Co-autor: Rafael Caetano Cherobin – Bacharel em Direito
1. INTRODUÇÃO
Nunca houve na História qualquer sociedade onde as diferenças e preconceitos não estivessem presentes. Apesar do esforço humano na persecução de um mundo justo, o vácuo entre as classes sociais e os preconceitos de ordem cultural sempre persistiram.
No Brasil, uma das ações afirmativas empregadas, são as cotas estudantis para negros nas universidades, cotas estas que trouxeram grande polêmica, haja vista que questiona-se se essas cotas ferem ou não o princípio constitucional da igualdade.
Assim, neste trabalho, primeiramente será feito uma definição das ações afirmativas; em seguida será analisada a legitimidade constitucional das ações afirmativas na ordem jurídica. Por fim, explanou-se sobre as cotas estudantis para negros no Brasil.
2. AÇÕES AFIRMATIVAS E DISCRIMINAÇÕES POSITIVAS
2.1 Definição
As ações afirmativas surgiram como uma ferramenta de inclusão das categorias historicamente discriminadas, para estabelecer um processo real de igualdade. Para Joaquim B. Barbosa Gomes, as ações afirmativas:
consistem em políticas públicas e (também privadas) voltadas à concretização do princípio da igualdade material à neutralização dos efeitos da discriminação de raça, de gênero, de idade, de origem nacional e da compleição física. Impostas ou sugeridas pelo Estado, por seus entes vinculados ou até mesmo por entidades puramente privadas, elas visam a combater não somente as manifestações flagrantes de discriminação de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade.[1]
Ação afirmativa em sentido genérico é qualquer atuação pública ou privada que através das mais diversas políticas de inclusão, havendo ou não discriminação no seu conteúdo, pretende ajustar as desigualdades. Já as discriminações positivas possuem uma atuação mais enfática, pois nestas há discriminações obrigatoriamente, como o próprio nome sugere. Como sua utilização resulta em efeitos mais diretos, já que discriminar positivamente também significa, de certo modo, prejudicar aqueles que possuem a totalidade dos bens ou serviços, é também verdade que necessita de maior rigor em sua aplicabilidade.
É possível ainda subdividir as discriminações positivas em dois tipo: a que busca fomentar uma igualdade de oportunidades e a que atua diretamente visando materializar uma igualdade de resultados.
No primeiro caso, embora sejam políticas discriminatórias, não garantem que qualquer indivíduo da categoria discriminada e, portanto, alvo da ação afirmativa em questão, irá se beneficiar dos objetivos finais da própria iniciativa afirmativa. Trata-se apenas de uma “ajuda”, todavia, não materializa diretamente a inclusão social, ou seja, fica dependente do mérito posterior do indivíduo ajudado.
Já as que visam uma igualdade de resultados, garantem por si só que pelo menos alguns indivíduos da categoria discriminada em questão sejam abarcados pelos propósitos finais da ação afirmativa, como é o caso das cotas, posto que esta reserva uma parcela de vagas a uma categoria na qual alguns indivíduos desta categoria irão, com certeza, se beneficiar; a própria medida garante por si só a inclusão.
2.2 Fundamento das ações afirmativas
Quanto ao fundamento das ações afirmativas, estas não têm o condão de compensar as discriminações e preconceitos sofridos pelas gerações passadas. Pelo menos juridicamente, tal argumentação sofreria diversos obstáculos intransponíveis: hodiernamente só é possível algum cidadão receber algum tipo de compensação se efetivamente tenha sofrido algum dano. Por outro lado, só quem teria legitimidade para atuar no pólo passivo dessa demanda seria aquele que realmente praticou o ato[2].
Face a tais dificuldades, salienta-se que as ações afirmativas teriam, na verdade, uma função distributiva, no sentido de distribuir equitativamente a todos, os bens e os servições escassos. Seria sempre uma ferramente de correção dos desajustes provocados pelos mais diversos tipos de preconceitos, sejam eles do passado ou do presente[3].
Há ainda quem associe as ações afirmativas ao princípio da dignidade humana e ao pluralismo jurídico. Embora tal teoria tenha surgido como critíca à teoria da justiça distributiva, por considerá-la insuficiente, haja vista que nem todas as desigualdades sociais foram (ou são) geradas por discriminações sociais, ambas parecem se complementar, já que é também verdade que a prossecução do princípio da dignidade humana e do pluralismo jurídico dependerá, sobretudo, de uma distribuição proporcional dos bens escassos[4].
2.3 Ação afirmativa e democracia
Vale ainda aduzir sobre a estreita ligação entre as ações afirmativas e a democracia, já que o mecanismo das ações afirmativas só funciona de fato numa sociedade plural e participativa, que impõe ao Poder uma melhor distribuição dos bens e servições escassos.
A realização de uma sociedade democrática consiste justamente na participação efetiva dos cidadãos, através de direitos e deveres, no espaço público, onde cada pessoa ganha plena autonomia para se expressar e participar no processo histórico, como defini Marilena Chauí:
A sociedade democrática institui direitos pela abertura do campo social à criação de direitos reais, à ampliação de direitos existentes e à criação de novos direitos. Eis porque podemos afirmar que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, ou seja, não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva (a liberdade) e de alterar-se pela própria práxis.[5]
Dentro dessa perspectiva, a possibilidade de inclusão social através das ações afirmativas depende significamente da atuação política dos grupos organizados no seio da sociedade. As ações afirmativas se consubstanciam conforme o nível qualitativo de uma democracia, posto que a simples possibilidade de certas discriminações legais no conteúdo das leis não necessariamente significa que haverá um esforço por parte do legislador no sentido de utilizar esse recurso como instrumento de justiça social.
Em análise última, trata-se de um intrumento a harmonizar as oposições e contradições de uma sociedade heterogênea, onde os grupos mais fortes têm mais influência política. Daí também a relação entre direitos humanos e democracia, um como pressuposto do outro: quanto mais respeitador um Estado dos direitos humanos, maior será a participação dos indivíduos, e no sentido inverso, quanto mais estabilizada uma democracia, também maior será a possibilidade do reconhecimento e ampliação de novos direitos, inclusive através do recurso às ações afirmativas.
2 AS COTAS ESTUDANTIS PARA NEGROS NO BRASIL
2.1 Os negros e a educação no Brasil
O problema sociológico brasileiro, no que se refere ao acesso dos negros às universidades, diz respeito a duas questões: ao histórico escravocrata do País e à situação precária na qual se encontram as escolas públicas do ensino fundamental.
No Brasil, a parcela mais pobre da população é formada por negros[6]. Desde a declaração do fim da escravidão, os negros sempre se viram socialmente “atrás” da elite branca. O fato é que mesmo após mais de um século de liberdade, nunca conseguiram se inserir socialmente numa proporção razoável, considerando o número elevadíssimo de negros no País.
Este fato, associado a um outro problema, o da péssima qualidade das escolas do ensino fundamental mantidas pelo governo em comparação com as escolas privadas, impede que um número significativo de negros ingresse nas universidades. É que a situação de pobreza na qual vivem a maioria dos negros obriga-os a estudarem nas escolas públicas durante o ensino fundamental (escolas custeadas pelo Estado), enquanto os bancos das escolas particulares são ocupados pelos brancos. Disso resulta numa disputa desigual quando do vestibular, já que as escolas particulares fornecem uma preparação muito melhor.
Para além disso, as universidades públicas no país, ao contrário do que acontece no ensino fundamental, possuem de maneira geral melhor qualidade do que as universidades particulares, além de serem lógicamente custeadas pelo Estado, e por isso mesmo a competição pelas vagas também ser mais acirrada.
No entanto, a situação no Brasil parece ir contra o bom senso, pois contribui para que os indivíduos de menor poder aquisitivo paguem para estudar nas universidades particulares, já que não conseguem competir no vestibular em igualdade com os indivíduos vindos das escolas particulares do ensino fundamental. Enquanto os que possuem melhores condições financeiras estudam de graça nas universidades públicas, por terem desfrutado de uma melhor preparação durante o ensino fundamental. É lógico que este fato se traduz num número reduzido de negros nas universidades, pois estes não conseguem competir para entrar numa universidade pública e muitas vezes também não conseguem pagar uma universidade particular[7].
2.2 Análise jurídica
Para que se possa argumentar favoravelmente ou contra as cotas para negros nas universidades brasileiras, do ponto de vista jurídico, há dois ponto a serem analisados.
O primeiro refere-se a validade constitucional das ações afirmativas, inclusive no que tange às discriminações positivas.
A seguir, poderia se passar a uma nova etapa, a dos limites a tais discriminações: quais os critérios que devem ser obedecidos para se adotar uma discriminação positiva?
2.2.1 Da validade constitucional
As ações afirmativas estão intimamente vinculadas ao princípio da igualdade, de maneira que qualquer investigação acerca da possibilidade jurídica delas, há de iniciar-se, inevitavelmente, por uma análise do princípio da igualdade. Até porque foi sempre calcada na restrição deste princípio a justificativa que tem se dado às ações afirmativas.
A validade constitucional das ações afirmativas está ligada a admissibilidade de uma restrição ao princípio da igualdade, já que haverá um favorecimento de uma categoria em face de outras. Conforme se verifica, há de existir uma maleabilidade constitucional no sentido de harmonizar suas normas e valores à realidade concreta.
Nesse sentido é que a doutrina dispões de três tipos de normas restritivas de direitos fundamentais: aquelas plasmadas na própria constituição; aquelas expressamente autorizadas pela constituição, sobre as quais dependem de leis infraconstitucionais posteriores; e aquelas implícitas no contexto sistemático da Constituição[8].
No que tange às cotas universitárias para negros no Brasil, encaixa-se no terceiro caso. Não há por parte da Constituição brasileira nenhuma norma literal que reserve um número de vagas para os negros nas universidades brasileiras e nem mesmo qualquer preceito que autorize práticas de discriminação por raça. Pelo contrário, a Constituição adota, inclusive, uma conotação formal do princípio da igualdade no seu artigo 5º, caput, ao afirmar
que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade[9].
Não obstante tal fato, ao se fazer uma leitura sistemática, é por demais evidente uma preocupação constante do texto constitucional em garantir uma igualdade verdadeiramente subtancial, bem como um teor socializante, conforme o seu próprio preâmbulo evidencia ao:
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social[10].
A própria Constituição reclama em diversos trechos a utilização de medidas diferenciadoras quando necessárias à igualdade de fato. Ora, se há fundamento para tais discriminações no próprio texto constitucional e uma abertura constitucional aos Direitos Humanos a nível internacional, extender uma interpretação constitucional a fim de equilibrar uma maior igualdade entre os diversos grupos étnicos não pode ser considerado um desrespeito à Constituição, mormente considerando o histórico escravocrata brasileiro. Tal preciosismo parece mais sugerir um direito rigorosamente conservador e sem nexo social, o que não demonstra ser a real intenção do texto Constitucional.
Quanto ao fato das cotas promover uma igualdade de resultados, também não parece ser argumento suficiente para sucumbir sua validade, pois há por parte da própria Constituição a adoção de cotas, como para as pessoas portadoras de deficiência. Ademais, a ratificação pelo Brasil da Convenção Internacional Sobre Todas as Formas de Discriminação Racial põe termo a discussão da permissividade da Constituição brasileira para a utilização de discriminações positivas, já que a Convenção equipara-se a uma emenda constitucional. O artigo 1º, nº 4, da Convenção Internacional sobre a Eliminaçãos de Todas as Formas de Discriminação Racial diz:
não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contanto que tais medidas não conduzam, em consequência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem alcançado seus objetivos[11].
No caso das cotas estudantis para negros no Brasil, considerando a realidade econômica brasileira, soa superficial defender que a inclusão dos negros nas universidades brasileiras deveria vir na sequência de uma reestruturação do ensino fundamental que elevasse sua qualidade, de modo a estabelecer uma igualdade de oportunidades, sem a necessidade de se recorrer à discriminações.
Embora este tenha sido um argumento constantemente utilizado por aqueles que partilham de uma posição contrária às cotas, pelo menos do ponto de vista jurídico, não parece haver qualquer barreira constitucional que impeça a utilização das cotas quando esta se mostrar necessária e “ultrapassar” todos os requisitos doutrinários que vedam sua execução.
Nesses termos, é legítimo afirmar a permissividade da Constituição brasileira para adotar ações afirmativas, mesmo que haja discriminações positivas no seu conteúdo. Todavia, questão mais complexa é definir seus limites e os critérios na qual dependerá o caso em concreto.
2.2.2 Dos critérios para adoção de cotas
Para além de definir se determinada política de inclusão é ou não necessária, é também preciso estabelecer em que medida e de que forma tal ação se procederá.
Para Renata Malta Vilas-Bôas, os requisitos de validade constitucional de uma discriminação positiva são:
“a) a norma criada não venha a atingir um só indivíduo, ou seja, esteja em consonância com os princípios da generalidade e abstração da norma jurídica; b) realmente exista nas pessoas, coisas ou situações características e traços que sejam diferenciados; c) há uma correlação lógica entre os fatores diferenciais existentes e a distinção que foi estabelecida; d) esta distinção estabelecida precisa ter um valor positivo, dentro do estabelecido pelo nosso ordenamento jurídico, através da Constituição Federal. (2003 apud PINHEIRO, 2005, p. 82).
No que tange às cotas para negros nas universidades brasileiras, a maior dificuldade parece ser em fundamentar uma “correlação lógica entre os fatores diferenciais e a distinção estabelecida”, correspondente a letra “c” enunciada por Renata Malta Vilas-Bôas. Todavia, vale antes percorrer os critérios apontados nas letras “a”, “b” e “d”.
Primeiramente, as cotas estariam em consonância com os princípios da generalidade e abstração da norma jurídica, posto que beneficiariam uma categoria genérica (um número indeterminado de pessoas: todos os negros, sem distinção entre eles) e abstrata (já que só participariam aqueles que se adequassem aos critérios estabelecidos, sempre em iguais condições).
A seguir, as diferenças seriam estabelecidas por um grupo etnicamente diferente, embora haja dúvidas sobre qual o método melhor e mais justo de distinção. As experiências de até então no Brasil apresentaram grandes dificuldades em definir negros de outras raças, ainda mais quando tal procedimento se deu por fotografias dos candidatos, como no vestibular da Universidade de Brasília, em 2004. Apesar de tal constatação, é razoável dizer que único argumento que poderia invalidar juridicamente a adoção de cotas pelo critérios “raça”, seria o de partir do pressuposto de que não existem grupos étnicos distintos e suscetíveis de diferenciação, o que do ponto de vista sociológico e político, parece fora de cogitação, tanto que se assim fosse, não se falaria em preconceito racial.
No que se refere a letra “d”, quanto “a distinção ter um valor positivo, dentro do estabelecido pelo nosso ordenamento jurídico, através da Constituição Federal”, já tratamos deste assunto quando da validade constitucional das discriminações positivas no Brasil.
O maior problema se dá em estabelecer uma “correlação lógica entre os fatores diferenciais e a distinção estabelecida”. É que é importante enfatizar que o vestibular (no que se refere estritamente à aplicação das provas) é um sistema de seleção totalmente isento de valoração quanto a raça, aqueles que corrigem as provas nem sequer conhecem a origem étnica dos candidatos. O que dificulta a entrada de negros nas universidades, destarte, é tão somente o fato de este grupo étnico ser composto, na sua grande maioria, pelas camadas mais pobres, e consequentemente estudarem em escolas públicas de baixa qualidade, o que os coloca em desvantagem no vestibular, ou seja, os fatores que levam à diferença exorbitante entre o número de negros e brancos nas universidades não está ligado diretamente a uma questão étnica, mas sim econômica.
Vale ainda lembra que embora os negros correspondem às classes economicamente inferiores no Brasil, há também indivíduos de outros grupos étnicos em igual situação, assim como há também negros que compõem as classes mais abastadas, apesar de que em número muito reduzido proporcionalmente à parcela de negros no País. A grande dificuldade é que as cotas estritamente para negros implicaria em dois problemas: o de privilegiar negros das classes sociais mais elevadas, que poderiam competir no vestibular em igualdade, e desfavorecer aqueles indivíduos de outros grupos étnicos que também tiveram que estudar em escolas públicas.
Para que se encontrasse uma “correlação lógica entre os fatores diferenciais e a distinção estabelecida”, seria necessário se provar que o que dificulta a entrada dos negros na universidade tem relação direta com a raça e dessa maneira se justificaria ter o critério raça como o elemento definidor das cotas.
2.2.3 As correntes contrárias à adoção das cotas
Juridicamente, o argumento mais difícil de ser enfrentado por aqueles que são a favor das cotas não é mais tanto de provar sua legitimação constitucional. Por seu turno, é inegável que a adoção de uma discriminação positiva obrigatoriamente está ligada a restrição do princípio da igualdade, de modo que a única maneira ponderada de se realizar tal juízo é se se provar que a restrição irá ser condizente com outros valores constitucionais garantidos, caso em que deverá transparecer na situação em concreto os motivos que levam a certas categorias de serem excluídas de outros benefícios também agasalhados pela Constituição.
No caso das cotas no Brasil, o grande entrave é que o número reduzido de negros nas universidades brasileiras não está somente ligado a um fator racial, todavia, também econômico, conforme vimos anteriormente. Adotar as cotas somente para negros iria excluir outros grupos étnicos que também preenchem as camadas economicamente menos favorecidas. E também favoreceria os negros com melhores condições socias, embora é verdade que as cotas adotadas no Brasil até o momento sempre tiveram um critério duplo: o da raça (cotas restritas aos indivíduos negros) e econômico (o candidato precisa provar que estudou em escolas públicas). Assim, podemos concluir que o único problema seria o de excluir outros grupos étnicos (que não sejam negros) correspondentes às classes socialmente disprivilegiadas.
Dito isso, podemos aplicar o princípio da proporcionalidade ao caso das cotas, posto que este princípio serve de “justa medida” em questões onde haja um insuficiente espaço para que todos os direitos fundamentais sejam garantidos de modo integral. Sendo assim, deve-se achar uma proporção equilibrada entre os direitos, podendo restringi-los ou até mesmo dar preferência entre eles. Tal medida - é importante se enfatizar - deve ter sempre um alcance temporal e espacial limitados.
Por isso, mesmo para os que se posicionam contrário às cotas, estas passariam pelo primeiro subprincípio, o da adequação, já que as cotas para negros nas universidades brasileiras são coerentes com o seu fim, o de aumentar o número de negros nos bancos universitário.
Entretanto, ao se analisar o segundo subprincípio, o da necessidade ou exigibilidade, argumentam que essa medida não seria a medida mais exigível pelo fato de que o problema tem no fundo uma origem econômica, de modo que há possibilidades menos maléficas, como a de estabelecer cotas para todos os grupos étnicos economicamente disprivilegiados. Encontraria-se, desse modo, uma medida adequada, pois a maioria dos negros compõem as classes menos abastadas e, por conseguinte, seriam também alcançados pelas cotas, atingindo o fim que se busca, o de aumentar o número de negros nas universidades. E por outro lado, não seria tão prejudicial a terceiros, já que incluiria outros indivíduos de grupos étnicos diferentes que estejam na mesma situação de exclusão social.
Outro argumento é também a questão de se tratar os iguais de modo desigual. No caso, indivíduos de outros grupos étnicos estariam em posição idêntica a dos negros e, por sua vez, seriam tratados de maneira distintas, ocasionando a inconstitucionalidade da discriminação positiva
2.2.4 As correntes favoráveis à adoção das cotas
Os mesmo passos são feitos pelos que se posicionam a favor das cotas, não obstante, para estes as cotas exclusivamente para negros não só são consideradas adequadas, como também exigíveis.
É que consideram a ampliação das cotas a todos os grupos étnicos sociamente disprivilegiados uma conduta inadequada, pelo fato de alegarem que mesmo entre as classes com menos condições financeiras, os negros compõem as camadas mais baixas[12]. Dessa maneira, a discriminação considerando apenas o fator econômico não atingiria o fim buscado, o de aumentar o número de negros nas universidades, pois os brancos pobres levariam vantagem sobre os negros pobres e acabariam ocupando a quase totalidade das vagas reservadas pelas cotas.
Alguns se valem ainda do direito comparado, mais especificamente da experiência cubana. A idéia que predominava logo após a revolução Cubana, nos moldes defendido por Fidel Castro, era a de que as desigualdades entre as diversas categorias de indivíduos eram frutos dos privilégios de classe e que uma vez extinto tais privilégios, consequentemente também se erradicaria quaisquer diferenças sociais entre as categorias. Tanto que para o Governo Cubano não havia que se falar em raças, pois predominava a idéia que destinar polítcas direcionadas de acordo com os diversos grupos étnicos não era necessário e nem condizente com as políticas socialistas pregadas por Fidel, seja ela o de implantar políticas abrangentes a toda população cubana. Nesse contexto, foi proibido qualquer discriminação e abolido o uso de classificações raciais ou referências à raça. Apesar das políticas cubanas de fato terem atenuado a exclusão na qual antes se encontravam a maioria da população negra, ainda assim não foram suficientes para ascender este grupo étnico na mesma proporção dos indivíduos de raça branca[13].
O que se retira da experiência cubana, para os que são a favor das cotas, é que apenas políticas sociais abrangentes não são suficientes para uma inserção verdadeira de uma categoria reconhecidamente excluída do ponto de vista social. É necesário sim, medidas mais incisivas, até porque a discriminação não se encontra num único plano, ao contrário disso, atua de maneira sistemática e conectada. No que concerne ao problema da educação no Brasil, não pode ser visto separadamente de outras formas na qual os negros são excluídos socialmente. Apenas para ilustrar, podemos dizer que a educação não se realiza somente na escola, outros fatores também influenciam, como por exemplo, o acesso à cultura, à informação, o ambiente familiar etc. É lógico que assim sendo, se consideramos que os negros fazem parte das camadas mais pobres, também serão a eles renegados tais fatores em maior proporção.
Por isso consideram as cotas uma medida tanto exigível, como também ao se ponderar sobre os benefício à sociedade e os sacrifícios dado a restrição do princípio da igualdade (proporcionalidade em sentido estrito), seria válida sua aplicação, visto a exclusão dos negros no Brasil ser de proporções extremas, ou seja, não somente quantativamente como qualitativamente e, nesse diapasão, reclama políticas mais radicais, como a das cotas.
Mas não é só, ainda argumentam que a riquesa da vida em sociedade por muitas vezes impõe à Constituição um conflito entre seus dispositivos. E, para solucionar essa colisão de normas ou princípios, o legislador precisaria se valer de ponderações valorativas, admitir que certos princípios ou normas prevaleçam sobre outras, em oposição a uma interpretação puramente positivista dos preceitos legais. Haveria na Constituição uma certa margem de flexibilidade, onde seus limites estariam fixados por princípios considerados mais importantes ou até mesmo supralegais, tendo como referência principal o da dignidade da pessoa humana. É nesse sentido que Jorge Reis Novais assevera:
[…] é a dignidade da pessoa humana que confere unidade de sentido explicativo ao chamado sistema constitucional de direitos fundamentais e orienta as margens de abertura e actualização do respectivo catálogo. […] A representação constitucional do homem enquanto pessoa, cidadão e trabalhador, a desvalorização relativa da propriedade e iniciativa ecónomica privada, a visão universalista dos direitos, a tónica na criação de condições de uma igualdade real ou o carácter profundamente social das tarefas fundamentais atribuídas ao Estado mostram que a dignidade da pessoa humana não pode ser hipostasiada segundo os pressupostos de qualquer ideia de conservação social historicamente situada.[14]
Com efeito, o princípio da dignidade humana serve de limite para a restrição de direitos, ainda que garantidos constitucionalmente, e também serve ele como pressuposto às restrições quando se fizerem viáveis.
3 CONCLUSÃO
Verificou-se que os requisitos jurídicos necessários são apenas uma técnica na qual se estabelece um mínimo de segurança para que as ações afirmativas não infrinjam à Constituição. Contudo, mesmo dentro do consentido pela Lei Maior, há um grande espaço discricionário para que se debata a melhor maneira de implantar a ação afirmativa específica para cada caso.
Por fim, reitera-se o caráter humanitário das ações afirmativas, que servem de ferramenta imprescindível à concretização dos valores máximos de um Estado de Direito, qual sejam, o de buscar a igualdade real entre os indivíduos e a dignidade para todos. E vale lembrar que tal constatação ganha ainda mais relevância num país marcado pelas desigualdades sociais e pelos preconceitos enraizados ao longo da história, como é o caso do Brasil.
4 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial. Adotada pela Resolução 2.106-A (XX), em 21.12.1965. Ratificada pelo Brasil em 27.03.1968.
BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:Campus, 1996.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
CANOTILHO, J. J Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. 5º Ed. Coimbra: Editora Almedina. 2002.
CHAUÍ, Marilena. Direitos Humanos e Educação. Congresso sobre Direitos Humanos, Brasília, em 30/08/2006.
GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e Princípio Constitucional da Igualdade: o direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001.
NOVAIS, Jorge Reis. Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Editora Coimbra. 2004.
PINHEIRO, Leila Teixera. Ação Afirmativa e Princípio da Igualdade: a questão das quotas raciais para ingresso no ensino superior no Brasil. 2005. 269f. Tese apresentada ao final do Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas – Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra.
PINTO, Maria da Glória Ferreira. Princípio da Igualdade: Fórmula vazia ou Fórmula “Carregada” de Sentido? In Boletim do Ministério da Justiça, nº 358. Portugal. Julho de 1986.
SMOEHLECKE, Sabrina. Ação Afirmativa: História e Debates no Brasil. Caderno de Pesquisa. Nº 117, p. 197-217, novembro de 2002.
[1] GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2001. p. 6-7.
[2] PINHEIRO, Leila Teixera. Ação afirmativa e princípio da igualdade: a questão das quotas raciais para ingresso no ensino superior no Brasil. 2005. 269f. Tese apresentada ao final do Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas – Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra. P. 61.
[3] Ibidem, p. 62-63.
[4] Ibidem, p. 65-66.
[5] CHAUÍ, Marilena. Direitos Humanos e Educação. Congresso sobre direitos humanos, Brasília, p. 3, em 30/08/2006.
[6] Para efeitos didáticos consideramos todos os afrodescendentes como negros.
[7] Referimo-nos a tal situação de maneira genérica, pois é lógico que há exceções.
[8] PINHEIRO, Leila Teixera. Ação afirmativa e princípio da igualdade: a questão das quotas raciais para ingresso no ensino superior no Brasil. 2005. 269f. Tese apresentada ao final do Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Políticas – Faculdade de Direito, Universidade de Coimbra, Coimbra. P. 134.
[9] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
[10] Ibidem.
[11] ASSEMBLÉIA GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS. Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial. Adotada pela Resolução 2.106-A (XX), em 21.12.1965. Ratificada pelo Brasil em 27.03.1968.
[12] Conferir em “Retrato da Desigualdade”, (resumo), 2º edição, no site www.ipea.gov.br.
[13] SMOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Caderno de Pesquisa. Nº 117, p. 197-217, novembro de 2002.
[14] NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Coimbra: Editora Coimbra. 2004. P.52-53
Acadêmica de Direito (UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ - UNIVALI). Estagiária da 2ª Vara do Trabalho de Itajaí.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HILLER, Neiva Marcelle. As cotas estudantis para negros no Brasil e o princípio da igualdade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 mar 2010, 07:31. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19425/as-cotas-estudantis-para-negros-no-brasil-e-o-principio-da-igualdade. Acesso em: 23 dez 2024.
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