Sumário: 1 Introdução – 2 Antecedentes Históricos– 3Abolicionismo: conceito, defensores, matrizes ideológicas e razões– 4 Críticas ao Abolicionismo – 5 - Terceira Velocidade do Direito Penal: conceito, características e diferenças com o Direito Penal do Cidadão. Quem são os inimigos?– 6– Críticas ao Direito Penal do Inimigo 7 Conclusões – Referências.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo consiste em uma breve exposição de duas vertentes de pensamentos relevantes para o Direito Penal contemporâneo, a saber: o abolicionismo e a terceira velocidade do direito penal. Ambas as correntes se aproximam e contrapõem-se justamente por serem extremas.
Primeiramente, apresentam-se os antecedentes históricos de ambas as vertentes de pensamentos. Posteriormente, há a abordagem de cada uma delas acerca de suas principais características. Por último, estão presentes as possíveis conclusões, tendo em vista as posições adotadas de uma e outra correntes.
2 ANTECEDENTES HISTÓRICOS
Inicialmente, cabe ressaltar que é histórica a antítese envolvendo a liberdade do homem e o poder estatal.
No que tange ao abolicionismo, insta mencionar que, na origem, enquanto movimento social, o termo “abolição” tem sido utilizado desde o século XVIII, quando muitos revolucionários passaram a lutar pela pena de prisão como um movimento humanitário, em substituição às penas de açoites, trabalhos forçados, mutilações e à pena de morte.
Nesta linha de preleção, não se pode olvidar da obra “Dos Delitos e Das Penas”, de Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria, grande marco para todo o movimento revolucionário da época, como também para o movimento abolicionista contemporâneo.
O autor contrapunha-se à legislação penal de seu tempo, criticando, por exemplo, os julgamentos secretos, a tortura como um meio de se obter a confissão do crime, e defendendo a necessária proporcionalidade das penas em relação aos delitos, a igualdade perante a lei dos criminosos que cometem a mesma infração penal, etc.
Ademais, podem ser considerados movimentos precursores do abolicionismo toda a luta pela abolição da escravatura surgida na Europa e na América, como de são exemplos o American Abolition Movement, de 1783 a 1888, e o German Abolition Movement , de 1875 a 1927 (SHECARIA, 2004, p. 345).
Neste sentido, vale citar os significados do substantivo “abolição”:
ação ou efeito de abolir 1 total extinção; anulação, supressão 1.1 abolição da escravatura 2 JUR ant. direito atribuído a um soberano de perdoar condenados 3 JUR revogação de uma instituição ou praxe 4 JUR revogação de direito. (HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello, 2001, p. 22).
Verifica-se que a palavra “abolição” está ligada à libertação, quer seja dos escravos, quer seja dos condenados pelo sistema penal.
Destaque-se que as ideias abolicionistas penais surgiram a partir do término da Segunda Guerra Mundial e, consequentemente, dos regimes fascista e nazista, já que o Direito Penal, principalmente na Itália e na Alemanha, reestruturou-se em bases humanistas relegadas em tempos de guerra.
Em 1945, foi fundado, em Gênova, o Centro de Estudos de Defesa Social, por Filipo Gramatica, consistindo num espaço para a reunião de ideais humanistas e democráticos relacionados ao pensamento e à prática penal. Seus pensadores seguiam diretrizes comuns, tais como a convicção de que deveria haver uma reforma no sistema penal, o humanismo, a defesa dos direitos humanos e o fim das penas de caráter retributivo (ANGOTTI, 2009, p. 250).
No referente a este tema, Luiz Regis Prado (2007, p. 90) aduz sobre o objetivo das ideias propugnadas por Gramatica:
o objetivo é uma radical supressão dos conceitos de crime, responsabilidade e pena. Dessa forma, propõe-se a substituição da responsabilidade penal, fundada no delito, pela anti-socialidade, fundada em dados subjetivos do autor; substituir a infração, considerada como fato, pelo índice de anti-socialidade e, finalmente, substituir a pena por medidas sociais.
Além da Nova Defesa Social, pode-se apontar como ponto de partida do movimento abolicionista a Criminologia Crítica, também denominada por muitos de radical, ou ainda de “nova criminologia”, a qual tem sua origem nos anos 70 do século XX. Ela surge quase simultaneamente nos Estados Unidos e na Inglaterra, propagando-se por vários outros países europeus.
Sérgio Salomão Shecaria (2004, p. 330-332) preleciona acerca da Criminologia Crítica nos seguintes termos:
As bases desta linha de pensamento se materializam na crítica acerba às posturas tradicionais da criminologia do consenso, incapazes de compreender a totalidade do fenômeno criminal. A premissa de pensamento estava inescondivelmente ancorada no pensamento marxista, pois sustentava ser o delito um fenômeno dependente do modo de produção capitalista (...) a criminologia crítica é a crítica final de todas as outras correntes criminológicas, fundamentalmente por recusar assumir este papel tecnocrático de gerenciador do sistema, pois considera o problema criminal insolúvel dentro dos marcos de uma sociedade capitalista.
Por outro lado, o Direito Penal do Inimigo tem sua origem nos crimes supostamente praticados contra o Estado e remonta ao antigo Direito Penal grego, destacando-se, nessa cultura, o julgamento de Sócrates.
Da Grécia para Roma e, depois, introduzido nos ordenamentos jurídicos da Europa continental, a noção de crime de lesa-majestade retorna ao seu ápice com os juristas da Revolução Francesa, sendo marco importante a lei dos suspeitos e a lei do 22 de prairial, através da qual os jacobinos construíram e reabilitaram a figura de um tipo penal considerado crime contra a segurança do Estado. Posteriormente, coube a Napoleão introduzi-lo no Código Penal francês de 1810 (DAL RI Jr, 2006, p. 14).
A teoria dos sistemas de Niklas Luhman é referência teórica pra a concepção da teoria do Direito Penal do Inimigo. Entendendo-se o direito como sistema dinâmico, cabe-lhe a tarefa de garantir ao cidadão o mínimo de segurança, estabilidade e funcionalidade e, no campo do Direito Penal, isso se materializa através da imposição de penas para as condutas à margem do sistema da normalidade ou do “Direito Penal do Cidadão”.
Ressalte-se que a teoria do Direito Penal do Inimigo foi desenvolvida por Günther Jakobs, professor catedrático de Direito Penal e Filosofia do Direito na Universidade de Bonn, na Alemanha. Ele idealizou o funcionalismo sistêmico com base na Teoria dos Sistemas de Luhmann.
Na década de 1980, Jakobs teceu os primeiros lineamentos desta última teoria sob análise. A noção do Direito Penal do Inimigo foi tratada de uma forma mais restrita na segunda fase, a partir de 1999, mais voltada para os delitos graves.
Posteriormente, passou a existir um contexto social conturbado, com o aparecimento de novos e eficientes instrumentos utilizados pelos criminosos da contemporaneidade.
Nesse ambiente, há um recrudescimento dos crimes de terror e os praticados via internet, dentre outros, o que leva à assunção, em 2003, por definitivo, de Jakobs, da necessidade de se conceber e dar eficácia a uma legislação que contemple o Direito Penal do Inimigo.
Em sua obra “Direito Penal do Inimigo”, Jakobs profere que não segue os entendimentos de Fichte e de Rousseau, “pois na separação radical entre o cidadão e seu Direito, por um lado, e o injusto do inimigo, por outro, é demasiadamente abstrata” (2009, p.25).
Para o defensor do Direito Penal do Inimigo, em princípio, um ordenamento jurídico deve manter dentro do Direito o criminoso também, pois ele tem o direito a voltar a se ajustar com a sociedade (mantendo seu status de pessoa), como também, ele possui deveres cujo pressuposto é a personalidade (ibidem).
Para Jakobs, Hobbes tinha noção desta situação e argumentava, diferentemente de Rousseau e Fichte, que o cidadão não pode eliminar, por si mesmo, seu status. No entanto, isso não se dá no caso de uma rebelião, ou seja, de uma “alta traição”. Neste caso, os que incorrem nestes atos são considerados inimigos (JAKOBS, 2009, p.26).
Vale aduzir que, na posição de Kant, não se trata como pessoa quem ameaça constantemente, ou seja, quem não se deixa obrigar a entrar em um estado cidadão (idem,p. 28).
Dessarte, cumpre mencionar que, para Rousseau e Fichte, todo delinqüente é, de per si, inimigo. Para Hobbes (com o qual concorda Jakobs), o réu de alta traição assim o é. Já para Kant, inimigo é aquele que permanentemente ameaça (ibidem, p. 24-29).
3 ABOLICIONISMO: CONCEITO, DEFENSORES, MATRIZES IDEOLÓGICAS E RAZÕES.
Inicialmente, cumpre destacar que o abolicionismo penal é um movimento de política criminal, que propugna pelo fim da sociedade baseada no castigo e pela possibilidade de um justo sistema de solução de conflitos alheio à justiça criminal. Seus defensores buscam a ruptura com os universalismos, a solução de conflitos em diferentes esferas, a consideração da vítima, etc.
Edson Passeti (2004, p. 16) ensina que o âmbito de incidência do abolicionismo não é tão simples e restrito, conforme vejamos:
O abolicionismo penal é mais do que abolição do direito penal ou da prisão moderna. Ele problematiza a sociabilidade autoritária que funda e atravessa o Ocidente como pedagogia do castigo em que, sob diversas conformações históricas, atribui-se a um superior o mando sobre o outro. Abala o domínio no qual a criança e o jovem encontraram-se confinados à condição de assujeitamento imposto pela obediência às hierárquicas regras de educação na infância e na adolescência e ao modelo do adulto legitimador de mentiras necessárias.
Impende ressaltar que o abolicionismo não pode ser tratado como um pensamento único, já que há diversos métodos, pressupostos filosóficos, bem como diferentes táticas para alcançar os objetivos. Na verdade, o abolicionismo penal advém de diferentes vertentes do pensamento.
Cabe destacar a metáfora de DE FOLTER (1989, p.58) a este respeito:
“Podemos dizer que o abolicionismo é a bandeira sob a qual navegam barcos de distintos tamanhos transportando distintas quantidades de explosivos. Enquanto a maneira em que deverão explodir não há uma única idéia”.
“Neste sentido, deve ser assinalada a preferência marxista de Thomas Mathiesen, a fenomenológica de Louk Hulsman, a estruturalista de Michel Foucault e, poderia ainda ser acrescentada, a fenomenológica-historicista de Nils Christie” (ZAFFARONI, 2001, p.98).
Destarte, imprescindível se torna a breve análise dos diversos pensamentos de alguns abolicionistas.
Louk Hulsman considerou o sistema penal como um problema em si mesmo, tornando-se preferível a sua total abolição como sistema repressivo. O autor posiciona-se a favor da substituição direta do sistema penal por instâncias intermediárias ou individualizadas de solução de conflitos que atendam às necessidades reais das pessoas envolvidas (ZAFFARONI, 2001, p.99).
Cabe realçar que Hulsman propõe uma nova linguagem que suplante as categorias de “crime” e de “criminalidade”.
Em sua entrevista para o IBCCRIM, Hulsman afirma ser necessária a distinção analítica entre abolicionismo acadêmico e abolicionismo institucional. Segundo ele, a abolição institucional é o movimento social que deseja se livrar da justiça criminal, da mesma forma que, no passado, as pessoas quiseram se livrar da escravidão e, hoje em dia, querem se livrar de práticas que consideram discriminatórias quanto à raça e ao gênero (1996, p.13)
Para o referido abolicionista, à abolição institucional pertencem também as mudanças mais pessoais na percepção, na atitude e no comportamento daqueles que estão individualmente ou coletivamente empenhados nessas transformações (idem).
Já a abolição acadêmica é tratada por Hulsman como sendo a abolição de determinadas formas de olhar o crime e a justiça criminal. A universidade é tida como uma das principais organizações que sustentam a justiça criminal. Cuida-se da abolição da linguagem prévia sobre justiça criminal e a substituição desta linguagem por uma outra (ibidem,p. 14).
Doutra banda, Mathiesen, segundo profere Zaffaroni (2001, p.99), pode ser considerado o estrategista do abolicionismo, impressão deixada na sua obra de 1974. Ele vincula a existência do sistema penal à estrutura produtiva capitalista. Sua vertente de pensamento parece buscar não apenas a abolição do sistema penal, bem como a abolição de todas as estruturas repressivas da sociedade.
Mathiesen estabelece que o poder determina o que está “dentro” do sistema e o que está “fora” dele, de maneira a colocar o que está de “fora” para dentro, por meio do uso de táticas de “retrocessos parciais” (idem,p. 100).
Enquanto o funcionalismo descreve detalhadamente a forma de envolver o de “fora” e colocá-lo “dentro”, fazendo disso a principal finalidade do sistema, Mathiesen elabora a estratégia contrária, qual seja, a do caminho aberto que impeça o poder de “fechar” o de “fora” (ibidem).
Dessa forma, percebe-se que Mathiesen já combatia as ideias do que podemos denominar de terceira velocidade do direito penal ou teoria do Direito Penal do Inimigo, pois esta doutrina prega a existência de dois sistemas penais distintos, quais sejam, o Direito Penal do Cidadão e o Direito Penal do Inimigo, conforme veremos neste trabalho.
Nils Christie, abolicionista minimalista, reconhece em sua entrevista para o IBCCRIM, que, em certas hipóteses, é necessária a intervenção da força do estado, mas que estas hipóteses devem ser restringidas ao máximo, uma vez que as prisões possuem inúmeras desvantagens (1998, p.13).
Segundo Christie, seu interesse pessoal é o de propiciar o desenvolvimento de um senso crítico em relação ao sistema penal, para que não se torne opressivo (idem).
Vale transcrever suas palavras acerca da concepção de crime como resultante de uma decisão humana modificável:
Atos não são, eles se tornam alguma coisa. O mesmo acontece com o crime. O crime não existe. É criado. Primeiro, existem atos. Segue-se depois um longo processo de atribuir significado a esses atos. A distância social tem uma importância particular. A distância aumenta a tendência de atribuir a certos atos o significado de crimes, e às pessoas o simples atributo de criminosas (CHRISTIE, 1998,p.).
Por fim, cabe ressaltar que os abolicionistas, em razão da compatibilidade de ideias, consideram Michel Foucault um abolicionista, pois pregou a tese da consideração do sujeito cognoscente como um produto do poder (ZAFFARONI, 2001, p.101).
Com efeito, pode-se resumir em três as matrizes ideológicas do abolicionismo: a anarquista, a marxista, e a liberal/cristã (SHECARIA, 2004, p.346).
De acordo com a visão anarquista, as principais preocupações dizem respeito à perda da liberdade e autonomia do indivíduo por obra do Estado. Para esta linha de pensamento, a sociedade pode ser mais fraterna e solidária, permitindo-se a desnecessidade do sistema punitivo.
O viés marxista do abolicionismo entende o sistema penal como instrumento repressor e como modo de ocultar os conflitos sociais.
Já a matriz liberal/cristã trata do conceito de solidariedade orgânica. “Em oposição ao sistema anômico, construído pelas sociedades repressivas, seria criado um sistema eunômico, em que os homens se ocupariam de seus próprios conflitos” (SHECARIA, 2004, p. 347).
Saliente-se que os abolicionistas elencam inúmeras razões para abolir o sistema penal. Podemos citar as principais.
A primeira delas é a de que nós já vivemos numa sociedade sem direito penal. Como sabemos, a cifra negra é muito alta, enquanto a criminalidade efetiva é um evento excepcional.
A segunda razão apontada refere-se ao fato de o sistema ser anômico. Ou seja, as normas não cumprem as funções esperadas. As diversas novas leis penais, que surgem com o alarmado intuito de evitar o cometimento de novos crimes não concretizam seu objetivo. Dessa forma, trata-se de um direito penal simbólico.
Uma terceira razão disposta pelos defensores do abolicionismo penal é a de que o sistema punitivo é seletivo e estigmatizante. Ele cria e reforça as várias desigualdades. “A clientela habitual do sistema penal é formada por aquelas pessoas que têm problema com a lei, não por praticarem mais crimes que os outros, mas porque o controle social formal é discriminatório” (SHECARIA, 2004, p. 349).
Outrossim, o sistema, segundo o movimento abolicionista, é burocrata, bem como, parte de uma falsa concepção da sociedade.
Na ideologia iluminista, o sistema penal vê a sociedade falsamente, concebida como uma totalidade consensual, em que o ato desviado é uma exceção. Desde os pensamentos mais recentes, a partir de Ralf Darhrendorf, não mais a sociedade é encarada como um todo consensual, mas como um conflito permanente entre as pessoas (idem, p.350).
Outro motivo é o de que a vítima não interessa para o sistema penal. Para os abolicionistas, a vítima acaba sendo vítima também do sistema punitivo, e não apenas do agente criminoso.
Por fim, os defensores da corrente sob análise alegam que o sistema penal consubstancia-se numa máquina para produzir dor inutilmente. A execução da pena produz sofrimento, dor moral e física, tanto para o condenado, quanto para sua família.
4 CRÍTICAS AO ABOLICIONISMO
As ideias abolicionistas, por seu extremismo em defender o fim do sistema penal penitenciário e das instituições encarregadas da imposição de pena de qualquer natureza, são alvo constantes de críticas, destacando-se os teóricos do garantismo penal, a exemplo de Luigi Ferrajoli.
Outrossim, há inúmeras críticas dos mais conservadores, que defendem o sistema penal e penitenciário, apenas propondo reformas estruturais que venham a possibilitar a regeneração do preso e sua adaptação ao meio social após o cumprimento da pena.
Muitos pensadores do Direito Penal apontam o Abolicionismo como um otimismo ingênuo em relação aos seres humanos. Ferrajoli, por exemplo, considera o abolicionismo uma “utopia regressiva”, com base na ilusão de uma “sociedade boa” ou de um “estado bom”.
Ressalte-se que Luigi Ferrajoli, autor da obra “Diritto e Ragione”, de 1989, sustenta a necessidade de um direito penal positivo, a partir do qual se tomaria como referência para a punição do ilícito penal os chamados direitos fundamentais, tendo como centro de interesse, no caso brasileiro, a dignidade da pessoa humana.
Torna-se imperioso transcrever uma das críticas expendidas pelo garantista ao movimento abolicionista (FERRAJOLI, 2006, p.234):
Moralismo utopista e nostalgia regressiva por modelos arcaicos e ‘tradicionais’ de comunidades sem direito, constituem, por derradeiro, também os traços característicos do atual abolicionismo penal, pouco original em relação à tradição anárquica e holística. Abolicionistas como LOUK HULSMAN, HENRY BIANCHI e NILS CHRISTIE repropõem as mesmas teses do abolicionismo anárquico do século XIX, oscilando – na configuração das alternativas ao direito penal, que, por si só constitui uma técnica de regulamentação e de delimitação da violência punitiva – entre improváveis projetos de microcosmos sociais fundados na solidariedade e na irmandade, vagos objetivos de ‘reapropriação social’ dos conflitos entre ofensores e vítimas e métodos primitivos de composição patrimonial das ofensas, com a agravante, se comparado ao abolicionismo clássico, de possuir uma maior incoerência entre pars destruens e pars construens do projeto sustentado e de uma maior e imperdoável desatenção às tristes experiências, inclusive contemporâneas, de crise e desatualização do direito penal.
Não obstante todas as críticas dispensadas ao abolicionismo, relevante é a sua reflexão. Inclusive, vale destacar que o movimento abolicionista e a teoria garantista não possuem ideias tão contraditórias e excludentes entre si. Ao contrário, alguns pensamentos minimalistas e abolicionistas podem ser aplicados na prática cotidiana e na militância societária, a fim de conter a violência estatal e de proteger os direitos humanos.
5 TERCEIRA VELOCIDADE DO DIREITO PENAL: CONCEITO, CARACTERÍSTICAS E DIFERENÇAS COM O DIREITO PENAL DO CIDADÃO. QUEM SÃO OS INIMIGOS?
A princípio, cabe mencionar que Jesús-María Silva Sánchez, professor catedrático da Universidade Pompeu Fabra, apresenta a teoria das velocidades do Direito Penal.
O Direito Penal de primeira velocidade é o modelo que se utiliza preferencialmente da pena privativa de liberdade, apesar de estar fundado em garantias individuais fundamentais e irrenunciáveis. Já o Direito Penal de segunda velocidade possui duas tendências: a flexibilização proporcional de determinadas garantias penais e processuais, aliada à adoção das medidas alternativas à prisão. Um exemplo de aplicação desta última velocidade do Direito Penal é a Lei 9099/95.
Por outro lado, o Direito Penal de terceira velocidade utiliza-se da pena privativa de liberdade (tal como o Direito Penal de primeira velocidade), mas permite a flexibilização de garantias materiais e processuais (como ocorre no Direito Penal de segunda velocidade). Esta última velocidade do Direito Penal corresponde ao Direito Penal do Inimigo.
Günther Jakobs, tido como um dos discípulos de Welzel, foi o criador do funcionalismo sistêmico, sustentando que o Direito Penal possui a função essencial de proteger a norma, e apenas de forma indireta tutela os bens jurídicos mais fundamentais.
Jakobs, no ano de 1985, num seminário realizado em Frankfurt, cunhou o conceito de Direito Penal do Inimigo com propósitos apenas críticos. Para ele, o Direito Penal do Inimigo vigia tão somente em caráter excepcional, diferenciando-se o Direito Penal do Inimigo do Direito Penal do Cidadão.
Inclusive, nesta época, Jakobs declarou sua esperança em que o direito constitucional avançasse a ponto de tornar o Direito Penal do Inimigo impossível (GRECO, 2005, P. 84).
Recentemente, Jakobs repetiu a antiga exigência de que Direito Penal do Inimigo e Direito Penal do Cidadão sejam separados, já que, deste modo, evita-se que o Direito Penal do Inimigo penetre no Direito Penal do Cidadão.
No entanto, Jakobs mudou o seu discurso, pois de crítico do Direito Penal do Inimigo, passou a ser seu grande defensor, principalmente com a obra “Derecho Penal Del Enemigo”, de 2003. Os dispositivos do ordenamento jurídico vigentes não são mais interpretados levando em consideração a sua compatibilidade com o modelo do direito penal dos cidadãos. O direito positivo serve apenas para fins ilustrativos.
Jakobs passou a entender que o Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal do Cidadão têm seu âmbito legítimo, e não apenas que aquele só é aplicável em casos de excepcional emergência.
No entanto, há quem discuta a mudança do posicionamento de Jakobs:
Pode-se discutir se a virada na posição de Jakobs em relação ao direito penal do inimigo é tão radical como em parte se assume. Porque Jakobs, ainda hoje, insiste em que o direito penal alemão atual, com o estabelecimento de determinados tipos penais, trata o cidadão injustamente como inimigo; a categoria do direito penal do inimigo mantém assim, ainda que associada ao epíteto ‘supérfluo’, um potencial crítico (NEUMANN, 2007, p.158).
Vale ressaltar que não é fácil a tarefa de se conceituar o Direito Penal do Inimigo. Do ponto de vista semântico, “o direito penal do inimigo é o tipo penal ideal de um direito penal que não respeita o autor como pessoa, mas que almeja neutralizá-lo como fonte de perigo” (GRECO, 2005, p.93).
O significado pragmático de Direito Penal do Inimigo não é tão simples, pois há, ao menos, três finalidades com este conceito. Para cada uma delas, Luís Greco (2005, p.93) atribuiu um conceito próprio, senão vejamos:
É primeiramente possível ver no conceito de ‘direito penal do inimigo’ nada mais do que um instrumento analítico para descrever com mais exatidão o direito positivo. Algumas normas de nosso ordenamento jurídico seriam então caracterizadas como direito penal do inimigo, o que não significaria serem elas boas ou ruins por causa disso. Uma tal utilização seria própria de um conceito descritivo de direito penal do inimigo.Em segundo lugar, pode-se utilizar o termo ‘direito penal do inimigo’ para fazer mais do que meramente caracterizar determinados dispositivos. Ao considerar uma certa regra de direito penal do inimigo, pode-se estar almejando estigmatizá-la como especialmente anti-liberal e contrária ao estado de direito, apontando, assim, para a necessidade de sua reforma. Essa segunda possibilidade de emprego da palavra direito penal do inimigo será aqui chamada de crítico- denunciadora. Existe, porém,uma terceira maneira de trabalhar com o conceito “direito penal do inimigo”, que é a de formular uma teoria de seus pressupostos de legitimidade e afirmar que estes estariam predominantemente satisfeitos na realidade(...)Neste último caso, ter-se-ia um conceito legitimador-afirmativo do direito penal do inimigo (grifo nosso).
Portanto, para o idealizador desta teoria, há dois sistemas que devem ser aplicados, um voltado para o cidadão (pessoa que delinque), e o outro para o inimigo (indivíduo que apresenta perigo para o próprio Estado):
o Direito Penal conhece dois polos [sic] ou tendências em suas regulações. Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estágio prévio, a quem se combate por sua periculosidade. (JAKOBS; MELIÁ, 2009, p. 36).
Destarte, o jurista alemão sustenta que o inimigo não é pessoa, diferentemente do cidadão, já que “todo aquele que é fiel ao ordenamento jurídico com certa confiabilidade tem direito a ser tratado como pessoa, e quem não aplicar esta disposição, será heteroadministrado, o que significa que não será tratado como pessoa” (idem, p. 58).
Para Jakobs, “só é pessoa quem oferece uma garantia cognitiva suficiente de um comportamento pessoal, e isso como conseqüência da ideia de que toda normatividade necessita de uma cimentação cognitiva para ser real” (ibidem, p. 43).
Não havendo esta garantia ou sendo ela expressamente negada, o Direito Penal passa a ser uma reação contra o inimigo, e não mais da sociedade em face do crime cometido por um de seus membros.
Pode-se caracterizar o Direito Penal do Inimigo, primeiramente, pelo fato de que a punição se efetiva por meio de medida de segurança, e não com pena. Esta última só é empregada no Direito Penal do Cidadão.
Uma segunda característica que pode ser apontada refere-se ao elemento subjetivo do Direito Penal do Inimigo, que é a periculosidade, diferentemente do Direito Penal do Cidadão, para o qual se pune de acordo com a culpabilidade.
Insta esclarecer que o Direito Penal do Inimigo é prospectivo, isto é, as medidas contra o inimigo se aplicam de acordo com o que ele representa de perigo futuro e, assim, há uma antecipação da penalização de conduta ainda não realizada. Punem-se os atos preparatórios. Já o Direito Penal do Cidadão é retrospectivo, uma vez que se tem em vista o passado, o que o cidadão fez, bem como nele não ocorre, em regra, a antecipação da tutela penal.
Outrossim, o Direito Penal do Inimigo caracteriza-se pela desproporcionalidade das penas, como também pelas legislações, denominadas de “leis de luta ou de combate” (DE MORAES, 2006, p.168).
Também identifica o Direito Penal do Inimigo a restrição de garantias penais e processuais, bem como determinadas regulações de execução penal, a exemplo do regime disciplinar diferenciado adotado no Brasil.
Torna-se imperioso citar as bandeiras do Direito Penal do Inimigo, traçadas por Luiz Flávio Gomes ( 2004, p.2-3):
(a) flexibilização do princípio da legalidade (descrição vaga dos crimes e das penas); (b) inobservância de princípios básicos como o da ofensividade, da exteriorização do fato, da imputação objetiva etc.; (c) aumento desproporcional de penas; (d) criação artificial de novos delitos (delitos sem bens jurídicos definidos); (e) endurecimento sem causa da execução penal; (f) exagerada antecipação da tutela penal; (g) corte de direitos e garantias processuais fundamentais; (h) concessão de prêmios ao inimigo que se mostra fiel ao Direito (delação premiada, colaboração premiada etc.); (i) flexibilização da prisão em flagrante (ação controlada); (j) infiltração de agentes policiais; (l) uso e abuso de medidas preventivas ou cautelares (interceptação telefônica sem justa causa, quebra de sigilos não fundamentados ou contra a lei); (m) medidas penais dirigidas contra quem exerce atividade lícita (bancos, advogados, joalheiros, leiloeiros etc.).
Diante de todo o exposto, surge a indagação: quem são os “inimigos” da sociedade?
Para o jurista alemão, inimigo é quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que continuará fiel à norma. Segundo aduz Luiz Flávio Gomes (2004, p.01), os inimigos são os criminosos econômicos, terroristas, delinqüentes organizados, autores de delitos penais e outras infrações penais perigosas.
Nota-se, portanto, que se trata de um conceito muito vago e mutável de acordo com o espaço e o tempo. Basta verificarmos que a história é repleta de inimigos, a exemplo dos hereges, curandeiros, feiticeiros, etc.
Vale destacar que o início deste século ficou marcado pela consolidação de um novo inimigo da segurança do Estado no imaginário da sociedade globalizada: o terrorista internacional. A sua consolidação como inimigo se deu, sobretudo, após o atentado de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos.
Nesta esteira, Arno Dal Ri Júnior (2006, 296) dispõe que o processo de construção deste novo inimigo passou por diversas fases da década de 80 e 90 do século passado. Senão vejamos:
Vários atentados e ataques , perpetrados principalmente por grupos fundamentalistas islâmicos contra alvos civis e militares americanos, em todo o mundo e no território da grande potência, marcaram o início de tal construção simbólica. Foram significativos, nesta perspectiva, os seqüestradores de aviões, como aqueles envolvendo os jatos das empresas TWA em 1985 e PANAM em 1988. Tal contexto agravou-se de modo sensível com a explosão de um carro-bomba no subsolo do World Trade Center, em 1993, e com os atentados às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, em 1998, todos organizados por grupos fundamentalistas islâmicos. A cobertura dada pela mídia e a manipulação das informações realizada por determinados órgãos do governo americano – com o claro objetivo de semear o pânico entre a população – potencializou o impacto destes ataques na sociedade americana, pré-anunciando um sentimento geral de insegurança em relação ao novo ‘inimigo’ do Estado. O atentado de 11 de setembro de 2001, em particular, desempenhou um papel central na instalação deste sentimento de perplexidade e insegurança.
No Brasil, temos como exemplos de novos inimigos os racistas e os grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Isto porque as ações destes agentes foram elencadas na Constituição Federal como sendo crimes inafiançáveis e imprescritíveis.
Por que esses crimes são imprescritíveis? Eles são os mais graves? Não, trata-se de uma escolha do legislador constituinte para chamar a atenção para estes delitos. Eles não são mais graves, ao nosso modo de pensar. Pode-se citar como um crime mais grave que esses o genocídio. Então, cuida-se de uma escolha totalmente subjetiva.
A título de exemplificação, outros inimigos no nosso sistema são os criminosos sexuais, cuja legislação foi modificada, aumentando-se diversas penas.
6 CRÍTICAS AO DIREITO PENAL DO INIMIGO
Há inúmeras críticas despendidas pelos doutrinadores sobre a terceira velocidade do Direito Penal. Na própria obra “Direito Penal do Inimigo”, Cancio Meliá faz uma abordagem crítica acerca dessa teoria, logo após toda a exposição de Günther Jakobs.
Meliá afirma que “o Direito Penal do Inimigo só integra nominalmente o sistema jurídico-penal real: Direito Penal do Cidadão é um pleonasmo; Direito Penal do Inimigo, uma contradição em seus termos” (2009, p.74).
Vale mencionar que uma das críticas dirigidas ao Direito Penal do Inimigo é a de que se trata de um Direito Penal do autor, que pune o sujeito pelo que ele “é”, diferentemente do Direito Penal do fato, o qual pune o indivíduo pelo que ele “fez”.
Outra crítica é a de que o Direito Penal do Inimigo reprova a periculosidade, e não a culpabilidade. Dessa forma, põe-se fim ao sistema vicariante, segundo o qual pena e medida de segurança são sanções diversas.
Outrossim, sendo a terceira velocidade do Direito Penal prospectiva, historicamente, ela está relacionada ao positivismo criminológico de Lombroso, Ferri e Garófalo. Na Escola Positiva, destacou-se o método experimental, por meio do qual o crime e o criminoso devem ser estudados individualmente, bem como ganhou importância o determinismo, negando-se o livre arbítrio, tendo em vista que a responsabilidade penal se fundava na responsabilidade social, isto é, no papel que cada pessoa desempenhava na sociedade.
Outro aspecto negativo do Direito Penal do Inimigo é o de que ele não repele a ideia da desproporcionalidade das penas, principalmente porque se pune a periculosidade, não levando em consideração a questão da proporcionalidade.
Ademais, consoante aduz Luiz Flávio Gomes (2004, p. 03), o direito de terceira velocidade não segue o devido processo legal, mas sim um verdadeiro procedimento de guerra. Insta asseverar que esta característica não se coaduna com o estado de direito.
Critica-se a teoria sob análise, também, pelo fato de que ela é fruto do Direito Penal simbólico e do Punitivismo, tal como menciona Cancio Meliá.
Ao se referir ao Direito Penal simbólico, Meliá afirma que quando “se usa em sentido crítico o conceito de Direito Penal simbólico, quer-se, então, fazer referência a que determinados agentes políticos tão só perseguem o objetivo de dar a impressão tranqüilizadora de um legislador atento e decidido” (JAKOBS; MELIÁ, p. 79).
Já no relativo ao contexto punitivista, Meliá (2009, p. 81-82) prescreve as seguintes palavras:
Isto porque o recurso ao Direito Penal não só aparece como instrumento para produzir tranqüilidade mediante mero ato de promulgação de normas evidentemente destinadas a não ser aplicadas, mas que, em segundo lugar, também existem processos de criminalização à moda antiga, isto é, a introdução de normas penais novas com a intenção de promover sua efetiva aplicação com toda a decisão, isto é, processos que conduzem a normas penais novas que sim são aplicadas ou se verifica o endurecimento das penas para normas já existentes. Deste modo, inverte-se o processo havido nos movimentos de reforma das últimas décadas, em que foram desaparecendo diversas infrações.
Destaque-se que o movimento do Direito Penal do Inimigo só se tornou possível porque, atualmente, há um consenso entre a direita e a esquerda punitivistas.
Além disso, mostra-se impreciso, conforme vimos, o conceito de quem sejam os inimigos da sociedade, podendo gerar inúmeras injustiças nos casos concretos.
Apesar de todas as críticas dirigidas ao Direito Penal do Inimigo, o seu conceito possui relevância quando utilizado como categoria analítica, ou seja, como uma reflexão à ordem jurídica existente.
No entanto, o Direito Penal do Inimigo não pode ser adota em sua integralidade, já que apresenta contrariedade com as finalidades e princípios do Direito Penal, bem como ao modelo aplicável em um Estado Democrático de Direito.
Com efeito, o preâmbulo da Constituição Federal dispõe:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil.
O preâmbulo deve servir como um vetor interpretativo aos seus estudiosos e aplicadores do direito, não podendo eles desviar de seus valores despendidos. Em razão disso, muitas características do Direito Penal do Inimigo infringem a Constituição Federal, principalmente em face da subjetividade do sistema.
Cumpre destacar que não se pode relegar a um segundo plano os princípios que o iluminismo entregou para toda a humanidade, conforme constata Francesco Palazzo, citado por Luiz Luisi (2003, p. 327).
Todavia, não se pode negar que já existam traços do Direito Penal do Inimigo no Brasil, a exemplo da adoção do regime disciplinar diferenciado, a Lei do Abate, segundo a qual aeronaves brasileiras têm autorização para abater aeronaves de outros países, voando em território brasileiro, quando não se identificarem nem responderem ordens de pouso. Outros exemplos apontados pela doutrina são a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90) e a Lei de Crimes Organizados (Lei 9034/95), dentre outras.
Diante do depreendido, verifica-se que os movimentos abolicionista e do Direito Penal do Inimigo em muito se aproximam e distanciam-se, já que surgiram como uma resposta ao caótico sistema penal e penitenciário vigentes, mas eles ofereceram soluções em sentidos opostos. Todavia, a reflexão acerca de ambos é relevante e deve ser feita de modo a conciliá-los, e não a adotar qualquer uma das vertentes, pois a adoção da integralidade de qualquer uma delas resulta na inconstitucionalidade.
7 CONCLUSÕES
Ante todo o exposto, apresenta-se à guisa de conclusões:
1-O termo abolição, como movimento social humanitário tem sido utilizado desde o século XVIII, significativo da luta pela pena de prisão em substituição às penas de açoites, trabalhos forçados, mutilações e morte. Como ponto de partida do movimento abolicionista tem-se a Nova Defesa Social, bem como a Criminologia Crítica. Já o Direito Penal do Inimigo tem origem baseada na contraposição aos novos crimes supostamente praticados pelo Estado, a exemplo do terrorismo, e remonta ao antigo Direito Penal Grego. Possui como referência teórica a Teoria dos Sistemas de Niklas Luhman.
2-O abolicionismo não pode ser tratado como pensamento único, em face da existência de diversos métodos, pressupostos filosóficos, bem como diferentes táticas para alcançar seus objetivos, podendo destacar-se alguns dos seus defensores, tais como Thomas Mathuson, Louk Hulsman e Nils Christie. Pode-se resumir em três matrizes ideológicas do abolicionismo: a anarquista, a marxista e a liberal/cristã.
3-Destaca-se a forte crítica ao Abolicionismo do autor garantista Luigi Ferrajoli, que sustenta a necessidade de um direito penal positivo, que tomaria como referência para a punição os chamados direitos fundamentais, que no Brasil encerram como ponto nodal a dignidade da pessoa humana.
4-O movimento abolicionista e a teoria garantista não possuem somente ideias contraditórias e excludentes entre si, pois podem conviver pensamentos minimalistas e abolicionistas para concretizar o binômio: contenção da violência estatal e proteção dos direitos humanos.
5- Jakobs, no ano de 1985, num seminário em Frankfurt, cunhou o conceito de Direito Penal do Inimigo, diferenciando-o do Direito Penal do Cidadão e defendendo a sua utilização apenas excepcionalmente. Modifica seu entendimento, porém, em 2003, para afirmar que o Direito Penal do Inimigo não deve ser aplicado tão somente em situações de excepcional emergência.
6-Pode-se resumir as características do Direito Penal do Inimigo pelo fato de a punição se efetivar por meio de medidas de segurança e não com pena; o elemento subjetivo é a periculosidade, ao passo que no Direito Penal do Cidadão é a culpabilidade, punindo-se, assim, no Direito Penal do Inimigo pelo perigo que o autor representa para o futuro, ou seja, é prospectivo, ao contrário do Direito Penal do Cidadão, que é retrospectivo; pune-se ainda na primeira hipótese com restrições das garantias penais e processuais e regime de execução penal diferenciado, como adotado no Brasil..
7- Há inúmeras críticas ao Direito Penal do Inimigo, a exemplo de se tratar de um direito penal do autor, e não de direito penal do fato, bem como do caráter vago do termo “inimigo”. São exemplos de novos inimigos no Brasil os sujeitos ativos de crimes de racismo e das ações de grupos armados contra a ordem constitucional, bem como os criminosos sexuais, que tiveram suas penas aumentadas, dentre outros.
8-Apesar de suas falhas, o Direito Penal do Inimigo serve como um parâmetro para reflexão, em face dos problemas do sistema penal vigente. A aplicação do Direito Penal do Inimigo, em sua integralidade, é inconstitucional. Todavia, existem alguns traços dessa vertente no nosso ordenamento jurídico, como é o caso do regime disciplinar diferenciado.
9-Abolicionismo e Direito Penal do Inimigo não são posições tão opostas quanto parecem, pois ambas surgiram como respostas às dificuldades existentes no sistema penal, processual penal e penitenciário. Apesar da extremidade de ambas as vertentes, elas podem ser vistas, em alguns pontos, como parâmetros a fim de se buscar a melhoria da realidade do sistema carcerário brasileiro, bem como a redução da criminalidade.
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Mestranda em Direito Penal pela PUC/SP e bolsista do CNPq. Advogada.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BRITO, Nayara Graciela Sales. Abolicionismo e Direito Penal do Inimigo: correntes totalmente opostas? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 13 ago 2010, 01:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/20785/abolicionismo-e-direito-penal-do-inimigo-correntes-totalmente-opostas. Acesso em: 23 dez 2024.
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