A dignidade da pessoa humana, de acordo com o artigo 1º, III da Constituição Federal, pode ser definida como um conceito jurídico fundamental e decorre de longa evolução histórica que culminou com a sua consagração no século XX, em especial após Holocausto da segunda guerra mundial, sendo importante ressaltar, ainda, que este conceito está inserido nos chamados “direitos ocidentais” [1].
Além disso, como premissa, pode-se afirmar que não existem direitos humanos fundamentais absolutos e que, em decorrência dessa limitabilidade dos direitos fundamentais, havendo um colisão de direitos, um (ou alguns) deles será mitigado através das regras de hermenêutica constitucional, bem como ante a aplicação do princípio da cedência recíproca (também chamado de concordância prática ou harmonização). Resta verificar se o sobreprincípio constitucional da dignidade da pessoa humana poderá ser interpretado da mesma forma.
Dentre os principais doutrinadores que abordam o tema, encontra-se o alemão Robert Alexy, para o qual o princípio da dignidade da pessoa humana comporta graus de realização que, sob determinadas condições e com um grau de certeza, poderá preceder a qualquer outro princípio, mas isto não lhe confere caráter absoluto, uma vez que, ausentes tais condições, ele seria relativizado, tendo em vista que o referido princípio resulta da fusão de duas normas: uma regra e um princípio.
Como princípio, a dignidade da pessoa humana possuiria caráter absoluto e, como regra, poderia ser relativizada, cabendo tal discriminação ao operador do direito. “Por isso, conclui Alexy, pode-se dizer que a norma da dignidade da pessoa não é um principio absoluto e que a impressão de que o seja resulta do fato de que esse valor se expressa em duas normas — uma regra e um princípio —, assim como da existência de uma serie de condições sob as quais, com alto grau de certeza, ele precede a todos os demais”[2].
Mas tal ensinamento não põe um ponto final à questão, uma vez que, para aquele autor, o princípio da dignidade da pessoa humana somente estaria relativizado enquanto regra, permanecendo intocado enquanto princípio propriamente dito, enquanto que a questão aqui abordada vai além, pois resta esclarecer se o referido princípio, em sua condição metajurídica ou pré-constitucional, pode ser relativizado.
Para esclarecer tal lacuna, pode-se recorrer aos ensinamentos do ilustre Ingo Wolfgang Scarlet, citado por Gilmar Mendes, que assim leciona:
(...) sendo todas as pessoas iguais em dignidade (embora não se portem de modo igualmente digno) e existindo, portanto, um dever de respeito recíproco (de cada pessoa) da dignidade alheia (para além do dever de respeito e proteção do Poder Público e da sociedade), poder-se-á imaginar a hipótese de um conflito direto entre as dignidades de pessoas diversas, impondo - também nestes casos - o estabelecimento de uma concordância prática (ou harmonização) que necessariamente implica a hierarquização ou a ponderação dos bens em rota conflitiva, neste caso, do mesmo bem (dignidade) concretamente atribuído a dois ou mais titulares.[3]
E Mendes finaliza: “Numa palavra, se bem entendemos, a dignidade da pessoa humana, porque sobreposta a todos os bens, valores ou princípios constitucionais, em nenhuma hipótese é suscetível de confrontar-se com eles, mas tão-somente consigo mesma, naqueles casos-limite em que dois ou mais indivíduos - ontologicamente dotados de igual dignidade - entrem em conflitos capazes de causar lesões mútuas a esse valor supremo” [4].
Destaque-se o caso do feto anencéfalo, no qual o STF, em julgamento histórico[5], possibilitou a prática do aborto por vários argumentos[6], mas especialmente devido ao princípio da dignidade da pessoa humana, relativamente à gestante, uma vez que lhe seria imposto sofrimento inútil. Observe-se, in casu, a relativização do princípio em tela em relação ao feto[7].
Cite-se, ainda, a impossibilidade do coercitivo exame de DNA na investigação de paternidade, já decidida pelo STF[8] que, em decorrência do princípio da dignidade da pessoa humana, o réu não poderia ser conduzido “debaixo de vara” à coleta de material para o referido exame. Com a decisão, o STF relativizou, mais uma vez, a aplicação do referido princípio em relação ao autor (suposto filho), o qual ficou submetido à angustia de não ter certeza da identidade de seu genitor, o que mitiga o princípio da dignidade da pessoa humana.
Com isso, verifica-se que o princípio da dignidade da pessoa humana somente perderá o seu caráter absoluto quando confrontado consigo mesmo, ou seja, quando, em determinado caso concreto, dois sujeitos de direitos estejam igualmente amparados pelo referido sobreprincípio, será necessária a intervenção jurisdicional para relativizar a aplicação do princípio a um determinado sujeito ou a ambos, de forma a se harmonizar com o ordenamento jurídico. Tal hipótese pode ser melhor entendida quando analisada em caso concreto, a exemplo do ocorrido em alguns julgamentos da nossa Corte Suprema, conforme a seguir demonstrado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2ª. ed. rev. atual. - São Paulo: Editora Saraiva, 2008.
NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Notas para um ensaio sobre a dignidade da pessoa humana – Conceito Fundamental da Ciência Jurídica. Revista Eletrônica de Direito do Estado, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, nº 8, 2006. Disponível na internet: www.direitodoestado.com.br.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Jurisprudência. Disponível em: http://www.stf.jus.br.
BARROSO, Luiz Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (o triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil). Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n. 9, março/abril/maio 2007. Disponível na Internet: http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp.
SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas considerações em torno do conteúdo, eficácia e efetividade do direito à saúde na constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, Centro de Atualização Jurídica (CAJ), n. 10, janeiro/2002. Disponível na Internet: http://www.direitopublico.com.br.
[1] JERÔNIMO, Patrícia. Os Direitos do Homem à escala das civilizações – Proposta de análise a a partir do confronto dos modelos ocidental e islâmico. Coimbra: Almedina. 2001. P. 187, apud NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. Notas para um ensaio sobre a dignidade da pessoa humana – Conceito Fundamental da Ciência Jurídica.
[2] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales, Madrid: Centro de Estudios Consritucionales. 1993, p. 105-109, apud MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2ª. ed. rev. atual. - São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p 151.
[3] SCARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livr. do Advogado Ed., 2004, especialmente as p. 124-141, apud MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2ª. ed. rev. atual. - São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p 151.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2ª. ed. rev. atual. - São Paulo: Editora Saraiva, 2008, p 151.
[5] Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, Rel. Min. Marco Aurélio.
[6] Dentre eles a atipicidade do fato tendo em vista que o feto anencefálico não chega a ser vida e a exclusão da punibilidade, pois o Código Penal não pune o aborto nos casos que haja risco à vida da mãe.
[7] Uma vez que o nascituro é sujeito de direitos (devendo ser garantida a sua dignidade enquanto pessoa humana), apesar da condição resolutiva que lhe é imposta que é o nascimento com vida.
[8] HC 71373 / RS. Relator(a): Min. FRANCISCO REZEK. Relator(a) p/ Acórdão: Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento: 10/11/1994. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Publicação DJ 22-11-1996.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Sergipe; Servidor do Ministério Público Federal em Sergipe. Pós-graduando em Direito Público pela Universidade Anhanguera-UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DIAS, Aldo Luiz de Menezes. Relativização do princípio da dignidade da pessoa humana Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 jul 2010, 01:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/20455/relativizacao-do-principio-da-dignidade-da-pessoa-humana. Acesso em: 23 dez 2024.
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