RESUMO
O presente estudo foi estruturado utilizando-se da Teoria de Jakobs sobre o Direito Penal do Inimigo. Partindo da ideologia do penalista alemão, objetiva-se demonstrar a inviabilidade da implantação dessa teoria no atual estágio do ordenamento jurídico pátrio. Revelando o real espírito do Direito Penal do Inimigo, que tenta sua afirmação nos países periféricos, pretende-se demonstrar que o Direito Penal é único, não cabendo falar em sua bipartição, como quer Jakobs. E mais, se quer aclarar que nenhum ramo jurídico pode suprimir direitos e garantias fundamentais do ser humano em busca de uma pretensa pacificação social e do combate ao crime organizado. Deve-se relatar também, como atesta a teoria jakobiana, que o homem não pode ter sua personalidade desconhecida, sendo reduzido à condição de mero objeto, em prol da eliminação dos etiquetados inimigos do Estado. Com esse trabalho, valendo-se da pesquisa bibliográfica e de um raciocínio crítico, almeja-se divulgar que o reconhecimento do Direito Penal do Inimigo no sistema legal brasileiro se revela numa notória afronta à Constituição Federal e num verdadeiro massacre aos princípios e direitos fundamentais, arruinando a própria estrutura do Estado Democrático de Direito.
Palavras-chave: Direito Penal do Inimigo. Jakobs. Dignidade da pessoa humana. Estado Democrático de Direito.
ABSTRACT
This study was structured using-Jakobs Theory on Criminal Law of the enemy. On the basis of the ideology of German penalista, objectively-demonstrate the inviability of implanting this theory in the current stage of the legal order paternal. Revealing the real spirit of Criminal Law of the enemy, which tries your statement in the peripheral countries, the intention-to demonstrate that the Criminal Law is unique, whilst not speak in their bipartition, as either jakobs. AND more, if it wants clear that no legal branch can suppress rights and fundamental guarantees of the human being in search of a supposed social appeasement and the fight against organised crime. Should-if report also, as testified by the theory jakobiana, that man may not have their personality unknown, is reduced to the condition of mere object, in the interest of the elimination of labelled enemies of the State. With this work, constituting-where the research literature and a critical reasoning, seeks-disclosing that recognition of criminal law of the enemy in Brazilian legal system is a remarkable affront to the Federal Constitution and a real massacre the principles and fundamental rights, disrupting the structure of the Democratic State of Law.
Key-words: Criminal Law of the enemy. Jakobs. Human dignity. Democratic constitutional State.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho se reveste de relevância ímpar dentro da sociedade brasileira. Aqui se pretende demonstrar que a Teoria do Direito Penal do Inimigo, proposta por Jakobs, não encontra guarida dentro do atual ordenamento jurídico nacional. A análise detida dessa política criminal extrema, com suas implicações no seio social, revela um modelo penal contrário aos direitos e garantias fundamentais propostos na Carta Magna de 1988.
E não é só, a ideologia do Direito Penal do Inimigo é uma verdadeira afronta ao fundamento primaz da dignidade da pessoa humana, que inspirou o legislador constituinte brasileiro. Esse valor supremo, reconhecido pelo disciplinamento normativo pátrio, é surpreendido e atacado pelo modelo pensado por Jakobs, enfraquecendo, destarte, a real função do Direito Penal.
No atual estágio do Estado Democrático de Direito, no fervoroso século XXI, o acolhimento da Teoria do Direito Penal do Inimigo acarreta conseqüências drásticas para o cidadão. Isto porque, os direitos e garantias conquistados, ao longo de décadas, são ameaçados por essa política extremista. Desta forma, o ius puniendi do Estado se torna deslegitimado.
O estudo aprofundado da Teoria do Direito Penal do Inimigo revela a conotação do simbolismo do Direito Criminal.
O Direito Penal não pode ser entendido como a solução de todos os conflitos e mazelas da sociedade. A sua pretensão legítima se reveste como o último meio legal de intervenção na esfera de direitos dos cidadãos. Dessarte, a presença estatal nessa seara deve ser mínima, só cuidando das ameaças e efetivas lesões a bens jurídicos relevantes. Daí advém a fragmentariedade e subsidiariedade da Ciência Criminal.
Assim, este trabalho, utilizando-se da pesquisa bibliográfica, enfatizando os aspectos doutrinários e filosóficos, visa desmistificar a errônea sensação de que a pacificação social é alcançada com a implantação e endurecimento de normas penais, como quer Jakobs na sua Teoria do Direito do Inimigo.
2 FINALIDADE DO DIREITO PENAL
De início cabe esclarecer que o Direito Penal foi criado para tutelar os bens jurídicos mais notáveis da sociedade. Aqui leia-se o direito à vida, à integridade física, à liberdade, ao patrimônio etc. Esta é a principal missão do Direito Segregador.
Nas corretas palavras de Rogério Greco[1]:
A finalidade do Direito Penal é a proteção dos bens mais importantes e necessários para a própria sobrevivência da sociedade, ou, nas precisas palavras de Luiz Régis Prado, ‘o pensamento jurídico moderno reconhece que o escopo imediato e primordial do Direito Penal radica na proteção de bens jurídicos – essenciais ao indivíduo e à comunidade’.
Além disso, o Direito Penal tem outras finalidades reflexas. Nestas encontram-se a contenção ou redução da violência estatal, a prevenção da vingança privada e o reconhecimento de garantias para todos os envolvidos no conflito criminal. Estas, na esteira de raciocínio do doutrinador Luiz Flávio Gomes[2], são as conseqüências desejadas oficialmente pelo sistema.
No seu mister fundamental o Direito Penal cumpre seu papel instrumentário. Isto porque, ele serve de meio para proteger os bens jurídicos relevantes. Nesse ponto, quando nenhum outro ramo jurídico consegue dar uma resposta contra um ataque intolerável, que ameace a paz social, surge o conjunto de normas penais para reprimir tal conduta. É aqui que o Direito Criminal é visto como a ultima ratio.
Revela também aqui sua faceta fragmentária e subsidiária. Pois, uma vez selecionados os bens fundamentais para o convívio social, estes integrarão a esfera de proteção do Direito Penal. Assim, somente quando atacados, a Ciência Criminal demonstrará sua repulsa sancionatória contra a conduta humana ofensiva. Aclara-se, portanto, na seara penal, a intervenção mínima do Estado.
O legislador quis revelar a força punitiva do ente estatal apenas naquelas situações onde a ofensa ao bem jurídico aparece com maior gravidade. E aqui atribuiu esta incumbência ao Direito Penal.
Nesse passo, o raio de atuação da Ciência Criminal não pode ser alargado ao ponto de abarcar condutas que penalmente são irrelevantes. Surge o que Luiz Flávio Gomes chama de função promocional do Direito Penal. Isto é, certas infrações que poderiam ser disciplinadas facilmente por outros ramos jurídicos, acabam ganhando o foco da Ciência Penal. Traga-se o exemplo de alguns ilícitos tipicamente administrativos.
Além disso, o Direito Penal não pode ter uma conotação simbólica. Isto acontece quando a Ciência Criminal é tida como um mecanismo de resolução de todos os problemas sociais. A sua utilização não pode servir para remediar as mazelas provocadas pela educação, pela desigualdade na distribuição de rendas, pela precariedade do sistema de habitação e saneamento básico. Enfim, o Direito Penal não deve fincar suas pilastras para sustentar o corroído acervo de políticas públicas.
E aqui há um estreitamento entre o aspecto simbólico da Ciência Criminal e a Teoria do Direito Penal do Inimigo de Jakobs. Constate-se que a pacificação das relações sociais não se resume à edição de mais leis penais e ao endurecimento de suas sanções, como sinaliza a aventada teoria jakobiana.
Nesse ponto, cabe realçar a crítica formulada por Cancio Meliá, na obra Derecho penal del inimigo, de Günther Jakobs, citada por Guilherme Nucci[3] em seu livro:
[...] o direito penal do inimigo não passa da consagração do direito penal simbólico (produção de tranqüilidade mediante a edição de normas penais, ainda que não efetivamente aplicadas) e do punitivismo (endurecimento das normas penais existentes à moda antiga).
Assim, deve-se declarar que o Direito Penal não pode ser manobrado como termômetro dos conflitos sociais. Isto não pode significar que se a sociedade é violenta, é porque a Ciência Criminal não está produzindo mais normas penais. A verdade não é esta. Aclara-se que o índice de criminalidade não está relacionado com o maior ou menor número de leis nem com a severidade de suas penas. Se o Direito Penal foi acionado é porque outros setores da coletividade andaram mal.
3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO DIREITO BRASILEIRO.
A Carta Magna elevou a dignidade da pessoa humana à condição de diretriz maior para interpretação e aplicação das normas do ordenamento pátrio.
O art. 1° da Constituição Federal de 1988[4] destaca:
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
[...]
III – a dignidade da pessoa humana;
[...]
A exegese do dispositivo constitucional acima transcrito denota que o Estado brasileiro reconhece que todo ser humano é dotado de dignidade. Disso resulta que toda pessoa é destinatária de direitos e garantias, evitando-se, com isso, sua redução à condição de mero objeto.
O doutrinador Marcelo Novelino[5] assim se expressa:
Uma das conseqüências da consagração da dignidade humana no texto constitucional é o reconhecimento de que a pessoa não é simplesmente um reflexo da ordem jurídica, mas, ao contrário, deve constituir o seu objetivo supremo, sendo que na relação entre o indivíduo e o Estado deve haver sempre uma presunção a favor do ser humano e de sua personalidade, uma vez que o Estado existe para o homem e não o homem para o Estado.
A consagração da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado brasileiro impõe não só o reconhecimento de que o indivíduo deve servir de ‘limites e fundamento do domínio político da República’, mas também a necessidade da observância desse valor como elemento informador do conteúdo da Constituição e de todo o ordenamento jurídico, o que significa dizer que na criação, interpretação e aplicação das normas deve-se buscar sempre a promoção das condições e a remoção dos obstáculos para que a dignidade seja respeitada.
Disso resulta que, sendo a dignidade da pessoa humana um valor supremo inserto na Carta Magna, o Estado deve, a todo momento, observá-la, protegê-la e promovê-la.
Mas, afinal, o que é dignidade?
A abstração e abrangência dessa expressão não impossibilita o intérprete de fixar-lhe um conceito, segundo o professor Paulo César Santos Bezerra[6]. Veja:
[...] Na dimensão jurídica, embora poucos doutrinadores se atrevam a defini-la, parece satisfatório dizer-se que ‘a dignidade é o direito fundamental que tem todo ser humano a manter e conservar sua natureza espiritual íntegra, inviolada, consagrada, não degradada, honrada, não infamada, por razão de sua existência e valor de ser humano, o ser superior a todos os demais seres’.
Elevado raciocínio demonstra que a dignidade da pessoa humana deve orientar a construção exegética, servindo de base para a aplicação normativa e como limite para a atuação do Estado.
4 A TEORIA DO DIREITO PENAL DO INIMIGO DE JAKOBS.
Günther Jakobs, penalista e cientista alemão, idealizou as bases modernas onde deve ser edificado o atual Direito Penal. Para ele, diante da complexidade e dos problemas sociais, a Ciência Criminal deve avançar para tentar conter o índice de violência perpetrado pela raça humana. Nesse ponto, portanto, Jakobs pensou num modelo extremo, que convencionou denominar de Direito Penal do Inimigo.
Inicialmente, o estudioso alemão pretende fincar uma distinção entre um chamado Direito Penal do Cidadão e o próprio Direito Penal do Inimigo. Aquele deve ser aplicado para as pessoas que não estão predispostas a delinqüir, isto é, aos cidadãos que, por situações ocasionais, se vêem cometendo um ilícito criminal, enquanto que o modelo excepcional do penalista alemão deve incidir sobre os inimigos do Estado, ou seja, sobre os indivíduos que se demonstram altamente periculosos, criminosos contumazes, que ameacem a paz social.
Na aplicação do Direito Penal do Cidadão, o ser humano é considerado como pessoa. E isto lhe permite o reconhecimento de direitos e garantias estatais. Já no que concerne ao Direito Penal do Inimigo, este é direcionado a uma não-pessoa. Disto resulta que o indivíduo imputado tem restringida sua esfera de garantias e direitos processuais. Portanto, para o penalista alemão, o sujeito que se volta contra a normatização instituída e o próprio Estado deve ter um tratamento diferenciado, pois, pelo perigo que representa para a ordem social, o seu comportamento deve ser previamente reprimido pela força e coação física.
O próprio Jakobs[7] assevera que o Direito Penal conhece dois pólos de regulação. O primeiro diz respeito ao trato com o cidadão, no qual se espera até que este último exteriorize seu fato, para, então, a partir daí, o direito reagir de modo a validar a forma normativa da sociedade. O segundo refere-se ao trato com o inimigo, que é combatido antecipadamente por sua perigosidade.
A Teoria de Jakobs, assentada no Direito Penal do Inimigo, possui algumas características. Para ele, em linhas gerais, esse modelo refletiria uma ampla antecipação da punição, pois estar-se-ia buscando a prevenção de fatos futuros, devido à periculosidade do agente. Demonstraria também a inexistência de um abrandamento da pena a ser aplicada. Revelaria, com isso, um Direito tipicamente emergencial, de exceção, no combate às infrações penais perigosas. E, por fim, suprimiria certos direitos e garantias processuais, visto que, o indivíduo que fosse etiquetado como inimigo, criminoso profissional, deveria ser excluído do rol dos considerados cidadãos.
Jakobs[8] destaca que o Direito Penal do Inimigo somente pode se legitimar em um Estado Democrático de Direito. Surgindo como um contraponto ao Direito Penal do Cidadão, a sua teoria extremista se manifesta como uma necessidade para a própria manutenção do Estado de Direito.
Segundo pensa o alemão, as relações sociais já atingiram um grau máximo de conflituosidade. Dito isto, o Direito Penal, com o seu disciplinamento básico, não conseguirá dar uma resposta para a proteção dos principais bens jurídicos frente às graves ameaças humanas. Nesse passo, devem existir normas que tragam uma carga de sanção com maior pujança. E estas devem se direcionar para os inimigos do Estado. Assim, estar-se-ia garantindo a sobrevivência da ordem instituída e do próprio Direito Penal.
A implantação do Direito Penal do Inimigo se justificaria numa sociedade pós-moderna, conforme prolatou seu principal idealizador. Para ele, seria possível a flexibilização de direitos fundamentais, o endurecimento das normas jurídicas, a exclusão de sujeitos, pois, enfim, o que estaria em discussão seria a garantia de um Estado que proporcionasse a continuidade da vida humana.
Todavia, o modelo penal proposto pelo estudioso alemão não ficou a salvo de duras críticas.
5 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E AS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.
É sabido que para um Estado se legitimar e sobreviver como não-autoritário deve conceder alguns direitos e garantias para os seus cidadãos. A atuação do ente estatal está limitada pelo espectro de princípios e regras que protege o ser humano do arbitrário e do injusto. Portanto, o sistema normativo construído pelo Estado, que pretende ser democrático, deve refletir primordialmente os anseios do seu povo.
Dito isso, esses valores, eleitos pelo homem como indispensáveis para a convivência pacífica das pessoas em sociedade, são dispostos em um corpo de leis, erigido ao que Kelsen convencionou chamar de norma fundamental, que é a Constituição. Aqui está a base para se edificar um ordenamento legal sólido e justo.
Desta forma, qualquer disposição normativa deve estar em conformidade com a Lei Maior. De igual passo, qualquer construção teórica, seja filosófica ou doutrinária, deve guardar sintonia com a Carta Magna. E isto legitima o próprio sistema.
Feita esta digressão, convém estabelecer a seguinte reflexão: A Teoria Jakobiana do Direito Penal do Inimigo se sustentaria dentro do atual Estado Democrático de Direito Brasileiro?
Inicialmente, vale mencionar a orientação de Luciano Feldens[9] quando esclarece que o discurso sobre a legitimação do Direito Penal é, sobretudo, o discurso acerca de sua adaptação material à Constituição. Enquanto ordem normativa superior, a Constituição projeta um impacto sobre a validade do Direito Penal. Nesse sentido, a liberdade de atuação do legislador penal não é absoluta, mas relativa. Assim, o direito penal não é um âmbito isento de controle pela jurisdição constitucional.
Cabe esclarecer que a Constituição Federal do Brasil elevou à condição de fundamento primaz do ordenamento jurídico a dignidade da pessoa humana. Este valor deve ser especialmente considerado e respeitado na ótica hermenêutica, pois legitimará qualquer interpretação legal. Assim, tudo que for contrário a essa raiz exegética carece de juridicidade.
No mesmo passo, é válido mencionar que o corpo legislativo brasileiro, mormente no âmbito do Direito Penal, concedeu ao cidadão uma série de direitos e garantias, o que acabou culminando na construção de um raciocínio garantista. Isto quer dizer que, tanto a Constituição Federal quanto a legislação ordinária têm, coalhadas em seu seio, vários dispositivos que freiam o arbitrarismo estatal, proporcionando uma aplicação da norma em consonância com os principais valores dos Direitos Humanos.
Aqui, especificamente, o Direito Penal do Inimigo se choca com a construção legislativa do Direito Brasileiro. Como a Teoria de Jakobs prima pela flexibilização dos direitos fundamentais no Estado Democrático, não os reconhecendo a certos indivíduos, etiquetados de perigosos, não há como se compreender sua aplicação nesse país. E mais, não existe razão para dividir o ser humano em pessoas e não-pessoas. Isto ofenderia o princípio da isonomia.
Chamon Júnior[10], desenvolvendo seu raciocínio crítico em face do Direito Penal do Inimigo, ressalta que só se pode admitir um Estado de Direito se, simultaneamente, consegue-se visualizar um nexo entre o Constitucionalismo, a democracia e os direitos fundamentais. E isto, a teoria de Jakobs, quando segrega as pessoas, diferenciando algumas das outras, não proporciona.
O mesmo autor apregoa que os direitos e as garantias processuais não são dispensáveis, pois estes são imprescindíveis para a limitação da autoridade estatal pela normatividade. Desta forma, os direitos fundamentais não devem ser interpretados como passíveis de reconhecimento somente aos “bons cidadãos”, ou aos cidadãos “não-perigosos”. Isto afetaria o princípio da dignidade da pessoa humana no seu âmago.
Luis Gracia Martín[11] citando Kant atesta que o homem é dotado de personalidade civil e personalidade inata. Aclara que aquela pode até ser perdida com uma condenação criminal, porém, a personalidade inata é ínsita a qualquer pessoa, pois é onde está radicada a dignidade humana. Assim, é atribuível até aos delinqüentes. Neste diapasão, a dignidade humana tem um valor absoluto e não pode ser restringida para justificar uma pretensa busca pela segurança e pela diminuição da violência, enfim, para servir de esteio para implantação de uma nova faceta do Direito Penal.
Ainda para Gracia Martín[12] não existe na democracia espaço para coexistirem duas realidades distintas na seara penal. Uma para abarcar o Direito Penal dos Cidadãos e outra para o Direito Penal do Inimigo. Destarte, este não tem lugar no horizonte democrático e no Estado de Direito, pois essa teoria só se justificaria num modelo estatal arbitrário e totalitário.
Além disso, o direito penal brasileiro está assentado nas bases do Direito Penal do fato. Sendo assim, dever-se-á sancionar a conduta contrária ao ordenamento jurídico que efetivamente lesionou ou tentou lesionar um bem penalmente relevante. Em contrapartida, a Teoria Jakobiana ressalta e manifesta firme tendência para o direito penal do autor. Este revela que o sujeito deve ser punido pelo que ele representa de perigo para a sociedade e não pela ação praticada. O agente seria punido pelo que ele é e não pelo que ele fez. E isto é inconcebível num Estado democrático.
Zaffaroni, citado por Nilo Batista[13], assegura que um direito que reconheça e ao mesmo tempo respeita a autonomia moral da pessoa jamais pode apenar o ser, senão o fazer dessa pessoa, já que o próprio direito é uma ordem reguladora de conduta. Assim, o direito penal só pode ser um direito penal de ação, e não um direito penal do autor, como eventualmente se pretendeu.
Para Luiz Flávio Gomes[14], o criminoso habitual, profissional, que pertence a uma organização que atua contra o Direito, ainda que seu estilo de vida conduza a uma refutação da legitimidade do ordenamento jurídico, deve ser tratado como um agente perigoso, justificando-se a intensificação da resposta penal. Mas jamais como um criminoso anormal, patológico, que está colocando em risco a própria estrutura do Estado. Seu processamento não pode adquirir a natureza de um ‘combate’, de uma ‘luta’. Não se trata de uma ‘guerra’, senão da reprovação de um criminoso habitual, que deve ser naturalmente mais intensa que a do delinqüente comum.
Nessa linha de raciocínio, aclara-se que não existe justificativa para classificar os infratores contumazes como não-pessoas, coisificando o ser humano, chegando-se ao ponto de retirar-lhes direitos e garantias fundamentais, ínsitos do devido processo legal e do Estado Democrático de Direito.
Aqui, frise-se que tanto a sociedade quanto o próprio Estado devem cuidar dos criminosos que eles mesmos criaram. E não, excluí-los e combatê-los como verdadeiras feras perniciosas.
Durante o 1° Congresso Internacional da Rede Luiz Flávio Gomes[15] de Ensino, Zaffaroni destacou que a América Latina sempre praticou esse ‘Direito Penal’ do inimigo. Isto através do abuso das medidas de segurança, na razão do positivismo criminológico do final do século XIX, do abuso das prisões preventivas, aplicadas como penas antecipadas etc. Para ele, o Direito Penal do Inimigo não passa de uma expressão do poder punitivo típico do Estado de Polícia, fazendo parte do denominado ‘poder punitivo interno bruto’ (PPIB) de cada país. Enfatiza, por fim, que a lógica do Direito Penal do Inimigo é a lógica da guerra, destacando que é uma ‘guerra suja’, que muitas vezes aparece sob o rótulo de ‘segurança nacional’.
Acrescente-se a isso o fato de que não se pode combater a criminalidade de uma forma legal, quando se inobserva o direito posto, responsável pela incriminação das condutas e punição dos infratores.
Vale destacar também que o Direito Penal do Inimigo conta com um forte aliado na atualidade, que é o poder da mídia. Não raro, os veículos de comunicação tentam justificar a difusão de penas mais severas e um combate prévio às principais condutas que ameaçam a sociedade moderna. E isto é consoante à Teoria de um Direito Penal novo, como quer Jakobs.
Não raro, percebe-se que a força midiática implanta a cultura do medo e do terror na mente do homem globalizado. Cada vez mais, programas jornalísticos correlacionados com notícias policiais ganham as telas das televisões. Nesse passo, abre-se espaço para a difusão de reportagens verdadeiramente sanguinárias, onde a exposição de mortos e cadáveres são destaques rotineiros. Desta maneira, os infratores acabam sendo projetados como inimigos da coletividade.
É nesse ponto que se passa a impressão da necessidade de um Direito Criminal nos moldes propostos por Jakobs. Assim, cria-se um campo fértil para o surgimento de um Direito Penal com um discurso eminentemente emocional e promocional.
Cezar Britto[16] ponderou que após a queda das Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, um novo inimigo foi declarado, o terror fundamentalista. E, a partir de então, as democracias modernas começaram a reproduzir a fórmula de que os princípios, direitos e garantias fundamentais, conquistados com sangue, suor e lágrima ao longo da história da humanidade, atrapalhavam o combate ao crime. Desde então, esses valores, essenciais ao desenvolvimento democrático de qualquer sociedade, foram apontados como empecilhos, penduricalhos dispensáveis na garantia da segurança do Estado. Não mais se defende a dignidade da pessoa humana como razão de ser do Estado.
Para ele, essa lógica é a do Estado Policial. E isto a Carta Magna do Brasil expressamente revogou. A conquista dos princípios, direitos e garantias fundamentais – base e fundamento do Estado Democrático de Direito – foi uma longa, lenta e penosa construção humana, de cujos benefícios, testados e atestados em séculos de história, não se pode abrir mão. Assim, quando se coloca os direitos fundamentais como óbice ao combate ao crime, o triunfo é do crime, pois se proclama a superioridade deste ao procedimento legal, admitindo-se por extensão a superioridade do mal em relação ao bem. Somente dentro das regras democráticas, observando-se os seus ritos e procedimentos, se pode combater o crime, em qualquer instância que se apresente e em qualquer grau de intensidade.
Isso denota que não se pode plantar a semente do Direito Penal do Inimigo, embrião de um Estado de exceção, autoritário e antidemocrático.
Cabe esclarecer que o Direito Penal não será a solução dos infinitos problemas sociais. Longe disso! As mazelas que rondam a modernidade têm diversas causas e não será um ramo jurídico o responsável pela definição dessas querelas. Não é a criação de mais leis, o endurecimento das penas nem o permanente estado de combate contra os delinqüentes estatais que resolverá essas antigas deformações que brotam do seio de uma coletividade.
Montesquieu, citado por Nilo Batista[17], afirmava que quando um povo é virtuoso, bastam poucas penas.
6 CONCLUSÃO
Dito isto, conclui-se, que o Direito Penal do Inimigo não encontra guarida dentro do atual estágio do ordenamento legal brasileiro. Um sistema jurídico, onde se busca, incessantemente, a efetividade de direitos e garantias fundamentais, a luta pela igualdade em um país tão desigual, a prevalência da democracia em detrimento do autoritarismo, a pacificação ao invés da violência, não há que restar espaço para as ramificações de um direito penal emergencial e excludente.
Aqui se registre que a lógica do Direito Penal do Inimigo está assentada em um Estado Policial, onde o uso da força e coação física prevalecem em prejuízo dos princípios da humanidade, razoabilidade, proporcionalidade, eqüidade, isonomia, enfim, entra em conflito com o fundamento maior da dignidade da pessoa humana, matriz que sustenta o Estado Democrático de Direito.
Por fim, assegure-se que o Direito Penal essencialmente democrático e garantista, sedimentado nos principais valores insculpidos numa Constituição, busca a incriminação do pobre e do rico, do branco e do preto, do delinqüente habitual e do incidental, sem discriminação. Só assim, a Ciência Criminal estará pronta para cumprir sua real função tuteladora, fragmentária e subsidiária, dos bens jurídicos relevantes da sociedade.
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[1] GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2003, p. 3-4.
[2] GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003, p. 23.
[3] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 6ª ed. rev., atual. e ampl.. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 285.
[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado, 2007, p. 35.
[5] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 135-136.
[6] BEZERRA, Paulo César Santos. Temas Atuais de Direitos Fundamentais. 2ª ed. rev. e ampl. Ilhéus: Editus, 2007, p. 25.
[7] JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Org. e Introd. Luiz Moreira e Eugênio Pacelli de Oliveira. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Lumen Júris: Rio de Janeiro, 2008, p. 14.
[8] Ibid., p. 124.
[9] FELDENS, Luciano. Direitos Fundamentais e Direito Penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008, p. 29-30.
[10] JAKOBS, Günther. Direito Penal do Inimigo. Org. e Introd. Luiz Moreira e Eugênio Pacelli de Oliveira. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Lumen Júris: Rio de Janeiro, 2008, p. 136.
[11] GRACIA MARTÍN, Luis. O Horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Trad. Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 154-155.
[12] Ibid., p. 156.
[13] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 93.
[14] GOMES, Luiz Flávio. Muñoz Conde e o Direito Penal do Inimigo. Jus Navigandi, Teresina, n. 826, 7 out. 2005, Disponível em: http://www.jus2.uol.com.br/doutrina. Acesso em 23 nov. 2008.
[15] Idem. Histórica mesa redonda sobre o "Direito Penal" do inimigo. Disponível em: http://www.blogdolfg.com.br.10 outubro 2007. Acesso em 23 nov. 2008.
[16] BRITTO, Cezar. Tribuna Jurídica. Novos Desafios Constitucionais. Revista Jurídica Consulex. Brasília: Editora Consulex, ano XII, n° 281, p. 20-21, 30. set. 2008.
[17] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 84.
Advogado, pós-graduando em Direito Eleitoral com Habilitação para o Magistério Superior, pela FABAC.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARCUS VINíCIUS MASCARENHAS BRANDãO, . O Direito Penal do Inimigo e a Dignidade da Pessoa Humana na Constituição Brasileira de 1988 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 07 dez 2009, 08:59. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18937/o-direito-penal-do-inimigo-e-a-dignidade-da-pessoa-humana-na-constituicao-brasileira-de-1988. Acesso em: 23 dez 2024.
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