1- Introdução
Apesar das repercutidas - e infelizmente comuns - situações pertinentes aos detentores de grande poder aquisitivo, envolvendo remessa de vultuosos valores – dentre outras condutas reprováveis – para o exterior, em desconformidade com as normas vigentes, ainda encontra-se engatinhando no Brasil, mesmo com os consideráveis avanços já ocorridos, a tutela penal referente aos crimes cambiários e financeiros.
Deve-se apontar que a necessidade da avocação do Direito Penal para o controle de quesitos financeiros encontra-se afeta a países sub-desenvolvidos ou em desenvolvimento, porquanto, a utilização daquele ramo jurídico, aplicável como ultima ratio, tem lugar em sistemas em que a economia por si própria não é hábil a se auto sustentar, fazendo-se mister a utilização de mecanismos tão sérios como os instrumentos oferecidos pelo âmbito penal. Inclusive, neste sentido, se observa que Estados com alto grau de desenvolvimento possuem um controle político capaz de regular situações como a evasão de valores, pautando-se na própria economia robusta e estruturada que possuem.
Desta feita, percebendo-se o ainda existente mister, no Brasil, da invocação do Direito Penal para estruturação do sistema financeiro, destacando-se o quadro fático da evasão de divisas, algumas considerações sobre a temática fazem-se merecedoras de destaque, dando-se especial ênfase ao contido no artigo 22, parágrafo único, da Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional.
2- Lei nº 7.492/86
Insta destacar que até a década de 60, no Brasil, não havia se falar em um sistema financeiro nacional consolidado, tendo em vista que a estrutura existente encontrava-se debilitada, e que os organismos financeiros ainda não se adaptavam ao forte crescimento industrial que emergia da sociedade burguesa.
Ante o clamor social e econômico, três principais instrumentos normativos foram editados, citando-se a Lei n. 4.380/64 (criou o Sistema Financeiro de Habitação), Lei n.4.595/64 (responsável pela reforma bancária e constituição do Banco Central do Brasil) e a Lei n. 4.728/65 (Reforma do Mercado de Capitais).
Das três leis supracitadas, a que merece atenção é a n. 4.595/64, tendo em vista que foi a responsável pela introdução da tipificação penal de algumas condutas atentatórias ao sistema financeiro nacional.
De outra banda, verifica-se que o Decreto-Lei n.1.533/51 (Crimes contra a Economia Popular) também normatizou uma série de situações da vida que se enquadram nos crimes considerados econômicos ou financeiros.
Este breve escorço histórico fez-se devido a fim de evidenciar o plano de fundo em que foi recepcionada a Lei n. 7.492/86, que veio a criar um rol muito mais amplo de delitos que ferem a ordem financeira pátria, sistematizando, de sorte muito mais abrangente que suas antecessoras, os crimes contra o sistema financeiro nacional.
A aludida lei, conhecida popularmente como dos crimes de colarinho branco[1], veio a sedimentar uma nova faceta do Direito Penal, estipulando sanções de extremo rigor aos falhos administradores de organismos financeiros, bem como àqueles que desvirtuam todo um sistema cambiário nacional.
3- Artigo 22, parágrafo único
O artigo 22 da indigitada lei, tanto no seu caput, como no parágrafo único, trata da infração penal conhecida como evasão de divisas. Prescreve o artigo:
Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País:
Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.
Não se faz o objetivo precípuo deste artigo a abordagem da parte primeira do referido dispositivo legal, e, quanto à segunda, imperioso faz-se ressaltar que não há, apesar do que se possa retirar de uma primeira análise superficial, vedação à manutenção de numerário em contas bancárias no exterior. Não se admite, contudo, dita manutenção, acima de certos limites legalmente fixados, sem a declaração à autoridade federal competente, tendo criado, inclusive, o legislador, a supracitada norma penal visando coibir referida conduta cujo bem jurídico tutelado é “a proteção da regular execução da política cambial, uma vez que depósitos no exterior constituem-se passivo cambial, ou seja, na expectativa de que um dia retornarão ao País, e esses depósitos exigirão liquidez interna, necessitando, para tanto, ser contraprestacionados em moeda nacional”.[2].
Neste aspecto, nota-se a existência de um teto para a mantença de numerário no exterior, sendo que, a priori¸ referidos valores são alterados mediante Circulares do Banco Central do Brasil, não sendo relevante ater-se, neste contexto, a este ponto em particular.
O que se mostra de maior relevância sobre a esposada norma penal, e que ainda gera grandes imbróglios e entraves doutrinários e jurisprudenciais, devendo, por conseguinte, ser debatido e refletido, consiste em saber quem seria a “repartição federal competente” de que trata aquele artigo.
4- Repartição Federal competente
Ultrapassadas as considerações sobreditas, cumpre compreender qual seria de fato a “repartição federal competente” para receber a declaração de depósitos mantidos no exterior, tratada no artigo 22, parágrafo único, in fine, da Lei n. 7.492/86.
Neste sentido, muito já se debateu sobre as atribuições de controle de capitais brasileiros no exterior competir à Receita Federal do Brasil (RFB) ou ao Banco Central (BACEN), vindo a doutrina caminhando, na atualidade, para o entendimento que será a seguir exposto.
Num primeiro momento deve-se explanar a escolha da repartição competente partindo-se do escrutínio do bem jurídico tutelado pela Lei que coíbe as modalidades de evasão fiscal.
Primeiramente, mister faz-se esclarecer que o delito em foco não possui conotação fiscal, mas sim prima pela proteção à política cambial, “a partir de uma exigência de regularidade na operacionalização do mercado de câmbio, em face de seus iniludíveis efeitos sobre a política econômica do país”.[3]
A proteção sobre o aspecto fiscal, na esfera penal, é dada, em especial, pela Lei n. 8.137/90, nos seus artigos 1º e 2º, ao tratar sobre os crimes contra a ordem tributária, não havendo se confundir a tutela prestada por esta Lei (natureza eminentemente fiscal) com a proteção conferida pela Lei n. 7.492/86 (natureza cambiária).
Deste esboço retira-se, portanto, tendo em vista a observância do prisma do bem jurídico tutelado, que não seria adequado conferir ao Fisco Federal – leia-se Receita Federal do Brasil - atribuições referentes à fiscalização sobre o Sistema Financeiro Nacional.
De outra sorte, ainda que há tempos já houvesse a obrigatoriedade[4] da prestação de informações distintas tanto ao BACEN (financeiras), quanto à RFB (fiscais), especificamente a partir de 2001, com a edição da Circular/BACEN nº 3.071, a declaração sobre a manutenção de capital brasileiro no exterior tornou-se obrigatória – com exceção de certos limites, estipulados pelas próprias circulares, que isentam os sujeitos de declararem depósitos no estrangeiro –, visando o controle cambiário, ao Banco Central.
Assim, importante ter-se em mente que o dever do contribuinte em informar à RFB, em sua declaração de imposto de renda, sobre valores existentes no exterior, persiste, todavia, como já aclarado, tais dados tem como função o controle fiscal, não mostrando-se apta ao controle financeiro, por conseguinte, não acarretando a subsunção dos fatos à norma penal erigida pela Lei n. 7.492/86.
Sob este pórtico, a doutrina tem-se manifestado, ainda que não seja de modo uníssono[5], no sentido de que o termo “repartição federal competente”[6], ensinam que: refere-se ao Banco Central. Neste diapasão, os juristas Roberto Delmanto, Roberto Delmanto Júnior e Fabio M. De Almeida Delmanto
Pune o legislador, outrossim, o ato de quem mantiver (conservar, sustentar) no exterior depósitos não declarados à repartição federal competente (trata-se, igualmente, de lei penal em branco). A repartição federal competente, aqui, é o Banco Central, e não a da Secretaria da Receita Federal, mesmo porque a não declaração de valores ao Fisco é tratada em outra lei ( Lei nº 8.137/90).
Robustecendo o supra entendimento doutrinário prestado, socorre-se novamente aos brilhantes apontamentos de Luciano Feldens e Andrei Zenkner Schmidt, que são cartesianos ao ensinar que “a partir da edição da Circular/BACEN nº 3.071/2001, que instituiu a Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior, não remanesce dúvida sobre ser o Banco Central a “repartição federal competente” destinatária das informações sobre a manutenção de depósitos no exterior a que alude o tipo”.[7]
A fim de não restarem dúvidas sobre o BACEN ser a repartição federal tratada no dispositivo legal em comento, importante anotar que os tribunais pátrios têm-se posicionado no mesmo diapasão, merecendo destaque o inteligente e atual julgado proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, relatado pelo Desembargador Federal Luís Paulo Cotrim Guimarães, onde este esclarece com maestria a questão debatida, ao expor que “Resta claro que a repartição federal competente mencionada na Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro à qual deveriam ser declarados os depósitos é o Banco Central, nos moldes do seu artigo 22, eis que, apenas se se tratasse de crimes contra a ordem tributária, o dispositivo aplicável seria o da Lei nº 8.137/90, e o órgão competente, então, seria a Secretaria da Receita Federal, de sorte que tal alegação sustentada pelos impetrantes não merece prosperar”.[8]
5- Conclusão
Apesar de relativamente nova, a Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional tem se mostrado pertinente em face da situação político e econômica do Brasil, exigindo dos operadores do direito uma constante atualização sobre sua aplicação e interpretação.
Neste aspecto, no que tange as controvérsias passadas sobre a quem competiria o controle dos depósitos de capital brasileiro sito no estrangeiro, parece que a questão se encaminha para uma consolidação, razoável e lógica, que conclui ser o Banco Central, responsável pela tutela financeira do país, a referida “repartição federal competente”.
[1] A utilização do termo “crimes de colarinho branco” ou “white collar crimes” tomou lugar pela primeira vez no discurso do criminalista americano Edwin Sutherland, em 1939. Atribuía, aquele estudioso, o aludido crime a pessoas de elevada posição social e status econômico que, em função desta condição, ou da função que exercem, cometem crimes, valendo-se daquelas, havendo, em regra, uma quebra de confiança.
[2] SCHMIDT, Andrei Zenkner; FELDENS, Luciano. O Crime de Evasão de Divisas – A Tutela Penal do Sistema Financeiro Nacional na Perspectiva da Política Cambial Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, pp.88-89.
[3] Ibidem, p.181.
[4] Tome-se de exemplo o Decreto-Lei nº 1.060/69, que em seu artigo 1º, caput, prescreve que “Sem prejuízo das obrigações previstas na legislação do imposto de renda, as pessoas físicas ou jurídicas ficam obrigadas, na forma, limites e condições estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, a declarar ao Banco Central do Brasil, os bens e valores que possuírem no exterior, podendo ser exigida a justificação dos recursos empregados na sua aquisição“.
[5] José Paulo Baltazar Júnior (Crimes Federais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.338), por exemplo, ainda entende tratar-se a repartição competente como sendo a Receita Federal, assentando que: “É elementar do delito em exame que a abertura ou movimentação da conta no estrangeiro não seja declarada, uma vez que inexiste proibição da manutenção em si dos recursos fora do Brasil, desde que seja declarada à Receita Federal”.
[6] DELMANTO, Roberto; JUNIOR DELMANTO, Roberto; DELMANTO, Fabio Machado de Almeida. Leis penais especiais comentadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.214.
[7] SCHMIDT, Andrei Zenkner; FELDENS, Luciano. Op. cit., pp.185-186.
[8] TRF 03ª R.; HC 32193; Proc. 2008.03.00.016464-9; Rel. Des. Fed. Luís Paulo Cotrim Guimarães; DEJF 28/11/2008.
Bacharelando do Curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Professor de Língua Inglesa
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CABRAL, Flávio Garcia. A repartição federal competente do artigo 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 dez 2009, 08:12. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/18941/a-reparticao-federal-competente-do-artigo-22-paragrafo-unico-da-lei-no-7-492-86. Acesso em: 23 dez 2024.
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