Louvo a atitude de perdão da senhora Vera Nancy Borges, que teve orquídeas subtraídas de seu jardim, em Vitória. Ficou feliz de recuperar as flores, que têm para ela um grande valor sentimental, mas declarou que não deseja que se faça nada contra a senhora que colheu as flores, mas, pelo contrário, deseja que essa senhora seja muito feliz.
Num mundo que fosse feito de sensibilidade e de poesia haveria uma ressalva explícita, ou pelo menos, uma ressalva de interpretação ao artigo 155 do Código Penal, que define o furto. Na linguagem fria da lei considera-se furto “subtrair para si coisa alheia móvel”. A pena para o crime é de um ano a quatro anos de reclusão, além de multa. Flores não se furtam, flores são colhidas. Flores não são “coisa alheia móvel”, flores são aragens de carinho neste mundo insípido. Flores não podem estar contidas no artigo penal citado.
Por coincidência, na mesma semana em que são colhidas as flores do maravilhoso jardim de Dona Vera, celebram-se os centenários de Machado de Assis e Guimarães Rosa.
Machado de Assis escreveu:
“Teus olhos são meus livros.
Que livros há aí melhor,
Em que melhor se leia
A página do amor?
Flores me são teus lábios.
Onde há mais bela flor,
Em que melhor se beba
O bálsamo do amor?”
Guimarães Rosa, além de grande escritor, um dos maiores da Literatura Universal, foi botânico e naturista. Como verdadeiro cientista, viajou pelo sertão observando a natureza e colhendo dados para produzir seus livros, principalmente sua obra prima “Grande Sertão – Veredas”. Em passagens magistrais, antológicas, ele descreve o canto e a plumagem dos pássaros, a cor e o cheiro das flores.
Num poema que lhe dedicou, na semana em que morreu Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade escreveu:
“Vegetal ele era ou passarinho
Sob a robusta ossatura com pinta
De boi risonho?”
Em cinco de setembro de 1975, quando eu exercia a função de Juiz de Direito em Vitória, ao libertar um jardineiro processado por crime de lesões corporais leves, determinei, como condição para sua soltura, que ele voltasse
“para os jardins desta cidade, como jardineiro que é, a fim de cuidar das flores e tornar menos agreste a paisagem urbana, contribuindo, com seu trabalho, inclusive para proporcionar jardins mais belos a nossas crianças.”
Ainda na sentença estabeleci como requisito de liberdade que ele se dedicasse
“ao seu trabalho, à bela ocupação de jardineiro, velando, com carinho, pela vida vegetal, e compreendendo que se esta é reflexo da divindade, muito mais reflexo da divindade é a vida e a integridade do nosso irmão”.
Fico a imaginar que esse jardineiro, tempos depois, tenha voltado à casa da vítima e oferecido à família um buquê de rosas.
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