O art. 5º, LXVII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe que: “ não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.
A CRFB/88 conferiu aos alimentos um caráter emergencial, autorizando, inclusive, a prisão civil do devedor como forma de compelir ao fiel cumprimento da obrigação alimentar, amparado, notadamente, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, sendo que este direito humano, de perceber alimentos, e autorizando a prisão civil do devedor, é reconhecido no plano internacional por meio do Pacto de São José da Costa Rica, no qual em seu art. 7º, item 7 informa que: “ninguém deve ser detido por dívida, exceto no caso de inadimplemento de obrigação alimentar”.
A prática forense de quem milita nas Varas de Família é uma constante as execuções de alimentos que perduram anos na busca de uma solução para que haja o adimplemento da obrigação alimentar, mas que devido a óbices de ordem legal e material levam a um descrédito da própria justiça, sendo que nesta situação quem tem o maior prejuízo é o alimentante que sofre a mitigação de recursos para a sua sobrevivência e efetivação de uma vida digna perante à sociedade.
Pois bem, a dívida alimentar, em nosso ordenamento tem um tratamento especial, como já citado, há por exemplo: a possibilidade da prisão civil; contra esta obrigação não reside a impenhorabilidade descrita no art. 649, IV do CPC, que trata sobre os vencimentos, subsídios, soldos, salários, remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios e montepios, enfim valores que dizem respeito à contraprestação pelo trabalho realizado pelo alimentado. Assim sendo, o legislador, em diversos diplomas tem dado este tratamento, justamente pela natureza pela qual se reveste os alimentos, de característica humana, e que tem como respaldo o princípio da dignidade da pessoa humana.
No que tange a prisão civil, o art. 733 do CPC, determina o procedimento de que deve se revestir a execução para que haja a possibilidade de decretação da prisão civil do devedor de alimentos, sendo que este procedimento também é complementado pela súmula 309 do Superior Tribunal de Justiça que diz: “ o débito alimentar que autoriza prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que vencerem no curso do processo”.
Destarte, nem todo e qualquer débito alimentar autoriza a prisão civil do devedor, é necessário que as parcelas devidas estejam compreendidas entre as três anteriores à data em que será ajuizada a ação, no entanto, o pagamento das três últimas prestações devidas, diferente do que pensa certos militantes na área do direito de família, não livra o alimentante da prisão civil, pelo contrário, a própria jurisprudência do STJ entende que o pagamento parcial do débito alimentar não enseja a liberdade do alimentante, caso esteja preso, ou a não decretação de sua prisão civil, pois, conforme a súmula, o alimentante deve pagar não somente as três parcelas anteriores ao ajuizamento da ação, mas as que se vencerem no curso do processo, tal fato pode ser demonstrado pela ementa a seguir transcrita:
AGRAVO REGIMENTAL - AGRAVO DE INSTRUMENTO - DIREITO CIVIL - FAMÍLIA - ALIMENTOS - PAGAMENTO PARCIAL - EXECUÇÃO PELO RITO DO ARTIGO 733 DO CPC - PRISÃO CIVIL - EXIGIBILIDADE - RECURSO IMPROVIDO.
I - A justificativa de inadimplemento parcial das prestações alimentícias não afasta a exigibilidade da prisão civil, fundamento suficiente para manter a decisão agravada.
II - É inviável a análise de matéria não suscitada no recurso especial e trazida posteriormente à guisa de inovação recursal.
III - A competência desta Corte restringe-se à interpretação e uniformização do direito infraconstitucional federal, por isso inviável o exame de eventual violação à Carta Magna, sob pena de usurpação da competência atribuída ao Supremo Tribunal Federal.
IV - Agravo Regimental improvido.
(AgRg no Ag 1196266/DF, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 09/02/2010, DJe 22/02/2010)
As execuções de alimentos que seguem o rito do art. 733 são mais eficazes, justamente pela possibilidade do cerceamento da liberdade do devedor, no entanto, o mesmo não ocorre para as parcelas que compreendem períodos que não estão englobados pela súmula 309 do STJ, ou seja, anteriores às três últimas prestações devidas, que deve seguir o rito do art. 732 do CPC.
O artigo 732 dispõe que: “a execução de sentença, que condena ao pagamento de prestação alimentícia, far-se-á conforme o disposto no Capítulo IV deste Título”.
A título de elucidação, mas que não é objeto da análise em apreço, é justamente o fato de que o artigo 732 do CPC remeter ao capítulo referente às execuções de sentença de título extrajudicial, no entanto, tratando-se de um efetivo cumprimento de sentença, o ideal é que fosse seguido o rito do artigo 475-J e seguintes do CPC, salvo se tratar de acordo feito perante o Ministério Público, ou Defensoria Pública que não foram homologados judicialmente, pois, aí sim se trata de título extrajudicial, embora em decisão recente do STJ, o mesmo tenha admitido a possibilidade de ser adotado o rito do art. 733 para estes acordos..
Tal discussão, porém, não é relevante para o objeto do artigo, o que deve ficar claro é que independente do rito adotado pelo juízo irá em caso de não pagamento do devedor redundar em penhora e, neste caso, abre a possibilidade da penhora do FGTS do alimentante.
A lei 8036/90, dispõe em seu artigo 20, um rol, no qual a conta vinculada ao FGTS - Fundo de Garantia do Tempo de Serviço poderá ser movimentada dentre as quais, cabe destacar: despedida sem justa causa, aposentadoria concedida pela Previdência Social; falecimento do trabalhador, pagamento de parte das prestações decorrentes de financiamento habitacional concedido no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), entre outras hipóteses, as quais não está inserida a possibilidade de penhora para pagamento do débito alimentar.
É justamente sobre esta possibilidade que o Superior Tribunal de Justiça vem reiteradamente decidindo sobre a penhora do saldo do FTGS para pagamento de pensão alimentícia devida pelo devedor dos alimentos, notadamente sobre o argumento de que o rol do art. 20 da lei 8036/90 é exemplificativo, podendo ser ampliado frente outras situações que revelem uma característica semelhante às que estão demonstradas no dispositivo.
A seguir a título de elucidação, transcrevemos ementa de uma dos acórdãos do STJ a fim de subsidiar a questão:
RECURSO ESPECIAL - AÇÃO DE EXECUÇÃO DE DÉBITO ALIMENTAR - PENHORA DE NUMERÁRIO CONSTANTE NO FUNDO DE GARANTIA POR TEMPO DE SERVIÇO (FGTS) EM NOME DO TRABALHADOR/ALIMENTANTE - COMPETÊNCIA DAS TURMAS DA SEGUNDA SEÇÃO - VERIFICAÇÃO - HIPÓTESES DE LEVANTAMENTO DO FGTS - ROL LEGAL EXEMPLIFICATIVO - PRECEDENTES - SUBSISTÊNCIA DO ALIMENTANDO - LEVANTAMENTO DO FGTS - POSSIBILIDADE - PRECEDENTES - RECURSO ESPECIAL PROVIDO.
I - A questão jurídica consistente na admissão ou não de penhora de numerário constante do FGTS para quitação de débito, no caso, alimentar, por decorrer da relação jurídica originária afeta à competência desta c. Turma (obrigação alimentar), deve, de igual forma ser conhecida e julgada por qualquer dos órgãos fracionários da Segunda Seção desta a. Corte;
II - Da análise das hipóteses previstas no artigo 20 da Lei n.
8.036/90, é possível aferir seu caráter exemplificativo, na medida em que não se afigura razoável compreender que o rol legal abarque todas as situações fáticas, com a mesma razão de ser, qual seja, a proteção do trabalhador e de seus dependentes em determinadas e urgentes circunstâncias da vida que demandem maior apoio financeiro;
III - Irretorquível o entendimento de que a prestação dos alimentos, por envolver a própria subsistência dos dependentes do trabalhador, deve ser necessariamente atendida, ainda que, para tanto, proceda-se ao levantamento do FGTS do trabalhador;
IV - Recurso Especial provido.
(REsp 1083061/RS, Rel. Ministro MASSAMI UYEDA, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/03/2010, DJe 07/04/2010)
Antes desta decisão, o Superior Tribunal de Justiça já havia se posicionado a favor da penhora do FGTS, conforme ementa a seguir:
PROCESSO CIVIL E ADMINISTRATIVO – MANDADO DE SEGURANÇA CONTRA ATO JUDICIAL – FGTS E PIS: PENHORA - EXECUÇÃO DE ALIMENTOS - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL - SÚMULA 202/STJ – INTERESSE DA CEF - IMPENHORABILIDADE - MITIGAÇÃO FRENTE A BENS DE PRESTÍGIO CONSTITUCIONAL.
1. A competência para a execução de sentença condenatória de alimentos é da Justiça Estadual, sendo irrelevante para transferi-la para a Justiça Federal a intervenção da CEF.
2. Na execução de alimentos travada entre o trabalhador e seus dependentes, a CEF é terceira interessada.
3. A impenhorabilidade das contas vinculadas do FGTS e do PIS frente à execução de alimentos deve ser mitigada pela colisão de princípios, resolvendo-se o conflito para prestigiar os alimentos, bem de status constitucional, que autoriza, inclusive, a prisão civil do devedor.
4. O princípio da proporcionalidade autoriza recaia a penhora sobre os créditos do FGTS e PIS.
5. Recurso ordinário não provido.
(RMS 26.540/SP, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/08/2008, DJe 05/09/2008)
Desta decisão pode-se elucidar algumas características essenciais ao pedido de penhora. Primeiramente, no que tange à competência, infere-se que esta é da justiça comum, no local onde esta se processando a execução de alimentos, pois, embora a Caixa Econômica Federal seja terceira interessada, o próprio STJ por meio da súmula 161 já se posicionou no sentido de que competia à Justiça Comum autorizar o levantamento do PIS/FGTS em razão do falecimento do titular, ratificando o seu entendimento sobre o argumento de que a demanda em solução envolve interesses privados, não afetos à Caixa Econômica Federal que, na situação, assumiria a condição de terceiro prejudicado.
Um outro fator que é levantado nas decisões que autorizam a penhora do FGTS diz respeito ao caráter extensivo da possibilidade de levantamento do saldo do FGTS notadamente em situações de interesse social, no qual estão envolvidos princípios que norteiam o nosso ordenamento como o princípio da dignidade da pessoa humana e que, no caso da execução de alimentos, é notório o caráter social, pois envolve interesse fundamental da pessoa humana.
Nesse jaez, a doutrina indica como funções dos princípios (ÁVILA apud, HOLTHE, 2007, p. 80):
Integrativa (permite o acréscimo de elementos não previstos em sub-princípios ou regras –ex:ainda que não haja previsão expressa de abertura de prazo para manifestação da parte em determinado procedimento, o princípio da ampla defesa permitirá a concessão desse prazo); bloqueadora (permite o afastamento de elementos expressamente previstos em regra e sub-princípios que sejam incompatíveis com os fins contidos nos princípios); interpretativa (os princípios devem ser considerados na interpretação das normas mais particulares); valorativa (os princípios indicam determinados bens e valores a serem protegidos); argumentativa (quanto maior for a proteção de determinados bens e valores pelos princípios, maior será a necessidade de justificativa por parte do Estado para sua restrição; de defesa ou de resistência(os princípios funcionam como direitos subjetivos, proibindo intervenções do Estado que violem os direitos de liberdade dos indivíduos); e protetora (além de proibir tais intervenções estatais, os princípios exigem do Estado a adoção de medidas concretas para a proteção dos direitos de liberdade).
Os princípios estão presentes tanto na formação da norma jurídica, como também na formulação e aplicação da norma jurídica concreta tendo uma grande extensão de aplicabilidade face o caráter ponderativo de incidência, variando diante da influência que exerce no caso concreto.
Este sim, é o principal argumento, e a meu ver, de acertada aplicação para que se possibilidade a penhora do FGTS do devedor dos alimentos. Ora, o FGTS não vem em benefício somente do trabalhador, mas sobretudo dos seus dependentes, sendo que as principais causas de seu levantamento tem conteúdo eminentemente assistencial, como forma de possibilitar uma inserção, ou até mesmo garantir alguns direitos sociais.
Na situação em apreço, também pode ser indicado como princípio base para a aplicação desse entendimento, a proporcionalidade, já que é o modo menos gravoso ao devedor e ao mesmo tempo mais adequado a se atingir o fim almejado.
Analisando o referido princípio, o Ministro Gilmar Mendes entende que (2007, p. 50):
Em outros termos o meio não será necessário se o objetivo almejado, puder ser alcançado com a adoção de medida que se revele a um só tempo adequada e menos onerosa. Ressalte-se que, na prática, adequação e necessidade não tem o mesmo peso ou relevância no juízo de ponderação. Assim , apenas o que é adequado pode ser necessário, mas o que é necessário não pode ser inadequado. Pieroth e Schlink ressaltam que a prova da necessidade tem maior relevância do que a adequação. Positivo o teste da necessidade, não há de ser negativo o teste de adequação. Por outro lado, se o teste quanto á necessidade revelar-se negativo, o resultado positivo do teste de adequação não mais poderá afetar o resultado definitivo ou final. De qualquer forma, um juízo definitivo sobre a proporcionalidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação e do possível equilíbrio entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade em sentido estrito). É possível que a própria ordem constitucional forneça um indicador sobre os critérios de avaliação ou de ponderação que devem ser adotados. Pieroth e Schilink advertem, porém, que nem sempre a doutrina e a jurisprudência se contentam com essas indicações fornecidas pela Lei Fundamental, incorrendo no risco ou na tentação de substituir a decisão legislativa pela avaliação subjetiva do juiz.
Tendo em vista esses riscos, procura-se solver a questão com base nos outros elementos do princípio da proporcionalidade, enfatizando-se, especialmente, o significado do subprincípio da necessidade. A proporcionalidade em sentido estrito assumiria, assim, o papel de controle de sintonia fina (Stimmigkeitskontrolle), indicando a justeza da solução encontrada ou a necessidade de sua revisão.
Destarte, atinente a esta função exercida pelo FGTS, nada mais justo que a possibilidade de seu levantamento seja autorizado também para os seus dependentes, credores de débitos alimentar, pois, como a própria expressão indica, são créditos que detém prioridade, gozando de privilégios em nosso ordenamento, pois, o alimento é fonte vital, e como tal, é corolário da dignidade da pessoa humana.
Bibliografia:
HOLTHE, Leo Van. Direito Constitucional. 3 ed. rev. e ampl. Salvador: Jus Podivm, 2007.
MENDES, Ferreira Gilmar. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade: estudos de Direito Constitucional. 3 ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007.
Bacharel em Direito pela Universidade Tiradentes/SE. Pós-graduado em Direito Público pela UNISUL/LFG e Servidor Público do TJ/SE
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RAFAEL DOS SANTOS Sá, . A penhora do FGTS do devedor de alimentos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 ago 2010, 01:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/21029/a-penhora-do-fgts-do-devedor-de-alimentos. Acesso em: 23 dez 2024.
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