RESUMO
“A Cidade Antiga” de Fustel de Coulanges interliga em seu livro primeiro e segundo, um conjunto de filosofias e hábitos oriundos de crenças antigas, sobretudo ao culto de deuses individuais e aos mortos como princípio basilar à formação do instituto da familiar, o qual, durante séculos exerceu domínio sobre o homem, além de formar as instituições domésticas e sociais como regra obrigatória. Destarte, à luz de tais condutas o culto familiar antigo, serve de alicerce à construção de alguns institutos do Direito Moderno, principalmente do Código Civil Brasileiro aprovado em 2002, nos contextos pertinentes à família, sem esquecer sua positivação na Constituição Federal de 1988.
PALAVRAS-CHAVE: Instituto Familiar; Antigo; Moderno.
1 INTRODUÇÃO
A partir de um breve histórico dos relatos de Fustel de Coulanges sobre as crenças antigas e à religião doméstica como constitutivo da família antiga, este trabalho tem o escopo de correlacionar à aplicação e efetividade do Direito de Família positivado na Carta Cidadã e no Código Civil de 2002 com as inspirações do Direito Antigo. Evidencia as adaptações ocorridas diante do instituto familiar, rumo à dignidade da pessoa humana, característica salutar a qualquer instituto contemporâneo, regentes das normas de conduta.
Como conclusão, abordará de forma concisa a importância do núcleo familiar através dos séculos para estruturação do Estado Democrático de Direito.
2 A IMPORTÂNCIA DAS CRENÇAS E DO CULTO NA FAMÍLIA ANTIGA
As gerações antigas acreditavam numa segunda existência posterior à morte, uma mudança de vida onde o corpo e a alma eram enterrados juntos para uma nova vida subterrânea.
Nestes ideais surgiu o sepultamento, obedecendo a ritos e fórmulas, onde aqueles que não fossem enterrados permaneceriam errantes, num sofrimento eterno. Privação esta, aplicada inclusive como punição.
Essas crenças antigas persistiram em diversas civilizações, nascendo a oferenda do leite, vinho, óleos e perfumes como forma de cultivar a memória dos antepassados, o que veio a perpetuar estes cultos por séculos. Com o hábito, tais crenças deixam de ser apenas zelo com os mortos, cederam espaço às normas de condutas. Assim, os mortos passaram a figurar como entes sagrados com direito a túmulos nos quais havia um altar destinado a sacrifícios e oferendas constantes.
Nos altares o chefe da família tinha a obrigação de manter o fogo aceso dia e noite, pois, este era a divindade soberana do Lar, diante do qual se reunia a família. Tais manifestações só vieram a desaparecer quando os povos gregos e italianos começaram a representar seus deuses com formas humanas.
O fogo do lar, símbolo de pureza, inspirava ideal de sabedoria e prosperidade, vindo a estabelecer uma espécie de moral a ser seguida, uma religião frente a qual se reverenciava os antepassados e edificava a noção de lar e honra.
A religião doméstica era restrita aos parentes consangüíneos, o túmulo estava fincado no centro da casa, e assim, cada família estabelecia suas regras com completa independência, propagada de geração a geração pelo genitor. Isto porque, a mulher só participava nesse culto por intervenção de seu pai ou marido e pós-morte de um destes, sua função era restrita.
3 A ENTIDADE FAMILIAR SOB A ÉGIDE DE NORMAS RELIGIOSAS
Quanto à instituição familiar antiga, é nítido que sua origem se estrutura na prole ou afeto natural. O seu fundamento encontra-se positivado no poder paterno ou marital, no entanto, outros atribuem à religião a consolidação da família pelo poder de associação que a mesma exerce.
Com o passar do tempo, o direito de herança veio a ser regulado não pelo nascimento, mas, através do direito de participar do culto doméstico, o qual contribuiu também para a criação do instituto do casamento, sendo que, após contraí-lo a esposa passava à religião do marido e a herança era transmitida somente ao varão e a esposa desvinculava-se totalmente da religião paterna.
O Instituto do Matrimônio apresentava cerimônia nupcial de caráter solene, visto à sua magnitude, não admitia a poligamia. Quanto à morte, não era reservado glórias celestiais aos mortos, mas, tais glórias, dependiam da conduta de seus descendentes.
O culto ganhou tal importância, que em Atenas o Magistrado era encarregado de zelar para que nenhuma família se extinguisse, bem como os romanos pela não extinção do culto. Isto porque, culto morto seria sinônimo de família desaparecida, portanto, interrupção de linhagem.
Abominado era o celibato, pois, expunha a risco a perpetuação da espécie humana, além do morto, não deixar descendentes para lhe cultuar. Através desta idéia evidencia a obrigatoriedade do casamento.
O casamento poderia ser anulado em caso de infertilidade da mulher, uma vez que na jura matrimonial era expresso tomar a esposa para ter filhos, e com o caráter de dar continuidade à geração e ao culto doméstico, foi estabelecido o direito de adoção como último recurso. Sua premissa consistia em substituir aquilo que a natureza não lhe fornecera, para tanto, obedecia a uma cerimônia sagrada, vinculando direitos perante a nova família.
Com efeito, a religião doméstica definia as questões de parentesco, contudo, a mulher não era considerada transmissora de parentesco, este papel era exclusivo do pai transmitido pelo culto (parentesco por agnação).
Apesar de existirem civilizações que nunca instituíram a propriedade, sua idéia é intrínseca à própria religião, pelo fato de cada família possuir cultos e rituais próprios, que por sua vez, constituíam domínio particular, nele incluindo-se o territorial.
Essa divisória traçada pela religião, segundo a lei romana, quando uma família chegasse a vender o campo onde ficava localizado o túmulo familiar, este permaneceria sob o domínio de seus descendentes, cujo terreno em volta do mesmo teria que ser concedida a passagem necessária à continuação do culto na linha divisória eram fincados termos de pedra ou troncos denominados.
Todavia, é sabido que grande parte das civilizações proibia o proprietário de vendê-las, ou aliená-las, noutras, não havia a proibição, mas atribuíam severas penas aos proprietários que as vendessem.
A expropriação por utilidade pública era desconhecida, bem como, o confisco em proveito do credor era vedado pela Lei das Doze Tábuas no Direito Romano.
Referente à sucessão, além dela constituir-se em direito, era, sobretudo uma obrigação para filho quanto ao culto doméstico e transmitida do pai ao varão primogênito; não havia previsão de renúncia. Caso o genitor tivesse unicamente uma filha e esse viesse a falecer, seu legado era destinado ao parente mais próximo, contudo, poderia tal parente casar-se com a filha do falecido. Irmãos poderiam casar se não fossem provenientes da mesma mãe. Não havendo filhos o herdeiro seria o irmão, o filho do irmão e na falta destes os ascendentes do defunto, sempre pela linha masculina.
Outro instituto em comento é a emancipação, cujo filho emancipado era excluído do culto paterno e conseqüentemente da herança.
Desta feita, a autoridade da família cabia ao pai, cujo poder paternal conservava o lar e o fogo que une a família. Os filhos provenientes do concubinato não eram submissos ao pai pela ausência da comunhão religiosa.
O poder paternal atribuía ao genitor direito incontestável de supremacia no ambiente familiar, podendo inclusive condenar seus membros à morte sem interferência de nenhuma autoridade. Ele contribuiu para o fortalecimento da honra e da moral familiar, influenciou tempos após na formação da “gens” – família ligada por um vínculo de origem, que ao ganhar corpo, instituiu a aristocracia.
4 O DIREITO ANTIGO FORMADOR DA LEGISLAÇÃO CONTEMPORÂNEA
Os institutos unificados por meio da família antiga, através da perpetuação da espécie humana, adequando-se à realidade social de um povo a cada época, têm caráter de regular e manter a ordem social. Hoje o instituto familiar brasileiro não só é protegido por preceitos religiosos, ele está reconhecido como necessidade basilar à formação moral e intelectual de seus membros, sendo positivado no artigo 226 da Constituição Federal de 1988, além de receber arrimo estatal [1].
Observamos nos direitos sucessórios previstos na família antiga, serem defesos direitos hereditários aos demais filhos senão ao varão, bem como o instituto da renúncia; atualmente, conforme o artigo 1784, CC/02 se legitimam suceder à herança todas as pessoas nascidas ou concebidas do de cujos, salvo exclusão testamentária por motivo relevante, portanto independentemente de sexo[2]. Quanto à renúncia ao espólio, será possível conforme instrumento público ou termo judicial, art. 1806, CC/02 [3].
Já o casamento, continua como ato solene, formal, com caráter monogâmico, voltado à comunhão familiar e à procriação, aparecendo o divórcio como o rompimento total do matrimônio, mas resguardando os direitos pré estabelecidos dos cônjuges e dos filhos; há proibição de casamento entre parentes até o 3º grau, artigo 1521, VI, CC/02 [4]; há também previsão de cláusulas suspensivas ao casamento, artigo 1523 supra [5].
O filho, uma vez emancipado para casar ou por motivo outro, não perde o vínculo com a família, apenas antecipa sua maioridade, não mais sendo submisso ao poder paternal, hoje denominado poder familiar (artigo 5º, CC/02) [6].
Percebe-se ainda que a nomenclatura de filhos ilegítimos, não mais vigora perante o Código Civil de 2002, bem como a exclusão dos direitos pessoais e reais, pois, à luz do art. 1596 do código retro mencionado, os filhos havidos ou não da relação matrimonial ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações.
Em referência à propriedade privada, atualmente ela encontra-se amplamente normatizada à luz dos artigos 1238 a 1259 do CC/02 quanto às formas de aquisição da propriedade imóvel, a exemplo da usucapião, aquisição por registro de título, dentre outras. A propriedade é elevada à garantia de Direito Constitucional conforme o artigo 5º, XXII e XXIII CF/88 [7].
Pelos artigos 1260 a 1274 do Código Civil, há as formas de aquisição da propriedade móvel, a saber: usucapião, ocupação, achado, tradição, etc.; É previsto ainda as causas que autorizam a perda da propriedade conforme art. 1275 e 1276 do código supra (alienação, renúncia, abandono, desapropriação, perecimento); não escapando a tal Código, a previsão de limites de domínio e passagem forçada, este sob o manto do art. 1285 [8] e aquele perante o art. 1297, CC/02 [9].
Assim, estes institutos de origem familiar não mais se encontram vinculados ao culto do fogo sagrado, sendo inclusive o Poder Judiciário inerte e competente para dirimir conflitos, não mais ex-ofício como outrora, tudo para a conservação destas crenças, pois o atual Estado Brasileiro é laico, artigo 5º, VI, CF/88 [10].
NOTAS CONCLUSIVAS
Por fim, é reconhecido o caráter essencial do culto doméstico à unificação e estrutura da célula familiar, pois, a rigidez dos hábitos oriundos do poder patriarcal serviu de pilar à formação da conduta humana em prol da moral e do cumprimento dos costumes, distinguindo classes sociais por meio da gens.
Os séculos deram aos hábitos familiares, mais intensificados com o culto aos mortos, condições de formarem normas, em algumas regiões Commum Law, noutras Civil Law, mas, sempre com o intuito de reger o comportamento humano e instituir punições com fins preventivos ou repressivos, necessários à convivência em grupo.
O poder patriarcal tornou-se familiar e os homens e mulheres comungam ideais e direitos igualitariamente, sendo que diversos institutos do Direito que na família antiga se estruturaram, hoje ganharam corpo e regularizam a sociedade em prol do bem comum e da consolidação do Estado Democrático de Direito.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANGHER, Anne Joyce. Organização. Vademecum Acadêmico de Direito. 8ª ed. (Coleção de Leis Rideel). – São Paulo: Rideel, 2009.
COULANGES, Fustel de. A Cidade Antiga. - São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. V. V, Direito de Família. 20. ed. -São Paulo: Saraiva, 2005.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito da Família, v. 2, 13ª ed. Rev. – São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28ª ed. – São Paulo: Malheeiros Editores, 2007.
[1] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
[2] Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.
[3] Art. 1.806. A renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial.
[4] Art. 1.521. Não podem casar:
I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
(...)
[5] Art. 1.523. Não devem casar:
I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros;
II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal;
III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal;
IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas.
[6] Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:
(...)
II - pelo casamento;
(...)
[7] Artigo 5º (...)
XXII - é garantido o direito de propriedade;
[8] Art. 1.285. O dono do prédio que não tiver acesso a via pública, nascente ou porto, pode, mediante pagamento de indenização cabal, constranger o vizinho a lhe dar passagem, cujo rumo será judicialmente fixado, se necessário.
[9] Art. 1.297. O proprietário tem direito a cercar, murar, valar ou tapar de qualquer modo o seu prédio, urbano ou rural, e pode constranger o seu confinante a proceder com ele à demarcação entre os dois prédios, a aviventar rumos apagados e a renovar marcos destruídos ou arruinados, repartindo-se proporcionalmente entre os interessados as respectivas despesas.
[10] Art. 5º (...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
Acadêmico de Direito no X período da Faculdade AGES, Paripiranga - BA
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, Marcos Aurélio Carregosa. O Legado da Família Antiga ao Direito Constitucional e Civil Pátrios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 abr 2010, 01:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/19607/o-legado-da-familia-antiga-ao-direito-constitucional-e-civil-patrios. Acesso em: 23 dez 2024.
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