[3] SGARBI, Adrian. Teoria do Direito (Primeiras Lições). p.131.
[4] BOBBIO, Norberto. Direito e Poder. p.25.
[5] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. p.57.
[6] BOBBIO, Norberto. Direito e Poder. p.26.
[7] Norberto Bobbio bem explica esta questão sobre o Direito se socorrer ao próprio plano jurídico, afirmando: “Que o Direito regule a própria produção significa em termos kelsenianos que um ordenamento jurídico é um sistema normativo em que a produção das normas do sistema é ela mesma regulada por outras normas do sistema num processo que, remontando de norma inferior para norma superior, chega necessariamente (onde a necessidade deve ser entendida como necessidade lógica e não factual) à norma fundamental, que do ponto de vista de um positivismo rígido e rigoroso é o único fundamento possível do Direito: o único fundamento possível de um ordenamento que, regulando sua própria produção, se 'autoproduz'” (Idem, p.136).
[8] TEMER, Michel. Elementos de direito constitucional. p.20.
[9] BOBBIO, Norberto. Direito e Poder. p.41.
[10] Idem, ibidem.
[11] Idem, p.45.
[12] Idem, p.46.
[13] Incontáveis laudas demandariam para se esclarecer a doutrina positivista, devendo-se, neste curto espaço, somente salientar que o positivismo jurídico, antes de tudo, deve ser encarado sobre três óticas distintas: como teoria do direito, como ideologia do direito e como método do direito. Para maiores considerações, sugere-se a leitura de BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do Direito.
[14] BOBBIO, Norberto. Direito e Poder. p.30.
[15] Idem, ibidem.
Bacharelando do Curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Professor de Língua Inglesa
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABRAL, Flávio Garcia. Enganos acerca da Teoria Pura do Direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2009, 06:42. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18927/enganos-acerca-da-teoria-pura-do-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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